Mountain Do desafia maratonistas no árido Atacama
Corrida é uma forte concorrente à prova mais bonita do mundo. Mas será que pessoas normais conseguem correr no deserto mais árido do planeta?
Da Redação
Publicado em 27 de março de 2012 às 13h56.
São Paulo - O calor assusta, a altimetria preocupa, a altitude alerta, a umidade apavora. Tudo isso tem a ver com a Mountain Do Atacama, a versão internacional da série Mountain Do que já acontece no Costão do Santinho, Lagoa da Conceição, Praia do Rosa e Campos do Jordão. No fim de janeiro, 500 brasileiros resolveram pagar para ver e partiram para o deserto. Sabiam que o Atacama reservava um cenário de sonhos, mas não estavam certos se o deserto pediria em troca doses altas de sofrimento para completar a maratona, os 23 km ou os 5 km, as três distâncias da corrida.
Euclides Neto, o Kiko, não é exatamente um rato do deserto. No máximo, rato de praia, de Florianópolis. Esperto, Kiko é o pai de um tipo de prova que não existia no Brasil. Com a primeira Mountain Do, em 2004, no Costão do Santinho, ele criou um evento que combina a dureza das corridas de aventura com o luxo dos eventos mais sofisticados. Endurecer, sim, mas sem perder o conforto. O trajeto de sua prova é sempre complicado: subidas, descidas, terrenos irregulares, contato direto com a natureza. Disso ele não abre mão. Em contrapartida, trata os corredores com a palma da mão.
Um fim de semana típico da Mountain Do prevê um bom jantar na véspera da corrida e um almoço no dia seguinte, com a entrega de um DVD da prova. A hidratação chega a ser exagerada na corrida, o kit é farto, camiseta de boa qualidade, medalha escandalosamente grande. A inscrição não costuma ser barata (em torno de 200 reais), pouca gente se queixa do preço. O atleta é tratado o tempo todo como um vip, o regulamento é flexibilizado sempre a favor do cliente.
Antes de se aventurar na organização de uma prova internacional (veja em “E a terra tremeu”), Kiko fez o possível para amenizar as agruras do deserto. A escolha da época (janeiro) foi proposital. É quando ocorre o fenômeno do "inverno boliviano", ocasião em que os ventos trazem alguma umidade e até chuvas da Bolívia para a região atacamenha. Nessa época, o rótulo de “o deserto mais árido do mundo” se torna um tanto mentiroso. O Atacama – que chega a registrar inacreditáveis 2% ou 3% de umidade na metade do ano – fica com uns 20% nos primeiros meses do ano. Seco como um dry martini, é verdade, mas nada que um brasiliense não tenha encarado na vida.
O problema da temperatura também foi equacionado com uma decisão bastante lógica: saída às 7 da manhã. A turma da meia maratona largou com 10º C e terminou a prova pouco acima dos 20º C. A Maratona de Chicago não costuma ser tão legal com quem corre. O pessoal da maratona sentiu um pouco mais no fim da prova, já que perto do meio-dia o termômetro registrava algo em torno de 28 graus. Mas, de novo, nada de tão assustador.
Quanto ao tema da altimetria, a organização traçou um percurso desafiador, só que sem exageros. Não há como oferecer a beleza do deserto sem subidas. Pedreira de verdade, apenas na altura do quilômetro 13 da meia e no 32 da maratona. É que, para chegar ao estonteante Vale da Morte, só subindo uma montanha disfarçada de duna e passando por vários pequenos morrinhos. Apenas a altitude não tem remédio. São Pedro do Atacama está a 2 400 metros acima do nível do mar e a prova chega a seu ponto mais alto nos 2 600 metros. Não são marcas capazes de provocar fortes tonturas nem derrubar drasticamente desempenhos.
Mas alguns sentem mesmo o ar um pouco mais rarefeito, perdem o fôlego e sentem dores de cabeça. Mesmo juntando todas as dificuldades, o Mountain Do Atacama não entrará no topo do ranking das provas mais cascas-grossas do Brasil (sim, porque, apesar de acontecer em território chileno, a corrida é organizada por brasileiros e somente para brasileiros). O K42 e a Meia de Bombinhas são mais desafiadores, qualquer etapa do circuito brasileiro de corrida de montanha será mais sofrida. Fácil o Mountain Do não é, basta checar os tempos dos vencedores. O primeiro dos 23 km (Márcio Scotti) fechou com 1h49, em um ritmo de 4min45/km.
O primeiro colocado da maratona (Moisés Torres) terminou em 3h46, em um ritmo de 5min23/km. Só que o Mountain Do Atacama não pode nem deve ser analisado como um desafio atlético. Não é. Trata-se de um híbrido de corrida e turismo. Eis a proposta do evento. Correr para ver e sentir um dos lugares mais lindos do mundo. Um bom maratonista pode encarar a maratona. Um maratonista inexperiente deve preferir a meia, que fará em um tempo de 3 horas. Quem tem dificuldade para terminar uma meia, parte para os 5 km. Ajustada a capacidade de cada um com a exigência da prova, é só diversão.
Os percursos da maratona e da meia são semelhantes, a turma dos 42 km vai apenas um pouco mais longe em direção ao Vale da Lua. Os primeiros 8 km são planos e tranquilos. Largada no centrinho de São Pedro e um trecho de asfalto com o sol dando as caras. À esquerda, vista para os vulcões nevados. À direita, as montanhas alaranjadas do Vale da Lua. Risco de cansar o pescoço na indecisão de eleger a paisagem mais estimulante. Na altura do km 8, os maratonistas seguem pela mesma estrada no vale, enquanto a turma da "meia" (era para ser 21 km, só que o trajeto foi aumentado em 2 km para evitar o risco de acidente na principal estrada da região) se embrenha por um lugar chamado Quebrada de Kari. Capítulo à parte. Difícil descrever a sensação de correr quase 5 km por um caminho de pedras e argila misturada com sal.
O atleta fica minúsculo no meio desse desfiladeiro sinuoso com grandes formações rochosas. E o ponto alto disso tudo é o fim da quebrada, quando os corredores entram em uma enorme caverna para sair em um grande vale.
Bem, aí já estamos no km 13, é chegada a hora de pagar o ingresso de um tour que poucos turistas têm a chance de conhecer. São 800 metros de subida forte pela duna em direção ao outro vale imperdível da região, o da Morte. Não se trata apenas da forte inclinação, mas do piso. Areia fofa, mesmo caminhando lentamente a sensação é de esforço máximo. Os frequencímetros disparam freneticamente nesse trecho.
Finalizada a imensa duna (que os maratonistas encararão já cansados no km 32), uma sequência de pequenas duninhas que minará as panturrilhas e os joelhos da turma. A prova oferecerá logo a seguir uma recompensa a quem passou pelos obstáculos. Os 8 km finais da meia e da maratona serão praticamente em descida, com o Vale da Morte para alegrar as vistas.
Muita gente parou para recuperar o fôlego e fazer fotos das improváveis formações rochosas do lugar. E a prova termina onde começou, na praça principal (a única, na verdade) da cidadezinha de 7 000 habitantes. Por maior que seja o cansaço e as dores da aventura, não há como cruzar a linha de chegada sem a sensação de ser um privilegiado. Se observar a beleza do Atacama dentro de um ônibus turístico já é um programão, sentir o deserto na sola dos pés dentro de uma bem sinalizada e hidratada prova é um luxo só.
Terminou? Não, apenas começou. É um desperdício encarar um voo até Santiago, depois mais 1800 km até Calama e outros 100 km por terra até São Pedro, para dar uma corridinha e voltar. O Atacama pede mais atenção. Há atrações para quatro ou cinco dias, de trekkings radicais por vulcões até banhos relaxantes em águas termais (veja quadro ). Correr é apenas a desculpa perfeita para uma viagem inesquecível
São Paulo - O calor assusta, a altimetria preocupa, a altitude alerta, a umidade apavora. Tudo isso tem a ver com a Mountain Do Atacama, a versão internacional da série Mountain Do que já acontece no Costão do Santinho, Lagoa da Conceição, Praia do Rosa e Campos do Jordão. No fim de janeiro, 500 brasileiros resolveram pagar para ver e partiram para o deserto. Sabiam que o Atacama reservava um cenário de sonhos, mas não estavam certos se o deserto pediria em troca doses altas de sofrimento para completar a maratona, os 23 km ou os 5 km, as três distâncias da corrida.
Euclides Neto, o Kiko, não é exatamente um rato do deserto. No máximo, rato de praia, de Florianópolis. Esperto, Kiko é o pai de um tipo de prova que não existia no Brasil. Com a primeira Mountain Do, em 2004, no Costão do Santinho, ele criou um evento que combina a dureza das corridas de aventura com o luxo dos eventos mais sofisticados. Endurecer, sim, mas sem perder o conforto. O trajeto de sua prova é sempre complicado: subidas, descidas, terrenos irregulares, contato direto com a natureza. Disso ele não abre mão. Em contrapartida, trata os corredores com a palma da mão.
Um fim de semana típico da Mountain Do prevê um bom jantar na véspera da corrida e um almoço no dia seguinte, com a entrega de um DVD da prova. A hidratação chega a ser exagerada na corrida, o kit é farto, camiseta de boa qualidade, medalha escandalosamente grande. A inscrição não costuma ser barata (em torno de 200 reais), pouca gente se queixa do preço. O atleta é tratado o tempo todo como um vip, o regulamento é flexibilizado sempre a favor do cliente.
Antes de se aventurar na organização de uma prova internacional (veja em “E a terra tremeu”), Kiko fez o possível para amenizar as agruras do deserto. A escolha da época (janeiro) foi proposital. É quando ocorre o fenômeno do "inverno boliviano", ocasião em que os ventos trazem alguma umidade e até chuvas da Bolívia para a região atacamenha. Nessa época, o rótulo de “o deserto mais árido do mundo” se torna um tanto mentiroso. O Atacama – que chega a registrar inacreditáveis 2% ou 3% de umidade na metade do ano – fica com uns 20% nos primeiros meses do ano. Seco como um dry martini, é verdade, mas nada que um brasiliense não tenha encarado na vida.
O problema da temperatura também foi equacionado com uma decisão bastante lógica: saída às 7 da manhã. A turma da meia maratona largou com 10º C e terminou a prova pouco acima dos 20º C. A Maratona de Chicago não costuma ser tão legal com quem corre. O pessoal da maratona sentiu um pouco mais no fim da prova, já que perto do meio-dia o termômetro registrava algo em torno de 28 graus. Mas, de novo, nada de tão assustador.
Quanto ao tema da altimetria, a organização traçou um percurso desafiador, só que sem exageros. Não há como oferecer a beleza do deserto sem subidas. Pedreira de verdade, apenas na altura do quilômetro 13 da meia e no 32 da maratona. É que, para chegar ao estonteante Vale da Morte, só subindo uma montanha disfarçada de duna e passando por vários pequenos morrinhos. Apenas a altitude não tem remédio. São Pedro do Atacama está a 2 400 metros acima do nível do mar e a prova chega a seu ponto mais alto nos 2 600 metros. Não são marcas capazes de provocar fortes tonturas nem derrubar drasticamente desempenhos.
Mas alguns sentem mesmo o ar um pouco mais rarefeito, perdem o fôlego e sentem dores de cabeça. Mesmo juntando todas as dificuldades, o Mountain Do Atacama não entrará no topo do ranking das provas mais cascas-grossas do Brasil (sim, porque, apesar de acontecer em território chileno, a corrida é organizada por brasileiros e somente para brasileiros). O K42 e a Meia de Bombinhas são mais desafiadores, qualquer etapa do circuito brasileiro de corrida de montanha será mais sofrida. Fácil o Mountain Do não é, basta checar os tempos dos vencedores. O primeiro dos 23 km (Márcio Scotti) fechou com 1h49, em um ritmo de 4min45/km.
O primeiro colocado da maratona (Moisés Torres) terminou em 3h46, em um ritmo de 5min23/km. Só que o Mountain Do Atacama não pode nem deve ser analisado como um desafio atlético. Não é. Trata-se de um híbrido de corrida e turismo. Eis a proposta do evento. Correr para ver e sentir um dos lugares mais lindos do mundo. Um bom maratonista pode encarar a maratona. Um maratonista inexperiente deve preferir a meia, que fará em um tempo de 3 horas. Quem tem dificuldade para terminar uma meia, parte para os 5 km. Ajustada a capacidade de cada um com a exigência da prova, é só diversão.
Os percursos da maratona e da meia são semelhantes, a turma dos 42 km vai apenas um pouco mais longe em direção ao Vale da Lua. Os primeiros 8 km são planos e tranquilos. Largada no centrinho de São Pedro e um trecho de asfalto com o sol dando as caras. À esquerda, vista para os vulcões nevados. À direita, as montanhas alaranjadas do Vale da Lua. Risco de cansar o pescoço na indecisão de eleger a paisagem mais estimulante. Na altura do km 8, os maratonistas seguem pela mesma estrada no vale, enquanto a turma da "meia" (era para ser 21 km, só que o trajeto foi aumentado em 2 km para evitar o risco de acidente na principal estrada da região) se embrenha por um lugar chamado Quebrada de Kari. Capítulo à parte. Difícil descrever a sensação de correr quase 5 km por um caminho de pedras e argila misturada com sal.
O atleta fica minúsculo no meio desse desfiladeiro sinuoso com grandes formações rochosas. E o ponto alto disso tudo é o fim da quebrada, quando os corredores entram em uma enorme caverna para sair em um grande vale.
Bem, aí já estamos no km 13, é chegada a hora de pagar o ingresso de um tour que poucos turistas têm a chance de conhecer. São 800 metros de subida forte pela duna em direção ao outro vale imperdível da região, o da Morte. Não se trata apenas da forte inclinação, mas do piso. Areia fofa, mesmo caminhando lentamente a sensação é de esforço máximo. Os frequencímetros disparam freneticamente nesse trecho.
Finalizada a imensa duna (que os maratonistas encararão já cansados no km 32), uma sequência de pequenas duninhas que minará as panturrilhas e os joelhos da turma. A prova oferecerá logo a seguir uma recompensa a quem passou pelos obstáculos. Os 8 km finais da meia e da maratona serão praticamente em descida, com o Vale da Morte para alegrar as vistas.
Muita gente parou para recuperar o fôlego e fazer fotos das improváveis formações rochosas do lugar. E a prova termina onde começou, na praça principal (a única, na verdade) da cidadezinha de 7 000 habitantes. Por maior que seja o cansaço e as dores da aventura, não há como cruzar a linha de chegada sem a sensação de ser um privilegiado. Se observar a beleza do Atacama dentro de um ônibus turístico já é um programão, sentir o deserto na sola dos pés dentro de uma bem sinalizada e hidratada prova é um luxo só.
Terminou? Não, apenas começou. É um desperdício encarar um voo até Santiago, depois mais 1800 km até Calama e outros 100 km por terra até São Pedro, para dar uma corridinha e voltar. O Atacama pede mais atenção. Há atrações para quatro ou cinco dias, de trekkings radicais por vulcões até banhos relaxantes em águas termais (veja quadro ). Correr é apenas a desculpa perfeita para uma viagem inesquecível