Jornalismo, companheiro de viagem de Gabriel García Márquez
Cada história e cada vivência passavam pela peneira de seu olho de jornalista porque estava convencido que "a crônica é a novela da realidade"
Da Redação
Publicado em 17 de abril de 2014 às 20h19.
Bogotá - Escritor de contos, romances, roteiros e até boleros frustrados, Gabriel García Márquez viajou sempre acompanhado por seu instinto de jornalista de estirpe, com lápis à mão e a capacidade de observação de um lince.
Embora pareça de fábula, o universo evocado pelo escritor colombiano era real. Cada história e cada vivência passavam pela peneira de seu olho de jornalista porque estava convencido que "a crônica é a novela da realidade".
O idílio do gênio colombiano com a literatura e o jornalismo nasceu quase ao mesmo tempo, quando iniciava sua formação em Bogotá, longe de sua natal Aracataca e em uma cidade cinza que marcou seus primeiros passos com o "Bogotazo", como se conhecem os distúrbios que derivaram do assassinato do caudilho liberal Jorge Eliécer Gaitán.
Ao redor desse fato histórico começou sua carreira com os primeiros contos. "A terceira resignação" abriu a proibição no jornal El Espectador em 1948, e depois, como repórter, seguiu buscando a comunhão entre a literatura e o jornalismo em duas cidades de seu Caribe natal: Cartagena e Barranquilla.
No mesmo jornal de Bogotá , publicaria em 1955 em 14 partes uma reportagem emblemática: "Relato de um náufrago".
Naquela época, o futuro Prêmio Nobel de Literatura de 1982 era apelidado "Trapo louco", vestia camisas coloridas e dormia em pensões baratas com os baixos salários que recebia nos jornais El Universal, de Cartagena, e El Arauto, de Barranquilla, mas nunca lhe faltaram livros para ler nem garrafas de rum para apreciar com seus amigos intelectuais.
Nesses prolíficos anos devorou William Faulkner, Ernest Hemingway, Virgínia Woolf e John Dos Passos, criou uma paixão doentia pelo cinema, conheceu seu íntimo amigo e compatriota Álvaro Mutis, e fez parte do "Grupo de Barranquilla", que por pouco não chegou a ser uma geração literária.
Não seria essa a primeira vez em que o "filho do telegrafista" se sacrificava pelo jornalismo, pois a penúria marcou sua etapa como correspondente na Europa. Foi admirado por seu colega polonês Ryszard Kapucinski, que afirmou que "seu grande mérito (de García Márquez) consiste em mostrar que a grande reportagem é também grande literatura".
Após desmontar o socialismo real na série de reportagens "Noventa dias na cortina de ferro", publicada na revista colombiana Cromos, um de seus amigos da época parisiense, seu compatriota Plinio Apuleyo Mendoza, o levou a escrever a Caracas para as revistas venezuelanas "Momento", "Elite" e "Venezuela Gráfica".
No meio desse retorno ao Caribe, viajou a Havana com Mendoza para conhecer em primeira mão o efeito da recém estreada revolução de Fidel Castro, o que lhe abriu as portas como correspondente da agência cubana "Prensa Latina" em Bogotá e Nova York, um período que concluiu no meio das tensões pela invasão da Baía dos Porcos.
Ele então decidiu buscar Mutis no México, e acompanhado por sua família e muitos manuscritos de seus grandes romances, iniciou um caminho errante através dos Estados Unidos de Faulkner que acabou na florescente Cidade do México, onde arriscou a sorte no cinema, mas teve que recorrer ao jornalismo para sobreviver até que chegou sua hora de ouro literária com "Cem anos de solidão".
E, sem assinar, dirigiu durante dois anos as revistas "A família" e "Fatos para todos", o início de suas aventuras editoriais que depois, já transformado em uma figura da literatura, o levariam em 1974 a criar a publicação de esquerda Alternativa, com Enrique Santos, irmão do atual presidente da Colômbia.
Embora esse projeto tenha morrido cedo, García Márquez não retrocedeu em seu empenho, e em 1998 comprou a revista "Cambio", que venderia em 2006 à Casa Editorial El Tiempo.
Como o afirmou na assembleia anual da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) de 1996, "o jornalismo é uma paixão insaciável que só pode ser digerida e humanizada por seu confronto descarnado com a realidade".
Nessa época, García Márquez já tinha iniciado em Cartagena seu projeto docente ao redor da Fundação de Novo Jornalismo Ibero-americano (FNPI) para "inventar outra vez o velho modo" de aprender o ofício sem gravadores nem aspas, mas com ética e compromisso social, como foi sua obra.
Nos últimos anos, surgiram homenagens à figura de jornalista do Nobel, como a antologia de textos "Gabo, jornalista" ou a criação em 2013 dos "Prêmios Gabriel García Márquez", outorgados pela FNPI em uma tentativa de resgatar a profissão.
García Márquez nunca se deixou enganar pela fama nem perdeu a alma de repórter. E o mostrou em uma de suas últimas internações em um hospital no México quando, ao ver uma multidão de jornalistas às portas da clínica, exclamou: "estão loucos, o que fazem lá fora (os jornalistas). Que vão trabalhar, fazer algo útil", reivindicando mais uma vez sua filosofia: "o jornalismo é o melhor ofício do mundo". EFE
Bogotá - Escritor de contos, romances, roteiros e até boleros frustrados, Gabriel García Márquez viajou sempre acompanhado por seu instinto de jornalista de estirpe, com lápis à mão e a capacidade de observação de um lince.
Embora pareça de fábula, o universo evocado pelo escritor colombiano era real. Cada história e cada vivência passavam pela peneira de seu olho de jornalista porque estava convencido que "a crônica é a novela da realidade".
O idílio do gênio colombiano com a literatura e o jornalismo nasceu quase ao mesmo tempo, quando iniciava sua formação em Bogotá, longe de sua natal Aracataca e em uma cidade cinza que marcou seus primeiros passos com o "Bogotazo", como se conhecem os distúrbios que derivaram do assassinato do caudilho liberal Jorge Eliécer Gaitán.
Ao redor desse fato histórico começou sua carreira com os primeiros contos. "A terceira resignação" abriu a proibição no jornal El Espectador em 1948, e depois, como repórter, seguiu buscando a comunhão entre a literatura e o jornalismo em duas cidades de seu Caribe natal: Cartagena e Barranquilla.
No mesmo jornal de Bogotá , publicaria em 1955 em 14 partes uma reportagem emblemática: "Relato de um náufrago".
Naquela época, o futuro Prêmio Nobel de Literatura de 1982 era apelidado "Trapo louco", vestia camisas coloridas e dormia em pensões baratas com os baixos salários que recebia nos jornais El Universal, de Cartagena, e El Arauto, de Barranquilla, mas nunca lhe faltaram livros para ler nem garrafas de rum para apreciar com seus amigos intelectuais.
Nesses prolíficos anos devorou William Faulkner, Ernest Hemingway, Virgínia Woolf e John Dos Passos, criou uma paixão doentia pelo cinema, conheceu seu íntimo amigo e compatriota Álvaro Mutis, e fez parte do "Grupo de Barranquilla", que por pouco não chegou a ser uma geração literária.
Não seria essa a primeira vez em que o "filho do telegrafista" se sacrificava pelo jornalismo, pois a penúria marcou sua etapa como correspondente na Europa. Foi admirado por seu colega polonês Ryszard Kapucinski, que afirmou que "seu grande mérito (de García Márquez) consiste em mostrar que a grande reportagem é também grande literatura".
Após desmontar o socialismo real na série de reportagens "Noventa dias na cortina de ferro", publicada na revista colombiana Cromos, um de seus amigos da época parisiense, seu compatriota Plinio Apuleyo Mendoza, o levou a escrever a Caracas para as revistas venezuelanas "Momento", "Elite" e "Venezuela Gráfica".
No meio desse retorno ao Caribe, viajou a Havana com Mendoza para conhecer em primeira mão o efeito da recém estreada revolução de Fidel Castro, o que lhe abriu as portas como correspondente da agência cubana "Prensa Latina" em Bogotá e Nova York, um período que concluiu no meio das tensões pela invasão da Baía dos Porcos.
Ele então decidiu buscar Mutis no México, e acompanhado por sua família e muitos manuscritos de seus grandes romances, iniciou um caminho errante através dos Estados Unidos de Faulkner que acabou na florescente Cidade do México, onde arriscou a sorte no cinema, mas teve que recorrer ao jornalismo para sobreviver até que chegou sua hora de ouro literária com "Cem anos de solidão".
E, sem assinar, dirigiu durante dois anos as revistas "A família" e "Fatos para todos", o início de suas aventuras editoriais que depois, já transformado em uma figura da literatura, o levariam em 1974 a criar a publicação de esquerda Alternativa, com Enrique Santos, irmão do atual presidente da Colômbia.
Embora esse projeto tenha morrido cedo, García Márquez não retrocedeu em seu empenho, e em 1998 comprou a revista "Cambio", que venderia em 2006 à Casa Editorial El Tiempo.
Como o afirmou na assembleia anual da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) de 1996, "o jornalismo é uma paixão insaciável que só pode ser digerida e humanizada por seu confronto descarnado com a realidade".
Nessa época, García Márquez já tinha iniciado em Cartagena seu projeto docente ao redor da Fundação de Novo Jornalismo Ibero-americano (FNPI) para "inventar outra vez o velho modo" de aprender o ofício sem gravadores nem aspas, mas com ética e compromisso social, como foi sua obra.
Nos últimos anos, surgiram homenagens à figura de jornalista do Nobel, como a antologia de textos "Gabo, jornalista" ou a criação em 2013 dos "Prêmios Gabriel García Márquez", outorgados pela FNPI em uma tentativa de resgatar a profissão.
García Márquez nunca se deixou enganar pela fama nem perdeu a alma de repórter. E o mostrou em uma de suas últimas internações em um hospital no México quando, ao ver uma multidão de jornalistas às portas da clínica, exclamou: "estão loucos, o que fazem lá fora (os jornalistas). Que vão trabalhar, fazer algo útil", reivindicando mais uma vez sua filosofia: "o jornalismo é o melhor ofício do mundo". EFE