Farofa da GKay e a relevância na economia digital
Estima-se que 8 milhões de reais tenham sido investidos na última edição da Farofa da GKay
Julia Storch
Publicado em 12 de dezembro de 2022 às 13h42.
Última atualização em 12 de dezembro de 2022 às 13h46.
Era uma vez a farofa, guarnição-base da culinária do nosso país, feita de mandioca, mais brasileira que a própria feijoada, variação tupiniquim do cassoulet francês. Toda a vida, servida como um delicioso acompanhamento nas mesas do Brasil, agora ela é promovida a prato principal. Sim, estamos falando da Farofa da GKay.
Não é mais necessário apresentar ao público a influenciadora digital Gessica Kayane , com mais de 20 milhões de seguidores só no Instagram e figura recorrente dos programas de auditório da Globo. GKay conseguiu se transformar em uma potência midiática com uma série de ações de marketing e muita geração de conteúdo, incluindo uma bem costurada relação com uma gama de artistas brasileiros e até na moda internacional, com marcas como Schiaparelli e Balenciaga – esta que recentemente atravessa polêmicas e o fantasma do cancelamento.
Estima-se que 8 milhões de reais tenham sido investidos na última edição da Farofa da GKay, evento que a paraibana capitaneia anualmente em um resort no Ceará, onde recebe influencers do Brasil inteiro, artistas de grande sucesso, e transforma-se na anfitriã do fervo. Avião fretado, 315 quartos alugados, estrutura de festival de música. Vai ter até Ivete Sangalo.
Há quem prefira discutir quem foi e quem não foi, os looks babadeiros da estrela da noite, o que aconteceu no dark room, examinar as dinâmicas noventistas à banheira do Gugu Liberato (inclusive houve um caso de assédio envolvendo o humorista Tirulipa, expulso do evento logo no primeiro dia), as similaridades estéticas com o finado Pânico na TV (Rede TV 2003-2012). Discutir a moralidade da festa beira o reacionário e qualquer comentário censor da diversão alheia é recalque. Deixa o povo frescar.
Eu prefiro enxergar o case Farofa através dos apontamentos para o futuro do universo creator, este que 'emprega' mais de 10 milhões de brasileiros, do qual faço parte há pelo menos 14 anos. Ser creator é a profissão de desejo para quem está chegando na vida profissional, e fazer uma festa como a de Gkay virou meta de sucesso para os veteranos, não só pelo dinheiro que se pode ganhar, mas pelo capital invisível da influência que se fomenta.
O universo da criação de conteúdo digital está baseado em alguns pilares como autenticidade, individualismo, construção de audiência e algoritmos. Qualquer um de nós que vive disso sabe o quanto é desgastante psicologicamente e bastante solitário criar diariamente, surfar nas trends que não tem nada a ver com o seu universo pessoal para gerar engajamento, lidar com haters, filtros e padrões de beleza, e se sentir como um fantoche de um algoritmo invisível regido por plutocratas como Mark Zuckerberg e agora Elon Musk – que recém adquiriu o Twitter para transformá-lo em mais um joguete da sua ambição. Ser criador de conteúdo é uma profissão sem descanso.
Ao promover o evento, Gkay incita os seus convidados a romper com o ethos da selfie, lógica fundamental dos influencers, e pensar em promoção cruzada: todo mundo que está ali tem alguma relevância na economia digital, e o evento se transforma em um território fértil para compartilhar seguidores e narrativas. É um evento corporativo de creators com clima de carnaval: vale tudo para aparecer, é uma grande vitrine. Tanto o formato e o público da Farofa da GKay são um híbrido entre De Férias com o Ex, A Fazenda, BBB, Festival de Verão de Salvador, Olinda Beer, e festa de aniversário de famosa. Suco de Brasil.
A prova disso é a transmissão do canal Multishow e Globoplay, com horas dedicadas de ao vivo, tal qual um Rock in Rio ou Lollapalooza. Repórteres de música e celebridades escalados para o backstage entrevistam artistas, tiktokers e instagrammers, até poucos anos atrás desprezados pela Globo. Agora, se não é possível conter a força do tsunami influencer, a maior potência de mídia do país decide se atrelar a eles. Linha editorial?
A contradição mais interessante é que o evento, mesmo extremamente personificado, consegue criar um valor de comunidade, algo tão almejado por empresas, marcas e artistas. Gkay se transforma em Régia de um sistema solar, e ainda conseguiu criar um mecanismo em que todos saem ganhando, principalmente ela mesma. Sempre há câmeras apontadas para a anfitriã.
*Caio Braz é jornalista, apresentador e produtor de conteúdo. Braz não foi convidado para a Farofa da Gkay.