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Em novo livro, Martin Scorsese revê seus anos de formação moral e intelectual

Conversas com Scorsese é um labirinto intrigante em que se entra com facilidade, mas do qual se demora a sair tamanha a gama de referências e digressões

O diretor é um híbrido de Hollywood com o cinema autoral europeu (Wikimedia Commons)

O diretor é um híbrido de Hollywood com o cinema autoral europeu (Wikimedia Commons)

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Da Redação

Publicado em 22 de dezembro de 2011 às 09h41.

São Paulo - Martin Scorsese é, segundo ele mesmo, uma síntese improvável de mundos que convivem nada pacificamente em sua cabeça.

Cruza de Hollywood com o cinema de autor europeu, do mainstream dos grandes estúdios com a produção independente, este norte-americano que nunca deixou de ser italiano entrou para a história cinematográfica no capítulo “transgressores”, mas garante ter cultivado seus valores na fé cristã.

Tal complexidade é o que faz de Conversas com Scorsese um labirinto intrigante em que se entra com facilidade, mas do qual se demora a sair tamanha a gama de referências e digressões.

Resultado de uma longa série de conversas com Richard Schickel, crítico e diretor de documentários, o livro é um registro excessivo (528 páginas) de um personagem que, vá lá, não tem mesmo entre suas qualidades mais notáveis a contenção e o laconismo.

Se não chega a ser uma obra-prima como Hitchcock/Truffaut: Entrevistas, que resultou do célebre encontro do mestre inglês com o diretor francês, Conversas com Scorsese tem os dois ingredientes básicos do gênero: o respeito mútuo entre entrevistado e entrevistador e a compreensão, cada vez mais rara, da entrevista como uma forma de conhecimento, de análise e autoanálise.

O cineasta do pancadão Taxi Driver não está, no entanto, num divã. Ainda que ostensivamente pessoal, raramente expõe sua intimidade. Pois a vida dura de filho de italianos pobres numa Nova York violenta e insalubre (ele nasceu Martin Marcantonio Luciano Scorsese em 1942), um colapso resultante de drogas mal dosadas ou a relação com os pais só interessam na medida em que iluminam sua obra.

Biografia é, aqui, filmografia. Não por acaso, o que mais fascina nessas Conversas é o relato, minucioso, dos anos de formação moral e intelectual de um garoto que viveu cercado pela máfia e pelo afeto desmedido da família.


E que, desde cedo, via o amor e a traição como o valor e a questão ética fundamentais de uma existência. O que se desdobraria em decisões graves, como a de abandonar a ideia de ser padre, e também na opção pelo cinema na efervescente New York University da década de 1960.

Robert de Niro

Mesmo antes de descobrir com clareza sua vocação – e sobretudo assumi-la –, Marty fazia incontáveis filmes em papel, desenhando cena a cena.

A brincadeira de criança se transformaria numa obsessão pelos storyboards, que ele produz até hoje, num planejamento detalhado de cada ângulo de seus filmes.

Nada muito estranho para quem morava nos cinemas e absorvia toda uma era de Hollywood como uma segunda natureza, um complemento óbvio da vida.

Na infância, ao ver os avós em prantos diante de um filme como Arroz Amargo, de Giuseppe de Santis, teve uma lição inesquecível: “A solenidade com que viam esses filmes, a solenidade com que eram discutidos por diferentes gerações me fez entender que aquele era o mundo real. A condição humana é aquilo”.

Scorsese fermentou essa consciência da “condição humana” com uma inquietação tão distante dos grandes estúdios quanto da Nouvelle Vague que florescia na Europa – mas que tinha em John Cassavetes um denominador possível.

No espírito coletivista da época, vivenciou encontros essenciais para, como diria o filósofo Friedrich Nietzsche, tornar-se quem realmente era. Vêm daí os primeiros trabalhos com os atores Harvey Keitel e Robert de Niro, com quem cultiva um entendimento telepático.


Uma relação de cumplicidade e risco que se prolongaria, ao longo dos anos, em Daniel Day-Lewis e, mais recentemente, Leonardo DiCaprio. Uma mesma ligação amorosa e cerebral que o uniu a Jack Nicholson em Os Infiltrados, longa que, inacreditavelmente, lhe daria o primeiro Oscar apenas em 2007.

Mais à vontade na Costa Leste norte-americana do que na Oeste, Scorsese é, a exemplo de Woody Allen, mas num sentido completamente diverso dele, um artista que não existiria numa cidade menos paradoxal do que Nova York.

À variedade de subculturas, sofisticação e vulgaridade de Manhattan e arredores corresponde sua consciência aguda de que sempre esteve à vontade em diferentes gêneros. É uma íntima coerência, que não só admite a contradição como também faz o seu elogio.

Em 26 longas, de ficção ou documentário, produzidos entre 1967 (ano de Quem Bate à Minha Porta?) e 2010 (Ilha do Medo), Scorsese transitou do drama bíblico ao musical. Nos trabalhos para a TV, filmou Michael Jackson (no clipe de Bad), Giorgio Armani (Made in Milan) e Fran Lebowitz, a neta mais louca da escritora Doroty Parker (Public Speaking).

Colecionador de cartazes originais de filmes e empenhado financiador do restauro de clássicos do cinema, Scorsese poderia passar, fácil, no clichê do idealista movido por um amor incondicional à arte – o que é apenas uma parte da história.

Mas o que o leva adiante, como fica claro em sua própria fala nessas Conversas, é o mote nem sempre assumido dos grandes artistas: botar sua obsessão na frente de tudo e fazer com que a vida, na medida do impossível, conflua para nutri-la e saciá-la.

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