Vicente Jorge: em um dia de trabalho normal, o sommelier afirma que prova entre 100 e 150 vinhos. (Reprodução/Reprodução)
Matheus Doliveira
Publicado em 5 de novembro de 2021 às 06h33.
Última atualização em 5 de novembro de 2021 às 11h19.
Testar toboáguas, avaliar resorts de luxo, ser zelador de ilhas paradisíacas: a lista de "melhor emprego do mundo" é ampla e varia conforme o gosto de cada um. Para quem é apaixonado por vinhos, por exemplo, a profissão do paulista Vicente Jorge não é nada mal. Ele é pago para viajar o mundo degustando os melhores vinhos que existem. "Eu sou contratado pelas importadoras brasileiras para caçar vinhos bons e trazê-los para portfólio delas", diz.
Durante quase 3 décadas como caçador de vinhos, Jorge já conheceu mais de 40 países e 1200 vinícolas. Mas esses não são os números que mais impressionam. Em um dia de trabalho normal, o sommelier afirma que prova entre 100 e 150 vinhos. Por ano são, em média, 2500 rótulos degustados.
"Até a pandemia chegar, eu costumava ficar pelo menos 180 dias do ano fora do Brasil, pingando de vinícola em vinícola. Nos últimos dois anos, eu tive que sossegar um pouco: recebia os vinhos na minha casa em São Paulo para degustar. Em janeiro de 2022 já retomo as viagens. A primeira vai ser um tour por 5 vinícolas do sul da França, passando por Rhône e Bordeaux. Quando eu fecho um contrato com uma importadora, defino um orçamento e já saio do Brasil com tudo organizado: o roteiro das vinícolas, voos, hotéis e transporte", explica o caçador de vinhos.
Nascido no interior de São Paulo, Jorge conheceu o mundo dos vinhos quando tinha 20 anos e estava trabalhando como motorista em Nova York. “Nas horas vagas, organizava a adega de mais de 1.500 garrafas do meu chefe. Ali, a minha curiosidade pelos rótulos começou, grande parte era Bordeaux e Borgonha”, conta.
“Após os jantares, eu provava tudo e comecei a entender as diferenças de estilo. Quando voltei para o Brasil, comecei a fazer todos os cursos sobre vinhos que eu achava. Foi assim que virei sommelier", diz. Desde essa época, Jorge ajudou a construir o portfólio de diversas importadoras nacionais. Entre os empregos mais recentes está o club de vinhos Wine, o maior do mundo, onde Jorge trabalhou por 9 anos. Confira a entrevista completa com o caçador de vinhos.
Como você conheceu o mundo dos vinhos?
Estou no mundo dos vinhos há 28 anos. Sou sommelier de formação e já fui professor de outros sommeliers, mas minha preocupação maior sempre foi trazer para o Brasil vinhos que fazem a diferença. Escolher um vinho caro e bom é fácil. O difícil é escolher um vinho bom e barato, que dê para vender no Brasil. Eu falo que sou um sommelier comercial. Eu busco bons vinhos que sejam vendáveis, que consigam driblar o excesso de taxas e o câmbio brasileiro.
O que é ser um caçador de vinhos?
Eu sou contratado pelas importadoras brasileiras para trazer bons vinhos de fora para o portfólio delas. Acredito que no Brasil, o termo “Wine Hunter” tenha nascido comigo. O brasileiro ainda não tem a cultura do vinho na mesa. Estamos formando essa cultura de 15 anos para cá. Nossa cultura é muito esnobe em relação aos vinhos. Muita gente pensa que vinho bom necessariamente é caro, mas vinícolas da Argentina, Chile e também do Brasil provam que existem ótimos vinhos de 30, 40 reais.
Meu trabalho é buscar marcas com esse perfil lá fora, porque ainda é muito difícil introduzir rótulos de centenas de reais na rotina dos brasileiros. Vão ter pessoas que vão querer aprender e ir para os vinhos mais caros, porque o paladar é evolutivo. Mas é necessário abastecer os 90% da população que não tem muito poder aquisitivo para beber vinhos muito caros.
Quantas viagens você faz por ano?
Até a pandemia chegar, eu costumava ficar pelo menos 180 dias do ano fora do Brasil, pingando de vinícola em vinícola. Nos últimos dois anos, eu tive que sossegar um pouco: recebia os vinhos na minha casa em São Paulo para degustar. Em janeiro de 2022 já retomo as viagens. A primeira vai ser um tour por 5 vinícolas do sul da França, passando por Rhône e Bordeaux. Quando eu fecho um contrato com uma importadora, defino um orçamento e já saio do Brasil com tudo organizado: o roteiro das vinícolas, voos, hotéis e transporte.
Quais são os perrengues da sua profissão?
Muita gente tem essa visão de que eu tenho o melhor emprego do mundo. Eu provo os melhores vinhos de graça, vou aos melhores restaurantes e melhores vinícolas do mundo. Tudo isso tem sim certo glamour, mas como todo trabalho, nem tudo são flores. Ficar 3 dias no verão da Apúlia com sua mala extraviada em Roma; dormir em saguão de aeroporto porque seu voo atrasou mais de oito horas; perder conexões entre voos porque a imigração demorou muito para checar seus documentos. São coisas que acontecem muito quando você trabalha viajando. Mas essa não é a pior parte: perrengue mesmo é você chegar para um produtor que iria te vender 100 mil garrafas e dizer para ele que a compra não pode ser fechada porque o vinho que ele quer te entregar não é igual ao que você degustou anos antes. A última vez que aconteceu foi na Espanha. Eu cancelei a compra de 200 mil garrafas de vinho porque o produtor mudou completamente a identidade do que eu tinha degustado e aprovado. Quando isso acontece, o primeiro passo é chamar o enólogo, que não está alinhado com o dono da vinícola. O enólogo é quem atesta que a produção está diferente do que o vinho que eu comprei. A pior parte é o cara indo te levar no aeroporto. Ele nem desliga o carro para você sair.
Quais características um caçador de vinhos precisa ter?
Além de entender sobre vinhos, você precisa ter muito jogo de cintura. Meu trabalho não é só degustar. Eu viajo para fechar negócio para as importadoras, então ter traquejo com os donos de vinícolas é fundamental. Para você criar esses relacionamentos é preciso entrar na cultura. Teve um produtor na Austrália que era metido a chef de cozinha. Ele adorava preparar um prato chamado canguru ao molho Syrah. Foi a pior coisa que eu já comi na minha vida, mas numa situação como essa você precisa encarar a situação sendo simpático. Tem gente que acha que está te agradando ao te levar para um restaurante depois que você provou 150 vinhos no dia. Às vezes você só quer uma cama e um misto quente, mas aí o anfitrião resolve abrir mais 12 vinhos para te agradar durante o jantar.
Quantos vinhos você prova por ano?
Eu chego a provar 2500 rótulos por ano. Nos últimos quase 30 anos de profissão, já visitei mais de 1200 vinícolas, e quando você precisa experimentar todo o portfólio, é difícil não provar pelo menos 100 rótulos diferentes todo dia. Fora do trabalho, eu acredito que bebo menos do que alguém que não trabalha com isso, porque quando você degusta muito você precisa preservar sua saúde. Minha adega tem 600 garrafas, mas já tive 1800. Se eu bebesse todo dia, não conseguiria degustar com precisão.
Qual o melhor vinho que você já provou? E o pior?
Eu não consigo escolher o melhor vinho, porque constantemente estou descobrindo um novo melhor vinho. É lógico que existem estilos de vinho e vinícolas que me agradam mais. Mas como meu trabalho influencia o que as pessoas bebem, não posso falar sobre isso. Eu consigo dizer que o último melhor vinho que tomei foi um Château Pavie 1966, que é o ano que eu nasci.
Os vinhos brasileiros estão melhores? O consumidor está mais exigente?
Eu tenho 55 anos e provo vinho desde os 16. Há 30 anos, o vinho brasileiro era um horror. Quem já tomou um fogo de Forestier Ugni Blanc ou um Château Duvalier nunca esquece. Eram acres, rústicos, completamente diferentes dos vinhos hoje. Os vinhos brasileiros estão cada vez melhores. Se você tiver que escolher entre um espumante nacional de 40 reais e um espumante europeu meia boca, fique com o brasileiro: é mais honesto e refrescante. Essa evolução também se deu porque o consumidor ficou mais crítico e buscou entender mais o que está tomando. A quantidade de gente querendo fazer curso de sommelier no Brasil é maior que em muitos países que eu já visitei.