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Cerveja 'puro malte' é realmente melhor?

Uma das inverdades que mais me incomodam é a imposição no imaginário dos bebedores de cerveja da relação direta entre cerveja puro malte e qualidade superior

Cada cereal/adjunto funciona como ferramentas técnicas e de criatividade para os cervejeiros. (Angelo DeSantis/Getty Images)
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Julia Storch

Publicado em 28 de janeiro de 2023 às 08h00.

Existem algumas inverdades que (ainda) circulam indiscriminadamente entre os apreciadores de cerveja. E uma das que mais me incomodam é a imposição no imaginário dos bebedores de cerveja da relação direta entre cerveja puro malte e qualidade superior.

Para começar o assunto, eu acredito que parte do aborrecimento pessoal com esse mito exista por que cervejeiros pioneiros do nosso mercado têm grande responsabilidade (sim, tem um tímido mea culpa aqui) no surgimento dele. As inocentes e cheias de boas intenções tentativas de “beerevangelizar” amigos e familiares para dar uma chance às artesanais inicialmente se resumiam em demonizar a presença de milho e arroz (entre outros – os adjuntos) nas comuns. Sem embasamento científico algum (e sem intenção) plantamos a ideia de uma hierarquia dentre os cereais que são usados na produção de cerveja. E nessa enquanto ao malte caberia a figura principal, com suprema importância, aos demais caberia apenas a marginalização.

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Mas não carregamos sozinhos essa culpa não. As grandes cervejarias, que já não tinham nenhuma vergonha em usar esses adjuntos (ou cereais não malteados, não-maltados, ou apenas carboidratos) em seus produtos apenas como forma de simplificá-los e barateá-los, foram geniais no contra ataque. Abraçaram essa falsa hierarquia e passaram a fazer produtos com características sensoriais bem similares às “cervejinhas”, mas com maior valor por serem puro malte.

E a utilização desse termo – puro – propiciou ainda mais confusão na cabeça das pessoas que começam a descobrir os sabores das cervejas artesanais. Ele é uma clara referência a Reinheitsgebot - a lei de pureza da Bavária de 1516. Essa que é a primeira lei sobre alimentos da nossa história mencionava que uma cerveja deveria ter apenas que água, cevada e lúpulo como “exigência de pureza” (tradução livre do termo alemão). Sabemos que a lei tinha mais relação com a possibilidade de taxar o uso de lúpulo, e de economizar trigo para a produção de pães, mas a força do termo confundiu e confunde mesmo os cervejeiros (produtores e admiradores) remetendo a uma baixa qualidade das cervejas “contaminadas” por outros ingredientes.

Porém na real não existe tal hierarquia. Cada cereal/adjunto funciona como ferramentas técnicas e de criatividade para os cervejeiros. E os melhores cervejeiros do mundo usam e abusam delas. Não é necessário nem entrar nas bastante complexas (e polêmicas) Pastry Stouts – tem sobremesas entre os ingredientes - e Mikshakes IPAs – tem lactose e frutas. Tradicionalmente as cervejas belgas estão longe de usarem esse termo ou de respeitarem essa lei. Milho (para leveza e maior brilho), especiarias e frutas são quase certezas nas receitas. E até cervejas modernas como as Hazy IPAs que usam aveia como ingrediente estão absurdamente longe – até 30% distantes! - de serem puro malte.

*Rodrigo Louro é biólogo e pós-doutor em Bioquímica Molecular pelo European Molecular Biology Laboratory, França e sócio-fundador da Sinnatrah Cervejaria-Escola.

As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião de Exame.

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