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Antônio Vieira ganha nova edição de seus sermões

Tema dos sermões é dedicado não apenas à análise de assuntos eclesiásticos mas também a questões como o amor, a morte e a justiça

Se vivesse hoje, Padre Antônio Vieira escreveria, em jornais ou blogs, textos incendiários sobre o estado do mundo (Creative Commons)
DR

Da Redação

Publicado em 3 de fevereiro de 2012 às 11h09.

São Paulo - Antônio Vieira (1608-1697), o padre português, foi um prestidigitador do Verbo, um teórico pragmático, um conservador revolucionário: tudo acatava e tudo subvertia. Torcia os versículos da Bíblia à medida dos seus desejos e construía com palavras o império perfeito que a vida lhe recusava. Se vivesse hoje escreveria, em jornais ou blogs, textos incendiários sobre o estado do mundo. As suas opiniões pró-israelitas o impediriam de ganhar o Nobel da Literatura, que merecia. E os críticos o desdenhariam, pelo excesso barroco da sua escrita ou pela vertigem acrobática das suas ideias – bem como pelo furor da sua intervenção pública, que o tornaria, talvez não um padre, mas um político autêntico, pregador e profeta.

Deixou-se fascinar pelas crenças milenaristas em voga no século 17 porque o empurravam para o futuro, salvando-o do nevoeiro resignado da época. Era um homem de ação, com uma vontade indômita de transformar o mundo e de restituir a Portugal a glória perdida. Dos 33 aos 44 anos, correu as cortes da Europa, como embaixador informal de dom João IV, tentando vender aos amigos da Espanha a ideia de Portugal independente. Não foi muito feliz nessas peregrinações diplomáticas.

Em certo momento, chegou a aconselhar o rei a que subornasse os altos funcionários holandeses para comprar Pernambuco da Holanda (com o dinheiro dos judeus, que sempre se esforçou por fazer regressar a Portugal) ou, finalmente, que entregasse definitivamente Pernambuco a troco da paz e da independência do resto da colônia – o que fez com que o apelidassem de “o Judas do Brasil”. Mas o seu talento de orador impressionava, e os ensinamentos e contatos que foi fazendo pela Europa se revelariam extremamente úteis.

Na sua formação ideológica avultaram as conversas tidas em Amsterdã com o rabino Menasse Ben Israel, que o levaram a acreditar numa segunda vinda do Messias, para reconduzir à Palestina as Dez Tribos da Dispersão, que estariam nas Américas, e proceder assim à salvação temporal do mundo. Essas teorias atearam o espírito desesperadamente otimista de Vieira, lançando nele o projeto de um Quinto Império português. A ideia alimentaria os seus dois magnos e heterodoxos projetos de escrita (ambos inconclusos): a História do Futuro e a Clavis Prophetarum (Chave dos Profetas).


Pouco antes de morrer, definiria os seus sermões como meras “choupanas”, por contraste com os “palácios altíssimos” que sonhava edificar com a sua Clavis Prophetarum. Na magnífica introdução à nova edição dos Sermões de Vieira, escreve o crítico Alfredo Bosi, organizador do volume: “Que a sublimação de tantas decepções fosse alentada pelo desejo de um povo que viu sepultas nas areias de Alcácer Quibir as últimas esperanças de manter a glória de mais de um século de navegações, descobertas e conquistas, parece hipótese plausível”. Mas os tais “palácios” celestes foram o pretexto utilizado por aqueles que o invejavam para o perseguirem e descredibilizarem.

Ainda hoje há quem procure diminuir ideologicamente a grandeza do seu legado literário e filosófico. Mas os delírios proféticos de Vieira ajudaram-no a pensar livremente em temas então impensáveis, como o da essencial igualdade de todos os seres humanos. Consciente de que o sucesso econômico do Brasil da época dependia da escravatura, não chegou a ser antiescravagista, mas tentou convencer os senhores a deixarem de usar a tortura e escandalizou-os ao pregar aos escravos, na Bahia, comparando o martírio deles ao Calvário de Cristo: “Em um Engenho sois imitadores de Cristo crucificado”.

Não hesitou sequer em xingar o próprio Deus, num sermão de valente beleza (Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal Contra as de Holanda, na Bahia, em 1640), por abandonar os portugueses e dar a vitória aos “hereges” holandeses, arrasando assim os seus créditos divinos: “Quero eu, Senhor, converter-vos a vós”. Pugnou arduamente pela liberdade dos índios do Brasil (que queria catequizar, mas não destruir nem escravizar), entre os quais viveu, por longos períodos. Escreveu um catecismo elementar em seis idiomas tribais. Os índios tratavam-no por Paiaçu, isto é, “Pai Grande”.

Consciente de que, como escreveu, “só se governa pelos sentidos”, empregou os bons dinheiros que granjeara durante o seu período de agente publicitário de Portugal em “muitos sinos, muitas imagens de Cristo e de Nossa Senhora e de vários santos (…) e até máscaras e cascavéis para as danças das mesmas procissões, para mostrar aos gentios que a lei dos cristãos não é triste”. As desilusões e ataques que sofreu tornaram-no muitas vezes furioso, mas nunca o vergaram à tristeza. Nessa determinação para a alegria, Vieira foi, de fato, muito mais brasileiro do que português – e não será por acaso que o Brasil o lê e estuda muito mais do que Portugal.


Relâmpago Mental

Além da “política do céu” (na expressão certeira do crítico Alcir Pécora), ocupou-se Vieira em analisar todos os assuntos eternos da humanidade: o amor e a morte, a ambição e a inveja, o poder e a justiça. Refletiu também, com inultrapassável clareza e brilho, sobre a própria escrita: “O melhor retrato de cada um é aquilo que escreve. O Corpo retrata-se com o Pincel, a Alma com a Pena” (Sermão de Santo Inácio, 1669). O Sermão da Sexagésima, de 1655, mais do que uma análise crítica da pregação e dos pregadores, é um tratado sobre a arte de bem escrever.

O reconhecimento que teve em vida, conquistou-o Antônio Vieira graças ao seu talento oratório – tão inquietante que acabou por ser proibido de o praticar, depois de julgado pela Inquisição. A sua única vitória política foi a criação da Companhia de Comércio para o Brasil, em 1649, que se manifestaria de grande utilidade para a reconquista de Pernambuco, em 1654. Conseguiu autorização do rei para que os cristãos-novos investissem nessa companhia os seus capitais – o que a Inquisição não lhe perdoou. Anos mais tarde, depois da morte de dom João IV (em 1656), uma carta em que profetizava a ressurreição do rei forneceria aos atentos e vingativos senhores do Santo Ofício o pretexto para a sua prisão e julgamento. Exilou-se em Roma, onde foi acarinhado pela convertida rainha Cristina da Suécia, que o convidou para permanecer como seu confessor particular. Vieira declinou os convites e as mordomias para regressar a Portugal, munido de um documento papal que o libertava de qualquer jurisdição da Inquisição portuguesa.

Em 1681, com 73 anos, Antônio Vieira embarcou pela sétima e derradeira vez para a Bahia, para se entregar novamente ao trabalho missionário. Aí morreria, 16 anos depois, desgostoso, roído por intrigas que, de novo, lhe haviam retirado o direito a pregar. Seria ilibado dessas últimas acusações – mas a notícia chegou já depois da sua morte. Desaparecia assim, no desassossego solitário que escolheu como modo de vida, o menino que aportara a São Salvador da Bahia aos 6 anos de idade e que se deixara seduzir pelo espírito empreendedor e ávido de conhecimento dos jesuítas, a ponto de fugir de casa aos 15 anos para se juntar a eles – segundo reza a lenda, depois de um “estalo”, um relâmpago mental que terá sentido diante da imagem da Senhora das Maravilhas. Foi um lúcido alucinado. “Definir-se e arder, isso é amar”, escreveu. Afogou todas as decepções no mar sem fundo da língua portuguesa, que transfigurou: ainda hoje as suas palavras caminham diante de nós como trovões de uma verdade maior do que o tempo.

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São Paulo - Antônio Vieira (1608-1697), o padre português, foi um prestidigitador do Verbo, um teórico pragmático, um conservador revolucionário: tudo acatava e tudo subvertia. Torcia os versículos da Bíblia à medida dos seus desejos e construía com palavras o império perfeito que a vida lhe recusava. Se vivesse hoje escreveria, em jornais ou blogs, textos incendiários sobre o estado do mundo. As suas opiniões pró-israelitas o impediriam de ganhar o Nobel da Literatura, que merecia. E os críticos o desdenhariam, pelo excesso barroco da sua escrita ou pela vertigem acrobática das suas ideias – bem como pelo furor da sua intervenção pública, que o tornaria, talvez não um padre, mas um político autêntico, pregador e profeta.

Deixou-se fascinar pelas crenças milenaristas em voga no século 17 porque o empurravam para o futuro, salvando-o do nevoeiro resignado da época. Era um homem de ação, com uma vontade indômita de transformar o mundo e de restituir a Portugal a glória perdida. Dos 33 aos 44 anos, correu as cortes da Europa, como embaixador informal de dom João IV, tentando vender aos amigos da Espanha a ideia de Portugal independente. Não foi muito feliz nessas peregrinações diplomáticas.

Em certo momento, chegou a aconselhar o rei a que subornasse os altos funcionários holandeses para comprar Pernambuco da Holanda (com o dinheiro dos judeus, que sempre se esforçou por fazer regressar a Portugal) ou, finalmente, que entregasse definitivamente Pernambuco a troco da paz e da independência do resto da colônia – o que fez com que o apelidassem de “o Judas do Brasil”. Mas o seu talento de orador impressionava, e os ensinamentos e contatos que foi fazendo pela Europa se revelariam extremamente úteis.

Na sua formação ideológica avultaram as conversas tidas em Amsterdã com o rabino Menasse Ben Israel, que o levaram a acreditar numa segunda vinda do Messias, para reconduzir à Palestina as Dez Tribos da Dispersão, que estariam nas Américas, e proceder assim à salvação temporal do mundo. Essas teorias atearam o espírito desesperadamente otimista de Vieira, lançando nele o projeto de um Quinto Império português. A ideia alimentaria os seus dois magnos e heterodoxos projetos de escrita (ambos inconclusos): a História do Futuro e a Clavis Prophetarum (Chave dos Profetas).


Pouco antes de morrer, definiria os seus sermões como meras “choupanas”, por contraste com os “palácios altíssimos” que sonhava edificar com a sua Clavis Prophetarum. Na magnífica introdução à nova edição dos Sermões de Vieira, escreve o crítico Alfredo Bosi, organizador do volume: “Que a sublimação de tantas decepções fosse alentada pelo desejo de um povo que viu sepultas nas areias de Alcácer Quibir as últimas esperanças de manter a glória de mais de um século de navegações, descobertas e conquistas, parece hipótese plausível”. Mas os tais “palácios” celestes foram o pretexto utilizado por aqueles que o invejavam para o perseguirem e descredibilizarem.

Ainda hoje há quem procure diminuir ideologicamente a grandeza do seu legado literário e filosófico. Mas os delírios proféticos de Vieira ajudaram-no a pensar livremente em temas então impensáveis, como o da essencial igualdade de todos os seres humanos. Consciente de que o sucesso econômico do Brasil da época dependia da escravatura, não chegou a ser antiescravagista, mas tentou convencer os senhores a deixarem de usar a tortura e escandalizou-os ao pregar aos escravos, na Bahia, comparando o martírio deles ao Calvário de Cristo: “Em um Engenho sois imitadores de Cristo crucificado”.

Não hesitou sequer em xingar o próprio Deus, num sermão de valente beleza (Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal Contra as de Holanda, na Bahia, em 1640), por abandonar os portugueses e dar a vitória aos “hereges” holandeses, arrasando assim os seus créditos divinos: “Quero eu, Senhor, converter-vos a vós”. Pugnou arduamente pela liberdade dos índios do Brasil (que queria catequizar, mas não destruir nem escravizar), entre os quais viveu, por longos períodos. Escreveu um catecismo elementar em seis idiomas tribais. Os índios tratavam-no por Paiaçu, isto é, “Pai Grande”.

Consciente de que, como escreveu, “só se governa pelos sentidos”, empregou os bons dinheiros que granjeara durante o seu período de agente publicitário de Portugal em “muitos sinos, muitas imagens de Cristo e de Nossa Senhora e de vários santos (…) e até máscaras e cascavéis para as danças das mesmas procissões, para mostrar aos gentios que a lei dos cristãos não é triste”. As desilusões e ataques que sofreu tornaram-no muitas vezes furioso, mas nunca o vergaram à tristeza. Nessa determinação para a alegria, Vieira foi, de fato, muito mais brasileiro do que português – e não será por acaso que o Brasil o lê e estuda muito mais do que Portugal.


Relâmpago Mental

Além da “política do céu” (na expressão certeira do crítico Alcir Pécora), ocupou-se Vieira em analisar todos os assuntos eternos da humanidade: o amor e a morte, a ambição e a inveja, o poder e a justiça. Refletiu também, com inultrapassável clareza e brilho, sobre a própria escrita: “O melhor retrato de cada um é aquilo que escreve. O Corpo retrata-se com o Pincel, a Alma com a Pena” (Sermão de Santo Inácio, 1669). O Sermão da Sexagésima, de 1655, mais do que uma análise crítica da pregação e dos pregadores, é um tratado sobre a arte de bem escrever.

O reconhecimento que teve em vida, conquistou-o Antônio Vieira graças ao seu talento oratório – tão inquietante que acabou por ser proibido de o praticar, depois de julgado pela Inquisição. A sua única vitória política foi a criação da Companhia de Comércio para o Brasil, em 1649, que se manifestaria de grande utilidade para a reconquista de Pernambuco, em 1654. Conseguiu autorização do rei para que os cristãos-novos investissem nessa companhia os seus capitais – o que a Inquisição não lhe perdoou. Anos mais tarde, depois da morte de dom João IV (em 1656), uma carta em que profetizava a ressurreição do rei forneceria aos atentos e vingativos senhores do Santo Ofício o pretexto para a sua prisão e julgamento. Exilou-se em Roma, onde foi acarinhado pela convertida rainha Cristina da Suécia, que o convidou para permanecer como seu confessor particular. Vieira declinou os convites e as mordomias para regressar a Portugal, munido de um documento papal que o libertava de qualquer jurisdição da Inquisição portuguesa.

Em 1681, com 73 anos, Antônio Vieira embarcou pela sétima e derradeira vez para a Bahia, para se entregar novamente ao trabalho missionário. Aí morreria, 16 anos depois, desgostoso, roído por intrigas que, de novo, lhe haviam retirado o direito a pregar. Seria ilibado dessas últimas acusações – mas a notícia chegou já depois da sua morte. Desaparecia assim, no desassossego solitário que escolheu como modo de vida, o menino que aportara a São Salvador da Bahia aos 6 anos de idade e que se deixara seduzir pelo espírito empreendedor e ávido de conhecimento dos jesuítas, a ponto de fugir de casa aos 15 anos para se juntar a eles – segundo reza a lenda, depois de um “estalo”, um relâmpago mental que terá sentido diante da imagem da Senhora das Maravilhas. Foi um lúcido alucinado. “Definir-se e arder, isso é amar”, escreveu. Afogou todas as decepções no mar sem fundo da língua portuguesa, que transfigurou: ainda hoje as suas palavras caminham diante de nós como trovões de uma verdade maior do que o tempo.

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