2012 comemora o Ano Nelson Rodrigues
Com seu olhar ao mesmo tempo trágico e épico, o centenário dramaturgo nunca deixou de ser nosso contemporâneo
Da Redação
Publicado em 31 de janeiro de 2012 às 10h01.
São Paulo - Da precoce carreira jornalística nos anos 30 à fama que lhe renderá homenagens neste ano, em que se comemora seu centenário, a vida e a carreira de Nelson Rodrigues percorreram a história brasileira no século 20. Foi ele quem criou o teatro moderno nacional, com Vestido de Noiva, em 1943, quem mais exaltou o futebol da geração de Pelé nos anos 60, quem conquistou inimizades por se alinhar à ditadura dos anos 1970.
Com sua obra, suas controvérsias e a própria biografia, Nelson Rodrigues inscreveu-se como um dos polemistas mais bem-humorados do país, o hiperbólico cronista do futebol e nosso maior dramaturgo. Só depois de sua morte, no entanto, em 1980, passaria a ser um raro caso de unanimidade inteligente (o que, para ele, era um oxímoro), com montagens do diretor Antunes Filho para suas peças, o estudo de sua obra pelo crítico Sábato Magaldi e, em 1992, o lançamento da biografia O Anjo Pornográfico, do jornalista Ruy Castro. Desde então, Nelson foi rediscutido, remontado, relançado.
No primeiro mês de 2012, Bravo! dá início ao “ano Nelson Rodrigues”, que prevê diversas atividades, como espetáculos teatrais, relançamentos e tradução de parte de sua obra, exposição em São Paulo e Recife, cidade-natal de Nelson, e a divulgação de um curta-metragem antes considerado desaparecido: Fragmentos de Dois Escritores, do dramaturgo João Bethencourt, em que Nelson aparece.
Influência para dramaturgos e cronistas, Nelson Rodrigues comemora 100 anos sem ter envelhecido. Nos momentos transcendentais que pontuam suas histórias, no retrato cru que fez da sociedade brasileira, nos temas e personagens que povoam sua obra, a única marca do tempo é a da eterna atualidade.
Era outro tempo, em um Brasil imemorial. Era a época em que as mães e as viúvas tinham furores de Sarah Bernhardt, a célebre atriz francesa do século 19. As moças na rua, as datilógrafas, as colegiais andavam pelas calçadas com um charme de Joana d’Arc. No futebol, a bola tinha um instinto clarividente e infalível que a fazia acompanhar o verdadeiro craque. O próprio tempo era uma convenção que não existia nem para o craque, nem para a mulher bonita.
Nelson Rodrigues considerava a época em que viveu trágica e épica. Como cronista, desenhava contornos de duelo em uma simples briga e revestia, como costumava dizer, a mais sórdida pelada de futebol de uma complexidade shakespeariana. Nas crônicas que escreveu nos anos 60, Nelson carregou o século passado para fora do tempo; transformou o cotidiano óbvio em momentos transcendentais.
O olhar aguçado, Nelson desenvolveu desde cedo, quando deu início a sua carreira de jornalista aos 13 anos e meio, em A Manhã. No jornal de seu pai, recheava de drama as histórias com mortes mais banais e tornou-se perito em recriar os enredos dos namorados que se matavam por amor. Vinte anos depois, na década de 1950, o doce amargo das ruas faria com que sua fama explodisse na coluna diária A Vida Como Ela É..., no jornal Última Hora, de Samuel Wainer.
Em paralelo às crônicas, as pinceladas breves e expressionistas inspiradas no dia a dia carioca pintaram também outros quadros. Em 1953, dois anos depois de estrear sua famosa coluna, Nelson escreveu A Falecida, que dá início à fase das tragédias cariocas em sua obra teatral. As oito peças que integram esse conjunto delimitado pelo estudioso Sábato Magaldi estão coladas nos tipos e nas situações suburbanos de então, circunscritas à Zona Norte do Rio, à semelhança de A Vida Como Ela É.... Os saltos transcendentais se evidenciam tanto nas falas dos personagens quanto nas rubricas para os atores.
“Nelson Rodrigues não fica démodé porque fala sobre a vida, e a vida não é datada”, diz Arnaldo Jabor, cineasta que nos anos 70 filmou de Nelson a peça Toda Nudez Será Castigada (1965)e o romance O Casamento (1966). E as remontagens de seus diversos textos por alguns dos grupos mais relevantes de hoje não cessam, apenas comprovando sua atemporalidade. Desde os anos 90, já levaram Nelson para os palcos os diretores Eduardo Tolentino, com o Grupo Tapa, o encenador Rodolfo García Vázquez, dos Satyros, o mineiro Gabriel Villela, Cibele Forjaz, com sua Companhia Livre, a carioca Armazém Companhia de Teatro, com o diretor Paulo de Moraes, e a mineira Yara de Novaes, entre outros.
“Por que você não escreve sobre pessoas normais?” Se tivesse vindo de qualquer pessoa, que não Manuel Bandeira, a pergunta não teria doído tanto. Mas foi o poeta, que desde a primeira peça de Nelson, A Mulher sem Pecado (1941), não lhe poupava elogios, quem jogou um grande balde de água fria no dramaturgo logo após a leitura de Senhora dos Afogados, de 1947. Esse texto teve o mesmo destino de Álbum de Família, do ano anterior – sina de que Anjo Negro, escrita entre uma e outra, escapou por pouco: a censura. A incompreensão de Bandeira ecoava o incômodo do “teatro desagradável” que Nelson vinha fazendo. “São obras pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir o tifo e a malária na plateia”, descrevia o próprio autor – que no entanto achava que estava, justamente, falando de pessoas normais em sua obra.
Inventário das paixões humanas
“Nelson fez um trabalho de visualização humana único. Sua obra é o tratado mais completo sobre as classes médias brasileiras, sobre seu comportamento psicológico, sexual e linguístico”, diz Jabor. Os instantâneos do grande retratista acabam por superar a efemeridade e conquistar o status de um “rico inventário das paixões humanas”, nas palavras de Magaldi. “Em qualquer réplica, ou frase de efeito, à primeira vista, apenas escandaloso, o dramaturgo esconde uma verdade psicológica mais sólida que a percebida pelo verniz social”, postula o estudioso. A alta voltagem sexual vem romper uma capa de inocência, hipocrisia e moralismo de fachada da classe média.
Os sacrifícios da família de Os Sete Gatinhos (1958) para que a caçula se case de véu e grinalda ou a aspiração maior de Zulmira, de A Falecida (1953), de ter um enterro de luxo decupam os desejos persistentes da classe média, emoldurados em sexo reprimido e deformado por costumes morais, sociais e religiosos. Os desvios do lar são belamente sintetizados por Peixoto, genro e funcionário de um empresário milionário em Otto Lara Resende ou Bonitinha, Mas Ordinária, de 1962. Conversando no bar com um colega, Peixoto sentencia: “Toda a família tem um momento em que começa a apodrecer. Percebeu? Pode ser a família mais decente, mais digna do mundo. E lá, um dia, aparece um tio pederasta, uma irmã lésbica, um pai ladrão, um cunhado louco. Tudo ao mesmo tempo”.
Homofobia e racismo
“A sensação que tenho é que Nelson anda reescrevendo as peças em cima das notícias dos jornais”, diz, brincando, o diretor paulistano Marco Antônio Braz, devoto fervoroso do evangelho rodriguiano. Na sua mais recente montagem de O Beijo no Asfalto (1960), em cartaz no Teatro de Arena Eugênio Kusnet, em São Paulo, ele vê saltar da trama discursos latentes da homofobia ou do bullying que estão na pauta do dia.
No enredo, o jovem protagonista Arandir presencia o atropelamento de um homem e corre para acudi-lo. Ajoelha-se, segura a cabeça do sujeito e beija-o, compadecido, antes do último suspiro. O beijo se transforma em uma acusação escandalosa de homossexualismo, que evoluirá para desconfiança dentro de sua própria família e, por fim, seu assassinato.
Anjo Negro, de 1946, foi o ponto de partida para a discussão sobre racismo que retornou à ordem do dia em 2006, na montagem do diretor alemão Frank Castorf, do Teatro Volksbühne, que juntou Nelson Rodrigues ao compatriota Heiner Müller. Ismael e Virgínia, que no texto de Nelson vivem uma relação de violência permeada por infanticídios motivados pela cor da pele dos filhos, foram mergulhados no contexto de uma revolta de escravos na Jamaica.
Para além de temas ainda contemporâneos como esses que pontuam a obra de Nelson, a “meditação sobre o amor e morte”, questão fundamental, circunscreve seu teatro. Tão eterno quanto esse tema, o universo do chamado “Flor de obsessão”, como Nelson foi definido pelos seus amigos, era delimitado por outras questões recorrentes nos textos, como o tabu desnudado, a obsessão pela pureza, e a ambivalência do mundo familiar e do mundo público. Os temas vinham regidos por procedimentos também marcados, como os personagens que transformava em caricaturas, as máximas e a fala coloquial. Tudo para expressar uma verdade interior, sem sutilezas, sem censura, com “gosto em devassar a intimidade do indivíduo, libertando-o da carga censora que disciplina o convívio social”, comenta Magaldi.
Derrubar as máscaras para destrinchar o homem por trás do verniz social, cavoucar sua essência por entre os acontecimentos do dia a dia. Esses procedimentos já eram, na primeira metade do século passado, associados a um nome que seria entronizado nos anos seguintes: Sigmund Freud (1856-1939). Suas ideias eram na década de 1930 vulgarizadas pelos jornais, explica Ruy Castro, e ele era então “o tarado oficial”.
Nelson não leu os preceitos que fundariam a psicanálise, mas foi e seria muito mais com o passar do tempo associado a ela. Tanto pelos tabus que trazia à tona quanto pelas estruturas de alguns textos que faziam do palco quase um divã – nos planos da realidade e do delírio em que se passa Vestido de Noiva (1943), por exemplo, ou no monólogo Valsa Nº 6 (1951), em que a autorreflexão de uma adolescente destila angústias, delírios e abstrações em busca de sua identidade.
Inconsciente coletivo
No quesito inconsciente, Antunes Filho prospectou mais fundo e trouxe à baila outras camadas da obra. Nas montagens que reúnem diversas peças do dramaturgo – Nelson Rodrigues: O Eterno Retorno (1981), Nelson 2 Rodrigues (1984) e Paraíso Zona Norte (1989) –, Antunes Filho apoiou-se na teoria dos arquétipos do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung e nas teorias simbólicas do mitólogo romeno Mircea Eliade. Recentemente, na montagem de A Falecida Vapt-Vupt (2009), recorreu também ao psicanalista francês Jacques Lacan. “Eu fui para o inconsciente estrutural, coletivo: a cultura que foi imposta a todos”, explica o diretor do Centro de Pesquisa Teatral.
As camadas mais profundas que se revelam nos textos de Nelson estabelecem entre estudiosos a ideia de uma obra que jamais será datada. Como diz Antunes Filho, Nelson está sempre na esquina, esperando alguma coisa acontecer. “A gente ouve o rumor permanente daquelas vozes que saltam como se fossem explosivos, pólvoras. São as frases objetivas, altissonantes, derradeiras. Os personagens falam aquilo, mas há um rumor por baixo, por fora.” Um ruído de fundo que, seja no silêncio pré-unanimidade, seja no alvoroço dos eventos centenários, não esmorece.
São Paulo - Da precoce carreira jornalística nos anos 30 à fama que lhe renderá homenagens neste ano, em que se comemora seu centenário, a vida e a carreira de Nelson Rodrigues percorreram a história brasileira no século 20. Foi ele quem criou o teatro moderno nacional, com Vestido de Noiva, em 1943, quem mais exaltou o futebol da geração de Pelé nos anos 60, quem conquistou inimizades por se alinhar à ditadura dos anos 1970.
Com sua obra, suas controvérsias e a própria biografia, Nelson Rodrigues inscreveu-se como um dos polemistas mais bem-humorados do país, o hiperbólico cronista do futebol e nosso maior dramaturgo. Só depois de sua morte, no entanto, em 1980, passaria a ser um raro caso de unanimidade inteligente (o que, para ele, era um oxímoro), com montagens do diretor Antunes Filho para suas peças, o estudo de sua obra pelo crítico Sábato Magaldi e, em 1992, o lançamento da biografia O Anjo Pornográfico, do jornalista Ruy Castro. Desde então, Nelson foi rediscutido, remontado, relançado.
No primeiro mês de 2012, Bravo! dá início ao “ano Nelson Rodrigues”, que prevê diversas atividades, como espetáculos teatrais, relançamentos e tradução de parte de sua obra, exposição em São Paulo e Recife, cidade-natal de Nelson, e a divulgação de um curta-metragem antes considerado desaparecido: Fragmentos de Dois Escritores, do dramaturgo João Bethencourt, em que Nelson aparece.
Influência para dramaturgos e cronistas, Nelson Rodrigues comemora 100 anos sem ter envelhecido. Nos momentos transcendentais que pontuam suas histórias, no retrato cru que fez da sociedade brasileira, nos temas e personagens que povoam sua obra, a única marca do tempo é a da eterna atualidade.
Era outro tempo, em um Brasil imemorial. Era a época em que as mães e as viúvas tinham furores de Sarah Bernhardt, a célebre atriz francesa do século 19. As moças na rua, as datilógrafas, as colegiais andavam pelas calçadas com um charme de Joana d’Arc. No futebol, a bola tinha um instinto clarividente e infalível que a fazia acompanhar o verdadeiro craque. O próprio tempo era uma convenção que não existia nem para o craque, nem para a mulher bonita.
Nelson Rodrigues considerava a época em que viveu trágica e épica. Como cronista, desenhava contornos de duelo em uma simples briga e revestia, como costumava dizer, a mais sórdida pelada de futebol de uma complexidade shakespeariana. Nas crônicas que escreveu nos anos 60, Nelson carregou o século passado para fora do tempo; transformou o cotidiano óbvio em momentos transcendentais.
O olhar aguçado, Nelson desenvolveu desde cedo, quando deu início a sua carreira de jornalista aos 13 anos e meio, em A Manhã. No jornal de seu pai, recheava de drama as histórias com mortes mais banais e tornou-se perito em recriar os enredos dos namorados que se matavam por amor. Vinte anos depois, na década de 1950, o doce amargo das ruas faria com que sua fama explodisse na coluna diária A Vida Como Ela É..., no jornal Última Hora, de Samuel Wainer.
Em paralelo às crônicas, as pinceladas breves e expressionistas inspiradas no dia a dia carioca pintaram também outros quadros. Em 1953, dois anos depois de estrear sua famosa coluna, Nelson escreveu A Falecida, que dá início à fase das tragédias cariocas em sua obra teatral. As oito peças que integram esse conjunto delimitado pelo estudioso Sábato Magaldi estão coladas nos tipos e nas situações suburbanos de então, circunscritas à Zona Norte do Rio, à semelhança de A Vida Como Ela É.... Os saltos transcendentais se evidenciam tanto nas falas dos personagens quanto nas rubricas para os atores.
“Nelson Rodrigues não fica démodé porque fala sobre a vida, e a vida não é datada”, diz Arnaldo Jabor, cineasta que nos anos 70 filmou de Nelson a peça Toda Nudez Será Castigada (1965)e o romance O Casamento (1966). E as remontagens de seus diversos textos por alguns dos grupos mais relevantes de hoje não cessam, apenas comprovando sua atemporalidade. Desde os anos 90, já levaram Nelson para os palcos os diretores Eduardo Tolentino, com o Grupo Tapa, o encenador Rodolfo García Vázquez, dos Satyros, o mineiro Gabriel Villela, Cibele Forjaz, com sua Companhia Livre, a carioca Armazém Companhia de Teatro, com o diretor Paulo de Moraes, e a mineira Yara de Novaes, entre outros.
“Por que você não escreve sobre pessoas normais?” Se tivesse vindo de qualquer pessoa, que não Manuel Bandeira, a pergunta não teria doído tanto. Mas foi o poeta, que desde a primeira peça de Nelson, A Mulher sem Pecado (1941), não lhe poupava elogios, quem jogou um grande balde de água fria no dramaturgo logo após a leitura de Senhora dos Afogados, de 1947. Esse texto teve o mesmo destino de Álbum de Família, do ano anterior – sina de que Anjo Negro, escrita entre uma e outra, escapou por pouco: a censura. A incompreensão de Bandeira ecoava o incômodo do “teatro desagradável” que Nelson vinha fazendo. “São obras pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir o tifo e a malária na plateia”, descrevia o próprio autor – que no entanto achava que estava, justamente, falando de pessoas normais em sua obra.
Inventário das paixões humanas
“Nelson fez um trabalho de visualização humana único. Sua obra é o tratado mais completo sobre as classes médias brasileiras, sobre seu comportamento psicológico, sexual e linguístico”, diz Jabor. Os instantâneos do grande retratista acabam por superar a efemeridade e conquistar o status de um “rico inventário das paixões humanas”, nas palavras de Magaldi. “Em qualquer réplica, ou frase de efeito, à primeira vista, apenas escandaloso, o dramaturgo esconde uma verdade psicológica mais sólida que a percebida pelo verniz social”, postula o estudioso. A alta voltagem sexual vem romper uma capa de inocência, hipocrisia e moralismo de fachada da classe média.
Os sacrifícios da família de Os Sete Gatinhos (1958) para que a caçula se case de véu e grinalda ou a aspiração maior de Zulmira, de A Falecida (1953), de ter um enterro de luxo decupam os desejos persistentes da classe média, emoldurados em sexo reprimido e deformado por costumes morais, sociais e religiosos. Os desvios do lar são belamente sintetizados por Peixoto, genro e funcionário de um empresário milionário em Otto Lara Resende ou Bonitinha, Mas Ordinária, de 1962. Conversando no bar com um colega, Peixoto sentencia: “Toda a família tem um momento em que começa a apodrecer. Percebeu? Pode ser a família mais decente, mais digna do mundo. E lá, um dia, aparece um tio pederasta, uma irmã lésbica, um pai ladrão, um cunhado louco. Tudo ao mesmo tempo”.
Homofobia e racismo
“A sensação que tenho é que Nelson anda reescrevendo as peças em cima das notícias dos jornais”, diz, brincando, o diretor paulistano Marco Antônio Braz, devoto fervoroso do evangelho rodriguiano. Na sua mais recente montagem de O Beijo no Asfalto (1960), em cartaz no Teatro de Arena Eugênio Kusnet, em São Paulo, ele vê saltar da trama discursos latentes da homofobia ou do bullying que estão na pauta do dia.
No enredo, o jovem protagonista Arandir presencia o atropelamento de um homem e corre para acudi-lo. Ajoelha-se, segura a cabeça do sujeito e beija-o, compadecido, antes do último suspiro. O beijo se transforma em uma acusação escandalosa de homossexualismo, que evoluirá para desconfiança dentro de sua própria família e, por fim, seu assassinato.
Anjo Negro, de 1946, foi o ponto de partida para a discussão sobre racismo que retornou à ordem do dia em 2006, na montagem do diretor alemão Frank Castorf, do Teatro Volksbühne, que juntou Nelson Rodrigues ao compatriota Heiner Müller. Ismael e Virgínia, que no texto de Nelson vivem uma relação de violência permeada por infanticídios motivados pela cor da pele dos filhos, foram mergulhados no contexto de uma revolta de escravos na Jamaica.
Para além de temas ainda contemporâneos como esses que pontuam a obra de Nelson, a “meditação sobre o amor e morte”, questão fundamental, circunscreve seu teatro. Tão eterno quanto esse tema, o universo do chamado “Flor de obsessão”, como Nelson foi definido pelos seus amigos, era delimitado por outras questões recorrentes nos textos, como o tabu desnudado, a obsessão pela pureza, e a ambivalência do mundo familiar e do mundo público. Os temas vinham regidos por procedimentos também marcados, como os personagens que transformava em caricaturas, as máximas e a fala coloquial. Tudo para expressar uma verdade interior, sem sutilezas, sem censura, com “gosto em devassar a intimidade do indivíduo, libertando-o da carga censora que disciplina o convívio social”, comenta Magaldi.
Derrubar as máscaras para destrinchar o homem por trás do verniz social, cavoucar sua essência por entre os acontecimentos do dia a dia. Esses procedimentos já eram, na primeira metade do século passado, associados a um nome que seria entronizado nos anos seguintes: Sigmund Freud (1856-1939). Suas ideias eram na década de 1930 vulgarizadas pelos jornais, explica Ruy Castro, e ele era então “o tarado oficial”.
Nelson não leu os preceitos que fundariam a psicanálise, mas foi e seria muito mais com o passar do tempo associado a ela. Tanto pelos tabus que trazia à tona quanto pelas estruturas de alguns textos que faziam do palco quase um divã – nos planos da realidade e do delírio em que se passa Vestido de Noiva (1943), por exemplo, ou no monólogo Valsa Nº 6 (1951), em que a autorreflexão de uma adolescente destila angústias, delírios e abstrações em busca de sua identidade.
Inconsciente coletivo
No quesito inconsciente, Antunes Filho prospectou mais fundo e trouxe à baila outras camadas da obra. Nas montagens que reúnem diversas peças do dramaturgo – Nelson Rodrigues: O Eterno Retorno (1981), Nelson 2 Rodrigues (1984) e Paraíso Zona Norte (1989) –, Antunes Filho apoiou-se na teoria dos arquétipos do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung e nas teorias simbólicas do mitólogo romeno Mircea Eliade. Recentemente, na montagem de A Falecida Vapt-Vupt (2009), recorreu também ao psicanalista francês Jacques Lacan. “Eu fui para o inconsciente estrutural, coletivo: a cultura que foi imposta a todos”, explica o diretor do Centro de Pesquisa Teatral.
As camadas mais profundas que se revelam nos textos de Nelson estabelecem entre estudiosos a ideia de uma obra que jamais será datada. Como diz Antunes Filho, Nelson está sempre na esquina, esperando alguma coisa acontecer. “A gente ouve o rumor permanente daquelas vozes que saltam como se fossem explosivos, pólvoras. São as frases objetivas, altissonantes, derradeiras. Os personagens falam aquilo, mas há um rumor por baixo, por fora.” Um ruído de fundo que, seja no silêncio pré-unanimidade, seja no alvoroço dos eventos centenários, não esmorece.