VOZES: Violência nos tempos de cóleras
Para 2022, houve o menor planejamento financeiro para políticas para as mulheres dos últimos quatro anos
Bússola
Publicado em 2 de agosto de 2022 às 08h55.
Última atualização em 3 de agosto de 2022 às 14h17.
Por Rachel Andrade*
Em uma sociedade construída a partir de valores patriarcais e racistas, a misoginia impõe contornos específicos à violência para a subalternização do feminino, sendo o doméstico o local em que a desigualdade de gênero apresenta sua face mais violenta.
Nesse sentido, importante resultado da articulação de movimentos de mulheres, que colocam o privado como político, portanto, rompe com a lógica da não intervenção do Estado na esfera do privado, a Lei Maria da Penha completa, em agosto deste ano, 16 anos de sancionada, e objetivando coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Contudo, sem o acompanhamento de políticas públicas multidisciplinares, apenas o dispositivo legal como mecanismo no combate à violência não é o suficiente para modificar uma realidade que é atravessada por gênero e raça, categorias que justificam discriminações e subalternidades, conforme nos ensina Sueli Carneiro.
No Brasil, de acordo com o Atlas da Violência de 2021 (IPEA), para o período de 2009-2019 houve aumento dos homicídios de mulheres nas residências e aumento de homicídios de mulheres negras.
Igualmente, dados do Relatório: A vitimização de mulheres no Brasil, pesquisa desenvolvida pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2021, traz os seguintes dados:
- A cada minuto, 8 mulheres apanharam no Brasil durante a pandemia.
- Mulheres negras passaram por níveis mais elevados de violência do que mulheres brancas.
- O lar segue como espaço de maior incidência enquanto local das violências.
- Quase metade das mulheres que relataram ter sofrido violência também perderam o emprego no ano anterior. A média entre as que não sofreram violência foi de 29,5%.
As crises sanitárias exacerbam desigualdades pré-existentes, porém, não há como negar que essa realidade também foi potencializada com o desmanche que perpassa políticas públicas de combate à violência contra as mulheres.
Relatório do Inesc "Um país sufocado – balanço do Orçamento Geral da União" destaca que o Governo Federal simplesmente não executou mais de R$ 80 bilhões de reais em 2020, metade estava alocado para pagamento de auxílio emergencial.
No mesmo documento consta que a maioria do orçamento destinado ao enfrentamento a violência contra as mulheres não foi realizado. Em 2021, o descaso continuou, nota técnica do mesmo Instituto aponta que metade do recurso para políticas para as mulheres foi formado para pagamento de despesas dos anos anteriores (restos a pagar). Para 2022, a nota também aponta o menor planejamento financeiro para políticas para as mulheres dos últimos quatro anos.
Conquistas como a Lei Maria da Penha é importante e demonstra o poder de organização das mulheres, colocando o doméstico para ser pensado também a nível institucional.
Porém o enfrentamento à violência doméstica demanda políticas públicas multidisciplinares, atuando simultaneamente nas diversas frentes (saúde, econômica, jurídica etc.) que é abarcada pela problemática. Por sua vez, isso implica em atores chaves conscientes de que raça informa gênero, e que essas categorias são fundantes nas desigualdades, não meros recortes, e que as despesas geradas no combate à violência contra as mulheres sejam encaradas para além de meros gastos públicos. Ou seja, pessoas ocupando cargos eletivos de fato comprometidos e em sintonia com os interesses da população brasileira.
Importante aqui colocar que a maioria dos cargos eletivos, responsáveis pela constituição e execução do orçamento público, são ocupados por homens brancos, que sequer formam o maior grupo demográfico brasileiro, as mulheres negras, sim, o são. Daí a necessidade de também pensarmos e debatermos a representação política e ocupação dos espaços de poder para além de corpos considerados como donos da razão e detentor natural da possibilidade de solucionar as questões do país.
Afinal, se os representantes não consideram gênero e raça no planejamento das políticas a serem implantadas, é muito pouco provável que, para o desenvolvimento do país, seja colocado o combate à violência doméstica como meio para esse desenvolvimento.
Assim sendo, pensar em uma sociedade justa e igualitária, requer justamente ações que enfrentem de fato as nuances das desigualdades vivenciadas pelas mulheres. Políticas públicas com abordagem interseccional são fundamentais para o enfrentamento à violência contra às mulheres. Portanto, é essencial que o enfrentamento às desigualdades sociais incorpore raça e gênero como fundamento, não apenas como recorte.
*Rachel Andrade é diretora de Pesquisa da ONG Elas no Poder
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