Vacina, economia e a ética
“Com o início da vacinação, temos mais uma vez episódios de afronta à ética, com poderosos furando a fila e idosos sendo enganados com vacina de vento”
Isabela Rovaroto
Publicado em 25 de fevereiro de 2021 às 13h23.
Última atualização em 25 de fevereiro de 2021 às 13h32.
No início da pandemia ninguém tinha ideia sobre a extensão que essa contaminação pela Covid-19 teria. Imaginávamos que, como ocorrera com outras epidemias, não haveria consequências muito profundas e que logo seriam identificados seus limites.
Entretanto, a situação tomou um rumo assustador, com o crescimento geométrico de doentes e mortes, afetando duramente a saúde e a economia mundial. As difíceis e necessárias medidas indicadas pela ciência foram adotadas, determinando o isolamento, o uso de máscara e a higiene constante das mãos como as únicas ações capazes de mitigar os riscos.
A saúde de todos, como deve ser, foi a prioridade, e governantes de todo o mundo, com pontuais exceções negacionistas, assumiram posturas inéditas de lockdown com forte impacto na economia, afetando a produção, o comércio, serviços e causando a perda de empregos.
Já em terras brasileiras, as primeiras reações foram desde o incentivo às ações humanitárias até críticas às medidas de contenção indicadas, passando por ações criminosas de alguns que tiraram proveito do momento delicado - empresários que falsificaram produtos, superfaturaram preços e políticos que aproveitaram para ganhar com a desgraça.
Essas foram as iniciais demonstrações de que a ética estava sendo afrontada e que a sociedade precisava reagir diante de tamanha desumanidade. Diversos políticos foram denunciados e um governador teve seu processo de impeachment iniciado.
As medidas de isolamento no Brasil foram, em comparação com outros países, mais brandas, mas causaram grande impacto no comércio, turismo, bares e restaurantes, com a indústria e os serviços essenciais mais preservados. Entretanto, o avanço da contaminação em ondas, causando milhões de infectados e mortes, demonstrava que só com uma vacina - na verdade, muitas - seria possível viabilizar a chamada imunidade de rebanho pelo combate à contaminação e não pela morte, como alguns absurdamente defendiam.
Tivemos nesse momento de urgência a demonstração de que famosa frase “O Brasil não é para amadores” não é acertada. O Brasil, em termos de planejamento, especialmente em alguns setores públicos, é de amadores, que perderam a oportunidade de estruturar, com antecedência, a aquisição de vacinas em volume adequado e fortalecer a ação do reconhecido SUS, com equipamentos, leitos e, pasmem, oxigênio.
Em total contradição, há movimentos irresponsáveis que, ao mesmo tempo que defendem a economia acima de tudo, surpreendem, de um lado, com ataques, sem qualquer fundamento, às vacinas com insumo ativo chinês - que, ironicamente, são as únicas que foram negociadas pelos governos federal e de São Paulo - e, de outro, combatem todas as medidas de isolamento, ainda que não tão profundas.
Uma verdadeira sandice tropical, um delírio insustentável: não ao isolamento, não às máscaras, não às vacinas, mas sim à economia. Ou seja, nenhuma seriedade, restando um vergonhoso veredicto: morram, mas preservem a economia, afinal, assim é a vida.
É evidente que só a vacinação em massa viabiliza a retomada do ritmo da economia.
Felizmente, a sociedade, de modo avassalador, entendeu que a vacina é o único caminho, porém, as teses absurdas, o total descaso e o cansaço das medidas de isolamento fizeram estragos e todos os alertas foram menosprezados, fomentandoo crescimento da contaminação.
Não bastasse tanto descalabro, mais uma vez, com o início da vacinação, temos a afronta à ética, com poderosos furando a fila, e inovamos com a vacinação sem vacina, ludibriando criminosamente os idosos.
A situação, antes de melhorar, está piorando. A retomada da economia na velocidade necessária está atrelada à vacina, que deve ter acelerada a sua produção e distribuição, não há outro caminho.
Em meio a esse quadro insano o Brasil está diante do espelho, mostrando a nossa cara pasma. Em um momento que exige absoluta necessidade de termos coesão e lideranças firmes e responsáveis, nos deixamos levar por crendices, por teorias da conspiração que afetam o julgamento, desperdiçando tempo precioso e recursos que não temos em ações atabalhoadas. Triste retrato.
Resta saber se, em meio a tanta dor e perdas, vamos aprender. Oxalá!
*Edson Vismona é advogado, presidente do Instituto ETCO (Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial) e do FNCP (Fórum Nacional Contra a Pirataria e Ilegalidade). Foi secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo.
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