Cash out ou assinaturas podem dar um ar diferente às apostas (Paul Yeung/Bloomberg)
Bússola
Publicado em 15 de agosto de 2022 às 09h00.
Por Pedro Simões*
A iminente regulação do mercado de apostas esportivas no Brasil traz à tona uma questão relevante para esse setor: o serviço de apostas, prestado pelos operadores, é considerado um serviço objeto de proteção ao consumidor? A pergunta possui alguns prismas de análise.
De um ponto de vista da leitura do Código de Defesa do Consumidor, não parece haver dúvidas de que o apostador é o “destinatário final” de um “serviço” prestado pelo operador. Mas, para que isso se verifique, é necessário enquadrar aposta como um serviço.
A definição de serviço do CDC é a seguinte: “atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária”.
Aqui, já temos um primeiro desafio: a “prestação” dos “serviços de aposta” não ocorre mediante remuneração. O operador de aposta não se confunde com um broker, um intermediário, um corretor de apostas.
O apostador aposta “contra” o operador e este é somente remunerado em uma lógica de ganha-perde: o operador retém a totalidade do valor apostado se o apostador perder a aposta ou devolve o valor com um multiplicador pré-definido caso o apostador ganhe. Em casos específicos, inclusive, o valor da aposta pode ser devolvido (por exemplo, se estiver em jogo a possibilidade de uma partida de futebol terminar com 0 gols ou com 1 gol total, caso haja dois gols, o dinheiro poderá ser devolvido e “ninguém” ganha).
É por isso que o operador atua como “custodiante” do dinheiro que o apostador deposita para realizar suas apostas, mas – costumeiramente – não cobra o apostador por este “serviço”, não existe remuneração nem relação de consumo nesta etapa. Apenas em um segundo momento, a depender do resultado da área, o operador poderá auferir lucros. Essa situação, em alguma medida, remete à do investidor no mercado de ações.
A pessoa física que compra uma ação de uma companhia aberta está, em alguma medida, “apostando”, em dois cenários: 1) no cenário de obtenção de lucros do resultado da atividade empresarial; 2) nas flutuações do mercado secundário, em que ela pode obter ganhos com a valorização do ativo.
Se não há dúvidas de que a pessoa física é consumidora com relação aos serviços prestados pelos intermediários do mercado de capitais, como as corretoras de títulos e valores mobiliários, a situação do acionista individual face à companhia cujas ações adquiriu é ambígua.
Se estamos falando de uma pessoa física que compra um punhado de ações na expectativa de ganhar em algum dos dois cenários (resultados primários ou mercado secundário), ela certamente não receberá um tratamento “societário” por parte da companhia, dos sócios, administradores, etc. Ela não terá representatividade o suficiente (influência significativa) para ter algum poder de gestão na companhia.
Seu investimento, porém, se apoia na expectativa de que a empresa irá realizar um bom trabalho e, ao fim e ao cabo, isso gerará dividendos e uma possível valorização do título. Esse caráter de expectativa em relação ao retorno da companhia, porém, não faz desta uma prestadora de serviços de “retorno financeiro”. Isso não significa, por óbvio, que esse acionista não deva ser protegido – e é exatamente por isso que ele ganha o contorno de “investidor” e sua proteção se dá, sobretudo, contra eventuais abusos que podem ser praticados pelos investidores-sócios, em especial, o controlador e demais insiders, como os administradores.
A regulação própria das companhias abertas, com a presença deu um regulador autônomo, como no caso da CVM, garante aos investidores a devida proteção contra os abusos irregulares, mas não os blinda dos riscos típicos do mercado no qual eles optaram por se aventurar.
Se é verdade que não nos parece adequado confundir aposta com investimento, por outro lado é inegável haver, em ambos, o elemento comum do risco. Aqui já temos um primeiro indício de resposta no sentido de a aposta não ser, na essência, um sérvio prestado nos termos da legislação consumerista, mas, ainda assim, de requerer proteção especial ao apostador.
Uma pequena confusão deve ser evitada desde já: o fato de as Lotéricas estarem sujeitas ao CDC não deve ser interpretado como uma simples assunção de que apostas são serviços ao consumidor. A jurisprudência que aplica o CDC às Lotéricas assim o faz, sobretudo, porque as Lotéricas são prestadoras de serviços bancários, enquanto permissionárias da Caixa Econômica Federal.
Contudo, essa opinião não é unânime.
Ocorre que a modalidade de aposta lotérica é diversa das apostas esportivas. Quando alguém paga um valor para comprar um “título” de aposta lotérica, ele está “remunerando” a lotérica por um “serviço “ prestado – aqueles que não ganham não recuperam de volta o valor apostado, tampouco o ganhador (ainda que leve uma bolada para casa). Nas lotéricas, o valor das apostas forma uma mutualidade de onde sai tanto o valor do prêmio quanto a remuneração do “operador”, de forma que este não corre risco.
Não é o que acontece nas apostas de cota fixa, mesmo quando observamos o fenômeno do spread que existe entre os multiplicadores, conhecido como juice.
Em uma aposta com duas possibilidades de resultado A ou B, digamos que 10 apostadores apostem R$ 1 cada em A e, 10 apostadores, R$ 1 cada em B. O valor total do multiplicador pré-definido será, por exemplo, 1,96 (as odds, no jargão). Assim, saindo A ou B o resultado, o volume total de prêmios distribuído será de R$ 9,60 – R$ 0,96 por ganhador, ficando R$ 0,40 de lucro para a casa de apostas.
Isso, contudo, não é uma remuneração certa – uma contraprestação ao serviço de apostas, porque, como se pode imaginar, no mundo real, os apostadores não precisam se dividir em grupos homogêneos, de modo que se os 20 apostadores totais tivessem acertado a aposta com esse multiplicador pré-definido, o operador precisaria retirar R$ 9,60 de seu caixa, ficando com um prejuízo de R$ 9,20 – uma vez que, ainda assim, teria o juice de R$ 0,40.
Ou seja, o fato de esse spread gerar lucro depende, absolutamente, de uma boa gestão por parte da operadora que, em alguma medida, corre esse risco em contraste com as chances dos apostadores, em uma situação muito diversa da relação de consumo, em que a empresa prestadora de serviço assume os riscos da atividade empresarial.
Por fim, algumas práticas de mercado que visam a captar novos clientes – como a facilitação da desistência de apostas no decorrer de um jogo (cash out) ou a conversão de assinaturas e ganhos em bônus conversíveis em apostas – podem trazer maior confusão para essa distinção, mas é certo que, confundir aposta com consumo poderá trazer mais entraves que soluções, inclusive para apostadores que se sintam lesados.
*Pedro Simões é coordenador da Equipe de Penal Empresarial e Compliance do escritório Duarte Garcia, Serra Netto e Terra e diretor educacional do Instituto de Prevenção à Lavagem de Dinheiro e Combate ao Financiamento do Terrorismo (IPLD).
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