Justiça brasileira à la Kafka
Coluna semanal do analista Márcio de Freitas comenta os temas mais debatidos entre os Poderes em Brasília
Mariana Martucci
Publicado em 14 de outubro de 2020 às 14h52.
Última atualização em 14 de outubro de 2020 às 15h04.
O escritor Franz Kafka construiu algumas das melhores metáforas da história da literatura sobre a Justiça. Seja no romance O Processo, seja no conto Diante da Lei. São textos de estranhamento tão inusitado, ironia profunda, encadeamento de fatos absurdos e lógica tão excepcional que se tornaram referência para ilustrar a loucura do senso de justiça, contrapondo os frios e pretensamente neutros protocolos procedimentais. Há alegorias maiores para um judeu que viveu poucos anos antes do holocausto, mas essa é outra interpretação.
Kafkiano virou adjetivo, aderente à Justiça brasileira pelos fatos recentes. Onde o escritor via absurdos, empresários e investidores veem um enredo de insegurança jurídica crônica. E as pessoas comuns não conseguem enxergar as razões do distanciamento tão grande da Justiça, seja nas pequenas ações, seja nos casos de repercussão geral.
Ao cidadão brasileiro comum, o fato de maltratar um animal pode resultar em cadeia. Há sentido nisso, pois alguns defendem a perfeita lógica de procedimento. Afinal, suas emoções estão em sintonia com o bem-estar dos bichos. E está escrito na legislação.
Ao cidadão brasileiro comum, o fato de assassinar um semelhante, fugir do local do crime e se entregar, alguns dias depois, pode torná-lo réu em processo no qual terá o direito de responder em liberdade. Está na legislação. E deve ser cumprido pelos juízes, promotores e autoridades policiais. Comparando um exemplo a outro talvez falte lógica, mesmo metafísica, para unir com argamassa de normalidade valores tão distintos numa mesma sociedade. Mas é assim que é.
O fato de o país ser um dos mais violentos do mundo, com número de assassinatos por motivos fúteis chegar à marca de quase 50.000 por ano, não motiva o legislador a alterar certas leis. A moda atual é delegar ao cidadão sua própria defesa. “Comprem armas, cercas elétricas, seguranças particulares e defendam-se!”, dizem alguns diante da inutilidade do Estado. Um atestado de falência múltipla de órgão governamentais.
Enquanto as mortes se acumulam por décadas, com maior letalidade ao longo do tempo que a covid-19, o nível de solução de crimes violentos por certas polícias estaduais fica na casa de 2%. E se o policiamento não oferece segurança, as milícias surgidas de braços da segurança pública impõem-se como aparelho paraestatal em algumas das maiores metrópoles do país, com fornecimento de proteção (contra elas mesmas) e venda de bens e serviços sob monopólios de fazer inveja às cartas dos Correios.
É talvez por isso que o conflito aberto no Supremo Tribunal Federal pela decisão do ministro Marco Aurélio Mello de libertar o traficante André do Rap cause tanta discussão e polêmica. Mello cumpriu o que estava na lei, pura e friamente.
Uma lei feita no Congresso em resposta a abusos da prisão preventiva das operações contra a corrupção — mas lembremos que vários acusados desse crime eram parlamentares. Ele mandou soltar um traficante, líder de quadrilha violenta, capaz de assassinar, torturar e impor suas próprias leis em comunidades com milhares de pessoas, reféns da violência e incompetência do Estado. O traficante sumiu no pó da estrada.
Não há mocinhos na história, porque quem deveria zelar pelo cumprimento das leis falhou, pois o Ministério Público deixou de pedir a prorrogação, por mais 90 dias, da prisão do meliante. Pergunta: se o sujeito era perigoso e já condenado, por que a cada 90 dias é necessário pedir novamente a prorrogação de sua prisão?
O presidente do STF, Luiz Fux, rodou a capa preta e revogou a decisão de Mello. Agora o assunto será levado hoje à ala plenária da Corte para ver se a suprema bateria não atravessa mais a jurisprudência em plena avenida. É guerra entre garantistas e consequencialistas, sem evolução ou harmonia.
A Justiça tem sua hermenêutica. Mas, para quem deseja somente a aplicação básica de certos princípios que tornem a vida mais fácil de ser compreendida, é difícil interpretar o que caíra sobre a cabeça dos cidadãos comuns com essa decisão do STF. Essa falta de entendimento entre a elaboração da lei, suas alterações e suas aplicações pelo povo retira credibilidade do processo legal, da aplicação das leis de forma equânime e de sua assimilação pela sociedade em geral.
O Brasil continua sendo kafkiano a ponto de criar crises locais que se expandem a vários outros setores de atividade, afastar investidores e gerar insegurança permanente aos cidadãos. Os personagens de O Processo talvez sejam mais fáceis de entender que os juízes, autoridades e legisladores brasileiros. Até agora, o veredito tem condenado uma nação inocente.
*Analista Político da FSB
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