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Isabela Rahal: Todo mundo me chamava de escandalosa

Sobre a culpa e o medo que o machismo ensinam desde cedo, mas talvez exista um caminho para a cura

É necessário unir forças contra o machismo (NurPhoto/Getty Images)
Bússola

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Publicado em 3 de abril de 2023 às 19h30.

Eu fui criada para ser brava. Por uma série de questões, fui ensinada a não levar desaforo para casa, a reagir e me defender.

Talvez tenha sido por isso que, a primeira vez que um homem mexeu comigo na rua, eu gritei de volta do alto dos meus 14 anos e mandei ele ir para aquele lugar. Logo uma  amiga me repreendeu. “Você é doida? Um dia desses vão te machucar. Deixa quieto”

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Talvez tenha sido por isso, ou talvez pela personalidade combativa que corre na minha família — você precisa conhecer as Rahal para entender —, que a primeira vez que um menino me agarrou na balada e tentou me beijar à força, ele recebeu em retorno uma cotovelada e uma gritaria. Um outro, que passou a mão em mim sem a minha permissão, tomou um copo de cerveja virado na cabeça. Outro, foi puxado pelo cabelo por uma amiga. Um quarto, que passou a mão em mim no metrô quando eu voltava sozinha para casa por volta da meia-noite, me empurrou de volta quando comecei a gritar e empurrá-lo. Foi depois disso que comprei spray de pimenta e passei a andar com ele na mão, alerta, toda vez que voltava para casa sozinha.

É um pouco assustador, pensando em retrospecto, quantas vezes meu corpo foi invadido, tocado, assediado sem a minha permissão. Quantas vezes o sentimento de vergonha, culpa e raiva tomaram conta de mim. Mas mais assustador ainda , foram as tantas vezes que me chamaram exagerada, imprudente, sempre que reagi. Fui chamada muitas vezes por amigas e amigos queridos, que genuinamente querem meu bem, e só reproduziam o que achavam que seria o certo para cuidar de mim. “Um dia vão revidar”, diziam. “Não exagera”. “Vir para a balada é assim mesmo”.

Isso me trouxe tantos problemas. Porque acontece que nem sempre era na balada ou na rua que esses assédios aconteciam. Mais de uma vez eles aconteceram em momentos extremamente importantes para mim. Como no meu estágio na ONU, quando eu tinha só 22 anos, por um embaixador de outro país. Ou na Câmara dos Deputados — mais de uma vez — por outros deputados e assessores. O alarme de “não seja escandalosa e não estrague essa oportunidade” veio forte, tantas vezes. Também, pudera: como uma estagiária poderia reagir contra um embaixador em plena Assembleia da ONU? No plenário da Câmara dos Deputados? Com toda a pompa, formalidade? Virar um copo de café? Empurrar? Gritar? Recorrer? Mas recorrer a quem, se a certeza da impunidade imperava? Se na única vez que fiz um B.O. por assédio e stalking o assediador não tinha um cargo nem título importante, mas mesmo assim absolutamente nada aconteceu?

Aos poucos, a culpa tomava conta de mim, e ainda toma. Culpa por reagir de maneira desmedida, quando reagia. Por não saber o que fazer e ficar congelada, quando não reagia. Por não ter conseguido evitar. Vergonha por deixar que aquilo me afetasse tanto — logo eu, que me achava tão forte.

Escrevo isso porque sei que sou forte, sim. Porque sei que a culpa, a vergonha e o medo não pertencem a mim, e que esconder esses sentimentos pode ser necessário em algumas situações, mas definitivamente não é o caminho da cura.

Escrevo também porque é preciso. Há não muito tempo falava sobre o dia da mulher, sobre privilégios e sobre assédio com uma pessoa no trabalho e ela — com a melhor das intenções – comentou: “Ah, mas você é educada para ser forte, tem todas as condições de reagir a um assédio, está em uma posição de privilégio”.

Eu jamais vou negar que sou privilegiada. E veja bem, sou grata, incrivelmente grata, ao feminismo por ter me ensinado que isso não é aceitável. Que meu corpo é meu e não estou maluca. Mas colocar a responsabilidade na vítima — sim, vítima, por mais que me machuque usar a palavra — é tão perigoso. A responsabilidade não deveria ser nossa, nunca. E, mais ainda: reagir não elimina a dor. Não muda o fato que sofremos violências que deixarão cicatrizes por toda a nossa vida.

Escrevo, portanto, para dizer que sejamos sim, fortes. Mas que não sintamos culpa porque congelamos. Porque não agimos como gostaríamos. Porque sentimos medo. Porque fomos escandalosas. Nada, absolutamente nada disso, define nossa força nem nosso valor.

Escrevo, por fim, porque anos de terapia me mostraram que o primeiro passo para lidar com um sentimento, e processá-lo, é reconhecê-lo. Porque sei que racionalmente podemos entender que a culpa não é nossa. Mas leva muito tempo  para que nosso subconsciente internalize essa ideia. Para que possamos, aos poucos, ir livrando nossa alma de tudo que já nos foi enfiado, goela abaixo, por uma sociedade machista. Escrevo sobre isso, de peito aberto e vulnerável, porque sei que só esse pode ser um caminho para a nossa cura, e para um futuro livre de violências para todas nós.

*Isabela Rahal é especialista em políticas públicas e mestre em Desenvolvimento Econômico pela Universidade de Columbia e ativista pelo direito das mulheres e meio ambiente e assessora especial da Presidência do Ibama

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