Não há soluções simples para problemas complexos (Horacio Villalobos - Corbis/Corbis/Getty Images)
Bússola
Publicado em 11 de outubro de 2022 às 20h24.
Há mais de 17 anos, Mia Couto proferiu um discurso no Instituto Superior de Ciências e Tecnologia de Moçambique, que ficou famoso pelo título “Os sete sapatos sujos”. Em sua fala, o autor aponta algumas ideias das quais devemos nos descalçar à porta da modernidade. “Eu contei sete sapatos sujos que necessitamos deixar na soleira da porta dos tempos novos. Haverá muitos. Mas eu tinha que escolher e sete é um número mágico.”
A reflexão é tocante por ser ao mesmo tempo universal e individual. Cada uma das ideias apresentadas causa atraso e coloca em risco a sobrevivência de grandes grupos, por representar aspectos presentes em várias sociedades, mas os “sapatos sujos” atrasam também o desenvolvimento de cada indivíduo que não consegue se libertar deles. A transversalidade da reflexão é sua força. São ideias com forte impacto sistêmico, mas fáceis de serem compreendidas por que também afetam a vida cotidiana.
Recomendo a leitura, mas replico aqui a lista proposta. O primeiro sapato: a ideia de que os culpados são sempre os outros e nós somos sempre vítimas; Segundo sapato: a ideia de que o sucesso não nasce do trabalho; Terceiro sapato: O preconceito de quem critica é um inimigo; Quarto sapato: a ideia de que mudar as palavras muda a realidade; Quinto sapato: a vergonha de ser pobre e o culto das aparências; Sexto Sapato: a passividade perante a injustiça; Sétimo sapato: a ideia de que para sermos modernos temos que imitar os outros.
Qual é, contudo, o próximo passo? Se há ideias tão presentes e prejudiciais para a sobrevivência em novos tempos, quais são os calçados que devemos usar em substituição aos sapatos sujos que tentamos deixar na soleira?
Vamos brincar de “Mia Couto ao contrário” e listar os sapatos novos (feitos com material reciclado, é claro) que devemos calçar por serem mais adequados aos desafios de hoje. Coincidentemente, ou não, foi possível elencar sete ideias que deverão nortear indivíduos, economia e sociedade mais adequados às necessidades contemporâneas. Vamos a elas:
A economia comportamental é um campo relativamente novo, mas que já conseguiu demonstrar que os modelos econômicos tradicionais falham em capturar a irracionalidade de decisões humanas, especialmente quanto o fator prazo é incluído na equação. Temos dificuldade de avaliar os benefícios e riscos de longo prazo e, pior ainda, de aceitar custos imediatos para benefícios futuros.
Mas o tempo urge: estamos longe de chegar à redução do nível de emissões necessária para evitar catástrofes climáticas. É como se estivéssemos combatendo um incêndio florestal com mangueira de jardim. Pode até soar heroico, mas não faz muita diferença. Em nome da sobrevivência, precisamos incluir o longo prazo em todas as decisões, como indivíduos e como organizações.
Pode parecer uma ideia contraditória com a anterior, mas na verdade elas são complementares. Nunca foi tão urgente entender e agir para evitar catástrofes no médio e longo prazo. Podem existir questões que parecem merecer maior atenção no momento, mas as consequências de nosso impacto no mundo nos impõem agir em múltiplas frentes para amenizar dores agudas e urgentes ao mesmo tempo em que tratamos as doenças sérias que nos afligem, mesmo que pouco notadas.
As mudanças climáticas são comparáveis com um câncer que se espalha silenciosamente, com sintomas imperceptíveis para quem olha sem atenção ou sem os instrumentos adequados. Quando isso acontece, a negligência com o tratamento no tempo certo pode ser fatal.
Definidas como os efeitos colaterais (positivos ou negativos) de uma decisão sobre aqueles que não participaram dela, o entendimento das externalidades é fundamental. Há duas etapas para se aplicar tal conceito. A primeira é simplesmente reconhecer que elas existem e mapeá-las.
Depois disso, é preciso reduzir o impacto e internalizar o custo. A ausência desse processo faz triunfar a lógica de privatizar os lucros e coletivizar os prejuízos, que por sua vez está fundamentada em um profundo desrespeito a pessoas e ecossistemas. Por isso, o reconhecimento das externalidades é o substituto sustentável para a “ideia que os culpados são os outros”, um dos sapatos que Mia Couto recomenda deixar para trás.
O escritor moçambicano toca nesse tema com outras palavras ao criticar a “ideia que mudar as palavras muda a realidade”. Para ele, “estamos reproduzindo um discurso que privilegia o superficial e que sugere que, mudando a cobertura, o bolo passa a ser comestível”. O entendimento de que devemos nos preocupar com o que realmente faz diferença é alinhado com o que o GRI define como materialidade: “temas e indicadores que reflitam os impactos econômicos, ambientais e sociais significativos da organização ou possam influenciar de forma substancial as avaliações e decisões dos stakeholders”.
No mundo empresarial, por exemplo, não adianta adotar medidas que “pegam bem” com o público e não agir de verdade em temas de impacto. Dá trabalho, mas vale a pena. Segundo estudo do BCG e do MIT Sloan Management Review, as empresas que se concentram em questões materiais relatam até 50% de crescimento no lucro por conta da sustentabilidade.
E o reconhecimento da ciência como fundamento para tomar decisões.
Em contraponto à “ideia de que sucesso não nasce do trabalho”, combatida por Couto, é necessário entender que resolver questões complexas exige dedicação, pesquisa e pensamento crítico. Sabedoria é simplificar o complicado, mas não se pode esquecer que simples não é simplório. É fundamental entender como as coisas funcionam e só assim conseguiremos solucionar os nossos problemas. Em um período no qual setores da sociedade questionam qualquer fato que não esteja alinhado com suas preferências, é ainda mais urgente valorizar a ciência e combater a preguiça simplista que ameaça nos dominar.
Embora alguns setores queiram negar os fatos, há abundante evidência de que a diversidade de origens e pontos de vista é uma alavanca para impulsionar a inovação e, consequentemente, a geração de valor. Para isso funcionar, é preciso abandonar dois sapatos sujos: a “vergonha de ser pobre e o culto das aparências” e a ideia de que “para sermos modernos temos que imitar os outros”. Só com auto-estima, respeito e valorização do diferente conseguiremos encontrar as ideias necessárias para salvar o mundo de nós mesmos.
O último sapato a ser calçado na entrada dos novos tempos substitui “a passividade perante a injustiça” e “o preconceito de quem critica é um inimigo”. Vivemos uma sociedade globalizada que passa por um momento de ascensão do populismo, da fragmentação e de conflitos de diferentes matizes. Em contextos como esse, é necessário encontrar bases comuns sobre as quais seja possível estabelecer diálogos e descobrir caminhos conjuntos. Afinal, como discutido no ponto sobre externalidades, as consequências de nossas decisões afetam pessoas não envolvidas diretamente no processo.
Este ponto é o último da lista, mas talvez deva ser o primeiro para a ação prática. Sem vontade e coordenação, não é possível agir de maneira efetiva. Se já estamos conscientes, que tenhamos coragem de agir. Em 1987, o relatório Brundtland, ou “Nosso Futuro Comum”, começou a deixar claro o tamanho do problema. Que nossa geração calce os sapatos adequados para os desafios à frente e trilhe o caminho da sustentabilidade com dignidade, firmeza, presença de espírito e certeza de que esses esforços são fundamentais para termos a chance de oferecer um “futuro comum” às próximas gerações.
*Danilo Maeda é head da Beon, consultoria de ESG do Grupo FSB
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