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Emannuelle Junqueira: o imenso aterro de moda morta e um vestir consciente

A preocupação com o ambiente nunca precisou tanto estar “na moda” e você pode fazer a diferença na hora de se vestir

Atriz Emma Watson usa look criado a partir de um antigo vestido de noiva. (Instagram @/britishvogue/Reprodução)

Atriz Emma Watson usa look criado a partir de um antigo vestido de noiva. (Instagram @/britishvogue/Reprodução)

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Publicado em 19 de outubro de 2021 às 16h30.

Última atualização em 19 de outubro de 2021 às 16h47.

Por Emannuelle Junqueira*

Emma Watson apareceu assim, linda, no tapete vermelho em frente ao Palácio Alexandra, em Londres, para o Earthshot Prize Awards Ceremony, na última semana. Vestindo um look assinado por Harris Reed, construído a partir da técnica #upcycling (reparem no belo tecido de um antigo vestido de noiva!), a jovem atriz, sem dizer nada, falou tudo. Sua escolha para uma noite especial é um statement que grita para a moda as verdades que todos já sabem.

Uma das principais responsáveis por danos irreversíveis ao planeta, a indústria da moda vem mostrando, nos últimos anos, iniciativas interessantes; tem dado mais espaço à inovação consciente tão cara ao planeta neste momento; e, finalmente, tem escutado cada vez mais seu consumidor. Mas a realidade é que ainda estamos muito distantes do que podemos considerar um comportamento de consumo saudável.

Também na semana passada, outras imagens marcaram quem se interessa pelo assunto: a BBC África mostrou como, toda semana, 15 milhões de peças de roupas são literalmente despejadas por países ricos, para encontrar seu fim em lixões já superlotados em Gana, um território de profundas desigualdades e extrema miséria.

Travestidas de ajuda humanitária, nem sequer chegam às araras 40% das peças de fast fashion “doadas” para serem revendidas. Em estado de conservação deplorável e com qualidade ínfima, nem sequer são oferecidas nas feiras a céu aberto, de onde uma parcela da população tira seu sustento.

Sempre acreditei que escolher o que vestimos é um ato político, capaz de transformar ideias e opiniões. Mas precisamos refletir, como princípio, sobre como o vestir se conecta ao consumir e a nossas próprias necessidades, colocadas em xeque nesta situação limite que a pandemia há quase dois anos nos impôs.

Não creio que o consumismo deixará de existir em curto prazo ele faz parte de um sistema enraizado, que segue girando a pleno vapor. No entanto, a própria definição do termo nos ajuda a explicar o tamanho de suas consequências. Consumismo significa comprar exageradamente e sem necessidade.

“A razão pela qual consumimos desta forma, além do que precisamos, é porque o consumo é ideológico em seu núcleo. Somos obrigados a consumir de modos que não são naturais, mas que servem para manter o status quo”. A fala do sociólogo e escritor americano Steve Miles, autor de Consumerism: as way of life ("Consumismo: um meio de vida", numa tradução livre), é a epítome da real necessidade humana de comprar — quem não se lembra das imagens de mulheres glamurosas, com os braços cheios de sacolas, passeando pelos shoppings eternizadas nos filmes de Hollywood?

Recebemos cerca de 6.000 estímulos publicitários por dia, segundo a Neuromedia. Para isso, só em 2021, o setor do neuromercado irá investir, no mundo inteiro, cerca de 667 bilhões de dólares, de acordo com um segundo estudo da Magna, outra agência que acompanha dados da área.

Mas a República do Gana nos lembra que nosso modo de existir na Terra está acabando com os limites biofísicos do planeta — a cada ano, exaurimos recursos naturais em uma jornada de produção para fomentar a necessidade de adquirir produtos, ao final, desnecessários. A própria publicidade já entendeu isso e, hoje, não destaca mais a finalidade do que quer vender, mas, sim, aquilo que ele representa.

Precisamos nos aproveitar desse paradoxo para guiar nossas decisões de consumo. Apesar de ainda incentivar o consumo desnecessário, essa lógica nos ajuda a pesquisar, cobrar e exigir mais transparência nos processos de produção e a querer, como Emma Watson, gritar para o mundo o que pensamos. Podemos consumir de forma mais consciente, optando por produtos que sejam produzidos de forma alinhada com o que queremos dizer.

Quem consome sempre teve papel intrínseco no que é produzido. O mercado funciona por oferta e demanda, e é por isso que nossas escolhas nunca foram tão importantes. A preocupação com o planeta nunca precisou tanto estar "na moda".

De nada adiantam as frases de efeito ou posts nas redes sociais se não praticamos essa preocupação no dia a dia.

Ao adquirir uma peça de qualidade que realmente faz sentido para você, saiba que sua mensagem ecoa por anos. Ao cuidar de sua peça e usá-la ao máximo — aproveitando o tecido, dando um novo uso você está fazendo um bem coletivo. Quanto mais bem cuidada ela for, por mais tempo você a terá. E menos precisará comprar. O modo como a sociedade se comporta hoje diz ao ambiente como ele será no futuro.

Em uma palestra recente em um evento virtual, o premiado escritor Jared Diamond falou duramente sobre a urgência de atitudes concretas. Como exemplo, lembrou que doenças contagiosas sempre existiram, mas que a presença pandêmica da covid-19 em cinco continentes simultaneamente exige uma resposta global para que não sejamos todos perdedores.

Gana está ouvindo o mundo gritar que o país será transformado em um aterro de moda morta. Ali, o placar está estagnado. Assim, o mundo inteiro perde.

*Emannuelle Junqueira é diretora criativa da marca que leva seu nome, designer, empreendedora e apresentadora do Prova de Noiva no Discovery H&H

Este é um conteúdo da Bússola, parceria entre a FSB Comunicação e a EXAME. O texto não reflete necessariamente a opinião da EXAME.

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