Mudanças no contexto sociopolítico e cultural são alguns dos fatores determinantes (Reprodução/Shutterstock)
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Publicado em 2 de agosto de 2023 às 14h00.
Por Kika Brandão*
A forma como cada geração se relaciona com o dinheiro varia bastante de acordo com suas experiências, valores e contexto sociocultural. Na música, que é uma expressão artística poderosa e muitas vezes um reflexo da sociedade, podemos observar essas diferenças. Ao comparar duas canções marcantes, "Não quero dinheiro", de Tim Maia, e “Tiffany”, de MD Chefe, percebemos uma mudança significativa no modo como cada geração encara o dinheiro. Enquanto a visão do amor acima de tudo predominava na era de Tim Maia, a ostentação e a aceitação da busca pelo dinheiro se tornaram mais evidentes nas canções de artistas contemporâneos como MD.
Na canção "Não quero dinheiro", Tim enfatiza: "Quando a gente ama. Não pensa em dinheiro. Só se quer amar.” O artista afirma que o amor é o valor supremo, mostrando que a busca por riquezas ainda era uma pauta rodeada de tabus no tempo que a canção foi composta. Essa abordagem refletia a atmosfera de uma época em que o contexto político e social do Brasil levou a um questionamento das prioridades e um apelo por valores mais sentimentais. Em outras palavras, a romanização do amor buscava tapear a falta de dinheiro da população empobrecida.
Por outro lado, a geração contemporânea, representada por artistas do funk e trap, como MD Chefe e Matuê, reflete uma transformação na forma de enxergar o dinheiro. Suas músicas são marcadas por uma abordagem mais aberta do ponto de vista financeiro e pela mudança de mentalidade acerca do assunto. O dinheiro não é mais visto como o antagonista das coisas belas da vida, pelo contrário, ele faz parte do pacote para se alcançar outras realidades de vida.
É verdade que nas últimas décadas houve uma mudança significativa na forma como a sociedade encara o trabalho e o dinheiro. A visão de "trabalhar por dinheiro" está se tornando mais aceita e compreendida como uma necessidade legítima, saindo do romantismo do trabalhar por amor.
Existem várias razões para essa transformação. Para começar, a globalização e a economia de mercado têm influenciado a percepção do valor financeiro do trabalho. As demandas e as pressões do mundo moderno levaram as pessoas a valorizar cada vez mais a estabilidade financeira, o crescimento profissional e a busca por uma melhor qualidade de vida. Nesse contexto, o dinheiro tornou-se uma ferramenta para atingir esses objetivos e garantir segurança e conforto.
Além disso, as discussões sobre a importância do equilíbrio entre vida pessoal e profissional também contribuíram para essa mudança. As pessoas começaram a refletir sobre a possibilidade de trabalhar de forma satisfatória, e também passaram a almejar ter tempo para desfrutar de outras atividades e se dedicar a outros campos da vida. Nesse sentido, o dinheiro passou a ser visto como um meio para alcançar essa conciliação, seja através da redução de horas de trabalho ou do acesso a serviços que facilitem a vida cotidiana.
Essa mudança de perspectiva também está relacionada ao empoderamento financeiro e à conscientização sobre a importância de buscar uma remuneração justa pelo trabalho. É fundamental a gente considerar os devidos recortes e privilégios, pois vivemos ainda em um país desigual e marcado pela escravização do trabalho.
Mesmo com o desmonte da lei trabalhista, uma boa parcela da população buscou autonomia e maior valorização do seu tempo e esforço. Esse movimento tem contribuído para que elas se livrem do sentimento de culpa ou vergonha em relação ao desejo de ganhar dinheiro e conquistar estabilidade financeira.
Gradualmente estamos nos afastando da visão do “dinheiro vilão”, reconhecendo que ele desempenha um papel importante no nosso dia a dia. A geração atual já não se sente mais culpada por querer uma remuneração justa, entendendo que isso é parte integrante de uma vida equilibrada e também um meio de reparação de explorações que marcam o nosso passado.
Entretanto, o sentimento de desconforto ainda permanece quando o assunto é dinheiro. E isso é, em boa parte, um reflexo dos problemas financeiros que o país ainda enfrenta nos dias de hoje. Segundo dados da Pnad Contínua 2020, a renda de 1% da população brasileira mais rica equivale a 34,8 vezes o rendimento dos 50% que ganham menos no país. Dados como esse escancaram o cenário de desigualdade ainda existente no Brasil. E é essa desigualdade social histórica presente no país que faz com que falar sobre dinheiro suscite sentimentos de medo e desesperança.
Além disso, a falta de educação financeira, que também pode ser considerada uma das consequências da desigualdade, fortalece ainda mais os tabus. Por isso, ainda que as novas gerações tenham feito um avanço significativo nesse aspecto e falem sobre o dinheiro com muito mais naturalidade, inclusive em suas músicas, o peso da desigualdade social histórica e a falta de informação ainda pesam na nossa conta.
*Kika Brandão é Head & Partner da Estúdio Eixo
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