(Ricardo Moraes/Reuters)
Bússola
Publicado em 22 de junho de 2022 às 19h00.
Por Omarson Costa*
Sabe aquele papo de tempestade perfeita do filme Twister, clássico do cinema catástrofe de 1996? Acontece que o roteiro desse nosso remake ainda está, ao que parece, sem ponto final. A pandemia provocou a maior disrupção na cadeia de suprimentos de quase tudo no mundo. O clima não ajudou, causando quebras de safra. Fizeram a vacina e, quando o mundo parecia voltar ao normal, Rússia e China resolveram lembrar de suas prioridades geopolíticas. A primeira invadiu a Ucrânia e a segunda ameaça Taiwan. Sabe o que tudo isso pode causar? O pesadelo da inflação e da incerteza econômica podem ganhar novas temporadas.
A cena que chocou o Brasil em 2021, gente passando a noite ao relento para participar de uma distribuição de ossos em um açougue de Cuiabá, foi só um símbolo de um desconforto que já vinha de antes. A inflação brasileira fechou o ano das quarentenas, 2020, em 4,5% (mas os alimentos subiram mais de 14%) e no ano passado acima dos 10%, com os alimentos avançando mais 8%. Os preços dos combustíveis desorganizam mais a economia, só que o da carne chama atenção: alta média de quase 43% desde o início da pandemia, segundo o Ipea.
Pelo menos metade dos brasileiros reduziu a compra de proteínas animais e também trocou a marca dos alimentos consumidos por outras mais baratas por conta da inflação.
Enquanto esse cenário distópico se prolonga, as startups ligadas a tecnologia e inovação foram irrigadas por investimento; e isso inclui as foodtechs. Estima-se que cerca de 100 investidores estejam nesse setor atualmente. Só a Bright Idea Ventures assinou mais de 50 cheques em 2021.
As grandes empresas do setor de proteína do mundo também passaram a procurar oportunidades no setor de food techs. A grande representante brasileira, a JBS, por exemplo, lançou sua "carne" a base de planta em junho de 2020 e depois comprou a terceira maior produtora desse tipo de produto na Europa, a holandesa Vivera, por US$ 408 milhões em 2021. Outras grandes do setor foram atrás das alt meats, ou seja, carnes feitas com plantas ou que dispensam confinamento e abate de animais, entre elas a Tyson, Smithfield, Hormel e a Cargill.
As carnes alternativas ganharam espaço sob o argumento de serem mais saudáveis e sustentáveis e a onda se estendeu para a indústria de laticínios e de ovos. Um exemplo disso é a israelense Imagindairy, que levantou US$ 28 milhões em duas rodadas para desenvolver laticínios sem envolver animais.
Em sua missão, a Imagindairy se propõe a levar aos consumidores soluções de proteína alternativa sustentáveis, mais saudáveis e “livre de culpas”. Eles desenvolveram proteínas de leite com tecnologia proprietária de fermentação a partir de microorganismos. Os produtos não são geneticamente modificados, não têm colesterol e possuem o sabor, textura, funcionalidade e valor nutricional de leite integral ou queijo de origem animal — tudo sem nenhuma fazenda.
De acordo com relatório da CB Insights, os cerca de 30% de consumo de proteínas feito pelos humanos provêm de carne de boi, porco e frango. Esse é um mercado que deve atingir a marca de US$ 2,7 trilhões até 2040. Os americanos consumiram mais de 100 kg de carne per capita em 2020, contra 75 kg em 1960. Essa demanda em alta obrigou ao estabelecimento de cadeias complexas e que, nos EUA, são controladas basicamente por 4 multinacionais — JBS, Tyson Foods, Cargill e National Beef.
Há quase quatro anos, publiquei um artigo falando sobre o futuro da comida que incluía ideias aparentemente futuristas, como carne cultivada ou a adesão ao hábito asiático de consumir proteínas ingerindo certos insetos. Parece que grande parte daquilo que escrevi já está no mercado ou prestes a chegar. Até meados de 2021, o veganismo ou vegetarianismo cresceu 580% no mundo em comparação aos cinco anos anteriores.
O Starbucks incluiu nos EUA leite a partir de fermentação de precisão, os restaurantes de Cingapura servem carne de frango feita a partir do cultivo de células e não do abate de aves. Temos nos supermercados várias marcas de hambúrgueres feitos de grão-de-bico, lentilha ou outros vegetais e leguminosas.
Mas a indústria de foodtech está indo mais longe ainda e passando a mirar o fornecimento não apenas de alimentos prontos para consumo, mas dos insumos para produção deles. Qual a importância disso? Fornecer produtos B2B e não B2C torna a indústria alimentícia livre das flutuações típicas na sua cadeia de suprimento.
Um dos pilares dessa revolução é exatamente a fermentação de precisão citada acima. Quem tem na casa dos 50 anos lembra das mulheres percorrendo bairros de São Paulo nos anos 1970 com carrinhos semelhantes aos de sorvete oferecendo leite fermentado. Portanto, a tecnologia está aí há bastante tempo. O que muda aqui é a palavra "precisão".
A técnica introduz sequências de DNA de proteínas funcionais em micróbios que atuam como fábricas de células capazes de produzir ingredientes muito específicos em uma velocidade muito alta, viabilizando produção em larga escala de insumos importantes na fabricação de vários tipos de alimentos, quando não da própria proteína.
Os consumidores veganos, kosher e halal estão demandando, inclusive, que os fatores de crescimento dos produtos não tenham origem animal. Por exemplo, a quimosina é uma enzima retirada do estômago de animais ruminantes e utilizada na fabricação de queijo. Ou a pancreatina, utilizada em fórmulas para bebês ou nos whey proteins da vida.
Os fatores de crescimento desempenham um papel fundamental na cultura de células, cultivo de tecidos específicos e na diferenciação celular. E a fermentação de precisão microbiana amplia as variedades de fatores de crescimento, fazendo o custo do produto baixar, ampliando sua viabilidade comercial.
Outro papel importante dessa técnica é garantir a segurança de suprimentos para a indústria. É o caso da lisozima, utilizada para impedir a degradação de laticínios, extraída da clara do ovo e considerada alergênica. Logicamente, qualquer quebra na produção de ovos influencia a de leite. A fermentação de precisão torna possível produzir uma enzima com a mesmíssima função da lisozima original e sem o risco de causar alergias.
Executivos de incubadoras e aceleradoras, quando instados a relacionar tecnologias que devem chegar ao mercado em breve, são bastante imprecisos, não por uma questão de segredo industrial, mas porque o desenvolvimento é tão veloz que nossa mente pode ainda não ser capaz de prever ideias novas que ainda estão por surgir.
A incubadora alemã ProVeg, líder mundial no incentivo a startups de carne a base de plantas e alimentos cultivados, como os citados acima, acredita que em uma década esteja trabalhando com um mix invejável de companhias produtoras de proteínas alternativas e de tecnologias e ingredientes para criação de produtos saudáveis para a população e sustentáveis ao mesmo tempo.
Causou comoção recentemente quando às duas maiores cadeias de fast-food do planeta, McDonald's e Burger King, admitiram, respectivamente, que seu Mc Picanha não levava picanha propriamente dita, e que o sanduíche de costela do BK não tinha carne de costela.
Marketing enganoso à parte, afirmações deste tipo tendem a causar cada vez menos espanto num cenário em que as empresas buscam atender à demanda dos consumidores por carne sem ter de transformar o mundo num misto de grande chiqueiro, granja e pasto.
No cenário das carnes alternativas tem de tudo: aquelas feitas a partir de plantas e leguminosas e ancoradas em ciência de ponta, como as do Impossible Burger, e outras "cultivadas" em biorreatores, que estão ficando cada vez mais acessíveis com o desenvolvimento tecnológico. Em seis meses, cada 450 g de hambúrguer cultivado caiu de US$ 18 para US$ 7 nos supermercados dos EUA! E antes que se cometa a mesma besteira de Bill Gates recentemente, elas não são carnes "sintéticas". É carne de verdade. Só não envolveu o sacrifício de um animal.
Outros produtos nem mesmo pretendem ser chamadas de carne, como os "Crumbles" lançados pela Daily Harvest. Eles servem para adicionar à comida e contém 13 gramas de proteína em um pacote (equivalente a 100g de ovo) com nomes curiosos como ‘lentilha francesa com nabo’. E, nessa altura, mora com toda a diferença: são ingredientes conhecidos das pessoas, sem nomes complicados, com textura e lembram carne, mas não tentam fazer o seu consciente acreditar que está comendo fraldinha, picanha ou costela.
Curiosamente, a extrema-direita americana está em guerra contra a carne alternativa — um misto de proteção aos pecuaristas tradicionais e a já proverbial pouca fé na ciência e, chamei atenção para o deslize verbal de Bill Gates. A indefectível congressista republicana Marjorie Taylor-Greene gravou um vídeo acusando o dono da Microsoft de querer obrigar as pessoas a comerem da "carne fake que ele estaria cultivando em pessegueiros e que introduziria no seu corpo algum agente secreto que faria a pessoa rejeitar dali em diante um cheeseburger real”.
Apesar de todos os esforços tecnológicos feitos até hoje, do avanço da capacidade produtiva do setor agrícola, todos os dias 820 milhões de pessoas vão dormir com fome no mundo, basicamente por falta de alimentos disponíveis (em regiões áridas, por exemplo) ou falta de renda. Cálculos do Programa Contra a Fome da ONU (WFP) projetam o custo de US$ 3,6 bilhões anuais para alimentar 52 milhões de crianças desnutridas abaixo dos 5 anos de idade.
A gigante chinesa Alibaba e a WFP desenvolveram um Mapa da Fome quase em tempo real para localizar os problemas. E há empresas em vários lugares do mundo resolvendo dores reais do mercado com aplicativos e soluções em rede para tornar alimentos mais acessíveis para refugiados ou populações carentes, baratear preços de alimentos perto do vencimento, etc.
A perspectiva é que, com o auxílio das tecnologias das foodtechs e startups que tragam soluções típicas da última milha do varejo até os consumidores, seja possível reduzir esse número de famintos de forma importante, senão erradicar completamente essa chaga. No dia em que esse objetivo for atingido, poderíamos comemorar com um grande banquete à base de frutos-do-mar — todos produzidos à base de plantas, fungos ou em laboratório!
*Omarson Costa é diretor de negócios na Accenture e conselheiro de administração para empresas de vários setores
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