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Bruce Willis, Game of Thrones, afasias e o exercício da empatia

Tratamento precoce do distúrbio que levou a família do ator a informar sua aposentadoria pode ajudar a estabelecer novas formas de comunicação

Se você observar alguém ao seu redor com dificuldade para formar frases, procure ajudar. (Sean Gallup / Equipa/Getty Images)

Se você observar alguém ao seu redor com dificuldade para formar frases, procure ajudar. (Sean Gallup / Equipa/Getty Images)

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Publicado em 31 de março de 2022 às 20h30.

Por Roberta Busch*

Pouca gente se lembra, mas em 2014 o Papa Francisco, durante a tradicional bênção na Praça São Pedro, no Vaticano, soltou um palavrão. “Se cada um de nós não acumular riqueza apenas para si, mas também a serviço dos outros, nesse ‘cazzo’…”, disse usando a expressão italiana usada para enfatizar algo, de forma grosseira. Algo que corresponde mais ao menos à palavra “fuck” e seus derivados em inglês.

O pontífice se corrigiu rapidamente, e continuou: “... nesse caso a providência de Deus ficará visível por meio desse gesto de solidariedade”. No início do século 20, Freud nomeou esse tipo de gafe de ato falho, o mesmo que acontece quando você chama seu namorado atual pelo nome do ex, por exemplo.

Essa troca inocente de palavras, acontece, como no caso do santo padre, normalmente de forma involuntária. Às vezes pode ser engraçado; muitas vezes, é constrangedor, mas pode acontecer com todo o mundo.

Agora imagine enfrentar algo parecido com isso o dia todo, de forma consistente, por uma doença permanente ou progressiva: beira uma situação angustiante. Você quer dizer sardinha, diz sadia. Quer falar banana, sai abacaxi. Tenta construir uma frase, e não sai nada, ou sai tudo confuso e sem sentido. E se for ao contrário, você deixa de entender o que está sendo dito. Ou, o pior, tudo junto e misturado.

Essa desconexão entre falar e entender, embora pareça estranha, pode ocorrer pois a área do cérebro que processa a comunicação é desconectada daquela que processa o entendimento, embora, os sintomas possam surgir ao mesmo tempo também.

Afasia

Ontem, 30 de março, a família do ator Bruce Willis anunciou sua aposentadoria. O motivo seria uma afasia, um distúrbio que afeta diretamente a comunicação. Normalmente ocorre como sequela de um uma lesão neurológica, como um acidente vascular cerebral (AVC), um tumor, infecções no cérebro, um aneurisma ou ainda pela chamada Afasia Primária Progressiva (APP), que pode evoluir com um quadro de demência pela perda definitiva das áreas de comunicação.

Não se sabe o que causou a afasia no ator, mas é difícil mensurar o tamanho do impacto de uma doença como essa em alguém que construiu toda a carreira baseada na comunicação. A afasia pode afetar a capacidade de falar ou de se expressar verbalmente, a compreensão ou a emissão da linguagem verbal e escrita e a capacidade de escrever.

“Uma noite, uma enfermeira me acordou e, como parte de uma série de exercícios cognitivos, perguntou: 'qual é o seu nome?' Meu nome completo é Emilia Isobel Euphemia Rose Clarke. Mas eu não conseguia me lembrar dele. Em vez dele, uma série de palavras sem nenhum sentido saíram da minha boca e eu entrei em pânico. Nunca tinha sentido um medo como aquele — uma sensação de fim de mundo. Eu sou uma atriz, eu preciso me lembrar das minhas falas. E não conseguia nem me lembrar do meu nome”.

Esse trecho de um artigo escrito pela atriz inglesa Emilia Clarke para a revista The New Yorker descreve o tamanho do turbilhão. Ela, que interpretou a personagem Daenerys Targaryen em Game of Thrones, teve quadros de afasia em 2011 e 2013, após sofrer aneurismas cerebrais durante a gravação da série — Emilia se recuperou e hoje apoia uma associação de sobreviventes de lesões cerebrais que ajudou a criar.

Empatia

A afasia não tem cura e não há como prevenir diretamente o distúrbio, mas somente os fatores de risco associados às causas principais. Mas o trabalho de uma equipe multidisciplinar, iniciado o quanto antes, pode melhorar a qualidade de vida desses pacientes. O pilar desse trabalho é a fonoterapia, que envolve a prática de habilidades linguísticas, com o objetivo de suprir deficiências nas formas de se comunicar.

Mas a reabilitação exige calma e resiliência  É um processo difícil, longo e custoso, que requer, sobretudo, colaboração de todos que estão ao redor. Exige empatia, uma palavra que, pela necessidade do uso constante, quase foi banalizada durante a pandemia, mas que continua sendo fundamental.

O fonoaudiólogo, o fisioterapeuta, o neurologista vão trabalhar em equipe para minimizar os sintomas causados pela perda de capacidade de comunicação e buscar possibilidades de construir novas formas de comunicação com áreas que não foram afetadas.

Mas, entre uma consulta e outra, é preciso construir uma ponte, refazer um canal de comunicação possível no cotidiano. A afasia, sem dúvida, representa um choque para a família toda. Mas nessa hora, é preciso saber ouvir, compreender o tempo do outro e não se impacientar com a demora em construir, reconstruir, formular e reformular as ideias, as palavras e as frases.

Um caminho difícil para nós, acostumados a nos impacientar com a ligação cortando no celular, com a conexão de internet que falha durante uma transmissão no Zoom e nos faz perder uma frase importante. Mas um caminho muito necessário — e, se for preciso, por que não procurar um aconselhamento também para os familiares?

Atenção

Poderia ter escrito este artigo em junho, mês da Conscientização à Afasia. Mas notícias como essa, de Bruce Willis, nos fazem lembrar que conscientizar é tarefa diária. As doenças que levam à afasia acometem pessoas cada vez mais jovens. Só os AVCs afetam hoje 16 milhões de pessoas no Brasil por ano. Acidentes de trânsito, a principal causa de morte entre pessoas de cinco a 29 anos, também podem prejudicar a fala quando provocam traumatismo cranioencefálico.

Muitas vezes, a afasia chega de forma lenta e silenciosa, como a primeira manifestação de doenças progressivas. Embora o sucesso das terapias dependam do grau de dano neurológico causado, tamanho da lesão e idade do paciente, entre outros fatores, o tratamento precoce salva vidas e reduz o risco de lesões permanentes. Se você observar alguém ao seu redor com dificuldade para formar frases, trocando palavras com frequência ou embaralhando fonemas, procure ajuda. A empatia também precisa começar antes.

*Roberta Busch é fonoaudióloga clínica, mestre em neurociências pela Universidade Federal de São Paulo e sócia-diretora do CAAD (Centro de Atendimento Avançado em Disfagia)

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