Bandeira do Brasil (Getty Images/Getty Images)
Analista Político - Colunista Bússola
Publicado em 4 de março de 2024 às 14h00.
O tamanho, a coesão política e a dirigibilidade da manifestação liderada por Jair Bolsonaro em 25/2 na cidade de São Paulo deixaram mais visível uma inversão de papéis. No passado não tão distante era a esquerda quem trabalhava para ocupar as ruas e mostrar poder de mobilização, restando à direita depreciar a contabilidade adversária e ameaçar com a polícia.
O observador atento nota, faz anos, que a esquerda vem frequentando mais as antessalas do Ministério Público e dos tribunais, e menos os locais de trabalho onde poderia estabelecer contato com quem declara representar. A fraqueza dos sindicatos e entidades associativas dos trabalhadores fala por si.
Não que não haja na mesma esquerda inquietação e perplexidade a respeito. Algumas explicações apontam para as mudanças estruturais no mercado de trabalho. Elas têm seu papel, mas também ajudam a dar imerecido protagonismo a um confortável fatalismo determinista.
Outro viés é o circular. “Estamos desconectados das bases porque não damos suficiente atenção ao contato com as bases.” Verdade, mas não ajuda. É um sistema possível e indeterminado. Admite infinitas soluções. O que não resolve o problema de quem persegue “a” solução.
O terceiro viés é a fuga para adiante. Acreditar que falta à massa de trabalhadores a iluminação de compreender a necessidade do autogoverno. O pensamento talvez reflita um estágio superior de desconexão entre intelectuais e povo, deve haver assunto mais ausente dos desejos da massa, mas encontrá-lo seria um desafio e tanto.
Uma dificuldade que atrapalha muito é o abandono da saudável tradição polemista-argumentativa. Ela saiu de cena e deu lugar à ditadura das narrativas, uma variante do terraplanismo aplicado à política.
“Fazer a disputa” ultimamente resume-se a reunir mais apoio para martelar teses de laboratório até colher o relatório que mostra você em vantagem sobre o oponente nas redes sociais. A aritmética substituiu a dialética.
Porque a Terra não se tornaria plana nem se toda a humanidade comparecesse ao ex-Twitter (hoje “X”) para afirmar que o planeta é, na verdade, um disco bem achatado.
Talvez não haja assunto mais instigante, e inquietante, nos meios ditos progressistas do que o avanço da direita sobre os grupos sociais que a esquerda julgava historicamente reservados para si. E, quando o problema entra em pauta, vem junto a circularidade entre o “falta trabalho de base” e o “falta consciência”.
É possível que o desvendar da incômoda equação esteja mais à mão do que parece. Depende, entretanto, de a esquerda aceitar que a realidade talvez não ande bem encaixada nos desejos. Ajuda, também, procurar aprender com a experiência, olhar para o que já aconteceu e tentar, se possível, dar crédito ao que dá certo e desconfiar do que costuma dar errado.
A esquerda moderna, até como rótulo, nasceu na Revolução Francesa, com os ideais de “liberdade, igualdade e fraternidade”. Mais adiante, a filosofia da práxis vinculou a terceira consigna à busca do desenvolvimento. Deixando para trás, num primeiro momento, o ludismo, e, muito depois, quando a China se livrou da Revolução Cultural, um igualitarismo histórico.
Não estivéssemos em plena era de terraplanismo político, deveria despertar curiosidade intelectual a direita ter tomado da esquerda as bandeiras da liberdade e do desenvolvimento, e até da igualdade. Já a esquerda defende restringir a primeira, adverte que o segundo vai destruir a vida no planeta e reinterpreta a terceira revestindo de opressores boa parte dos que um dia disse serem oprimidos.
Uma certa repulsa à modernidade, que, sem surpresas, traz junto teratologias como o “socialismo dos tolos”, tão bem descrito por August Bebel.
Outra mudança, talvez até mais estrutural, é o abandono pela esquerda, e a captura pela direita, da ideia de emancipação nacional.
Isso fica para uma próxima.
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