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A escravidão teve um fim afinal?

O que o resgate de trabalhadores em condições análogas à escravidão nos ensina sobre cláusulas em contratos empresarias?

Mais de 200 trabalhadores foram encontrados em situações de escravidão no ultimo mês (Divulgação/Viagem e Turismo/Divulgação)

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Publicado em 20 de março de 2023 às 16h30.

No último dia 22, mais de 200 trabalhadores que viviam em condições análogas à escravidão foram resgatados pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), Polícia Federal (PF) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em uma ação conjunta, em Bento Gonçalves, no Estado do Rio Grande do Sul, chocando o país pelas condições de vida à qual os empregados eram submetidos e por envolver três grandes empresas do setor.

Foi noticiado pela imprensa que elas mantinham relação com uma terceirizada que utilizava a referida mão-de-obra na colheita da uva. Como consequência da ação dos órgãos públicos, as empresas têm sofrido, além dos processos investigativos, penalizações como a recusa da comercialização de seus produtos, como é o caso de uma rede de supermercados da cidade do Rio de Janeiro que decidiu devolver todas as mercadorias que mantinha em seu estoque que estava vinculada a uma das marcas envolvida no escândalo, e a suspensão da participação de qualquer delas em iniciativas apoiadas pela Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil), que é vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic) e que atua na promoção de produtos e serviços brasileiros no exterior, buscando atrair investimentos estrangeiros a setores estratégicos da economia brasileira. Isto sem considerar os possíveis impactos no mercado que poderá experimentar uma queda na venda de produtos de origem nacional.

Considerando que houve a terceirização de uma parcela do processo produtivo, as empresas estavam ligadas à subcontratada por meio de uma relação contratual que, se presume, seja de natureza empresarial, por ter duas empresas como partes do negócio e por estar inserida dentro do contexto de busca por lucratividade. De um lado os contratos de terceirização tendem a baratear as despesas do contratante, que transfere à empresa contratada o risco de entregar o objeto contratado devidamente concluído, cabendo a ela, dentre outras responsabilidades, a contratação e gerenciamento de pessoal, mas, de outro, demanda fortemente cuidado da contratante com a formalização de um contrato escrito e com a realização de uma séria e frequente de fiscalização.

No caso em questão, a inserção de cláusulas robustas de responsabilização da empresa terceirizada quanto ao cumprimento da lei em vigor, com especial atenção à apresentação de documentos que comprovem a contratação nos termos da lei, vedação de uso de trabalho escravo, atrelada a multa e outras penalidades contratuais significativas, e obrigação da contratada de indenizar a contratante pelos lucros cessantes que a contratante possa incorrer no caso de violação das leis trabalhistas são algumas das medidas contratuais que podem ser adotadas visando tentar inibir uma violação de direitos trabalhistas pela empresa terceirizada. Nesse sentido, é relevante celebrar um contrato escrito, para que haja prova da contratação dessas condições e para que as penalidades possam ser executadas judicialmente com maior facilidade, se necessário.

Cabe destacar que, contudo, é imprescindível que a robustez contratual esteja atrelada à realização de um acompanhamento frequente da contratante junto aos seus terceirizados, para averiguar não apenas documentalmente se a subcontratada é empresa idônea, mas também com realizações de visitas in loco, se necessário, o que também pode ser ajustado contratualmente. Além disto, pode ser relevante averiguar a saúde financeira da empresa contratada antes do fechamento do negócio, considerando que, em casos como esse que se apresenta, as subcontratadas, se condenadas, poderão não possuir todos os recursos financeiros para arcar com as penalidades que lhe serão impostas legal e contratualmente.

Para além dessas medidas impostas às empresas investigadas, se verifica que tanto a ApexBrasil quanto a rede de supermercados puderam aplicar sanções. Isso porque, muito provavelmente, elas possuíam embasamento jurídico – que, neste caso, é dado por uma cláusula contratual – que justifique a suspensão das atividades ou devolução de produtos para casos em que a vinícola estivesse envolvida em situações que poderiam prejudicar a sua imagem ou a imagem da ApexBrasil ou da rede de supermercados.

Nesses contextos de parcerias empresariais ou de fornecimento ou distribuição de produtos, principalmente aqueles que envolvam relação com o consumidor final, como é o caso das empresas vinícolas investigadas, é altamente recomendável que haja, principalmente, e por meio do amparo em um contrato escrito, o acompanhamento pela parte contratante do cumprimento das obrigações pela parte contratada, de modo a evitar uma situação como a narrada acima e que pode manchar gravemente a imagem da empresa. Assim, em caso de descumprimento, não só será possível a adoção de uma medida ágil e eficaz, mas também possibilitará a aplicação de penalizações ou até mesmo a possibilidade de término antecipado dos contratos quando uma das partes possa estar envolvida em situações de comoção nacional ou de violação grave a leis trabalhistas, de modo a preservar a imagem da outra parte no mercado.

Sendo assim, o acontecimento em questão ensina que o uso de cláusulas contratuais mais estruturadas funciona como uma medida protetiva a todas as partes envolvidas, seja em contratos que envolvam a terceirização, seja em contratos de parceria empresarial, distribuição ou fornecimento de produtos, mas que essa etapa preventiva deve estar acompanhada de atos de acompanhamento e fiscalização da execução do contrato.

*Letícia Fontes Lage é advogada especialista da área contratual e imobiliária do escritório Finocchio & Ustra Advogados e Talita Orsini de Castro Garcia é advogada sênior especialista da área contratual do escritório Finocchio & Ustra Advogados.

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