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Como garantir que o Coaf tenha seu papel, segundo uma pesquisadora do tema

Para Ana Carolina Carlos, que estuda unidades de inteligência financeira, é preciso equilíbrio entre controle judicial e necessidade de trocar informações

Ana Carolina: em entrevista a EXAME, pesquisadora diz que deveria ser irrelevante a posição institucional do Coaf, se houvesse autonomia (Arquivo Pessoal/Divulgação)
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Clara Cerioni

Publicado em 10 de setembro de 2019 às 08h00.

Última atualização em 10 de setembro de 2019 às 08h00.

São Paulo — Durante duas décadas, de 1998 a 2018, o Conselho de Controles de Atividades Financeiras, conhecido como Coaf , funcionou dentro do Ministério da Fazenda como um órgão destinado a conter lavagem de dinheiro, ocultação de patrimônio e financiamento de atividades criminosas ou terroristas no Brasil.

De acordo com a pesquisadora Ana Carolina Carlos de Oliveira, que estuda unidades de inteligência financeira, a contribuição do Coaf para o combate à corrupção é indireta e se "restringe a informar sobre a suspeita de origem ilícita do dinheiro nas movimentações financeiras".

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Mesmo sem foco exclusivo na corrupção, o órgão serviu de de suporte para a polícia em investigações de grande repercussão nacional, como as do mensalão e da Operação Lava Jato . De acordo com um balanço do próprio Coaf, nos últimos dez anos, foram produzidos cerca de 30 mil relatórios, que embasaram centenas de investigações da Polícia Federal.

Apesar da produtividade e estabilidade no Ministério da Fazenda, desde o fim do ano passado, o trabalho executado pelo Coaf começou a sofrer modificações pelo governo de Jair Bolsonaro. No início do governo, o presidente decidiu colocar o Coaf na alçada do Ministério da Justiça, comandado pelo ex-juiz da Lava Jato Sergio Moro. O Congresso, no entanto, devolveu o órgão para o Ministério da Economia.

Depois, o governo editou uma Medida Provisória transferindo o órgão para o Banco Central e, com modificações, rebatizando-o de Unidade de Inteligência Financeira (UIF). Na ocasião, Bolsonaro justificou a mudança para tirar o Coaf do "jogo político".

O pano de fundo, entretanto, contou com o fato de o Coaf ter feito relatórios apontando movimentações financeiras atípicas na conta do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente, e o depósito de um cheque de 24 mil reais na conta da primeira-dama, Michele Bolsonaro.

Ana Carolina diz que essa visão de que o Coaf serve basicamente para combater a corrupção é um confusão feita pela população. Advogada, a pesquisadora é mestre e doutora em direito penal pela Universidade de São Paulo e especialista em direito penal pela Universidade de Barcelona.

Atualmente, ela faz parte de um grupo de pesquisadores internacionais no Instituto Max Planck de Direito penal internacional e estrangeiro, da Alemanha, em um projeto que compara sistemas de prevenção de lavagem de dinheiro e fluxos de informação entre unidades de inteligência financeira na Europa.

A seguir, leia os principais trechos da entrevista concedida a EXAME, que sinaliza os próximos passos para que o novo Coaf funcione no Banco Central:

EXAME: O Coaf é considerado por muitos como um caso de sucesso nos processos anticorrupção. Você concorda?

Ana Carolina Carlos: Não há dúvida de que o papel do Coaf é relevante nas investigações de qualquer tipo de crimes que tenham rendimentos econômicos, sendo a corrupção um deles. Antes de tudo, no entanto, é importante que fique sempre muito claro que o Coaf é um órgão de inteligência dedicado a identificar operações de suspeita de lavagem de dinheiro, ou seja, valores que tenham origem ilícita e que seu possuidor esteja tentando dar uma aparência de legalidade. Não é um órgão criado para combater especificamente a corrupção, como parece entender a opinião pública.

As investigações do Coaf são úteis para colaborar com as investigações de corrupção de uma forma indireta. Existe um dever dos sujeitos obrigados (pessoas que trabalham em instituições financeiras, por exemplo) de identificar com maior rigor as transferências de dinheiro e de bens realizadas pelos políticos e por todos que tenham relação familiar ou de negócios com eles, que são as chamadas “pessoas politicamente expostas” - PEPs.

Se os sujeitos obrigados suspeitam de que há dinheiro ilegal na movimentação financeira dos clientes, incluídos os PEPs, eles devem informar o Coaf. Este, por sua vez, irá combinar essas informações em sua base de dados e verificar se há uma suspeita forte, fundada, de que o dinheiro tenha mesmo origem ilícita. Só assim, ao identificar que existe supostamente lavagem de dinheiro, o Coaf pode levantar a bandeira vermelha de que existe provavelmente um crime por detrás desse capital.

A partir daí, o Coaf elabora um relatório e envia para a polícia, que, junto ao Ministério Público, é o órgão responsável por investigar a corrupção. Com isso, a contribuição do Coaf se restringe a informar sobre a suspeita de origem ilícito do dinheiro nas movimentações financeiras de alguém.

No ano passado, o Coaf passou a fazer parte do debate público, por conta dos relatórios sobre Flávio Bolsonaro. Anteriormente, ele fazia parte do Ministério da Economia e, agora, foi transferido via Medida Provisória para o Banco Central. Diante disso, já houveram outras tentativas de interferência no órgão? Faz diferença para o combate à corrupção onde ele ficará?

O Coaf está em debate desde a primeira transferência do órgão, do Ministério da Fazenda para o Ministério da Justiça. Então, poderíamos dizer que a mudança de Ministérios, no contexto político em que foi feita, pode ter sinalizado alguma tentativa de interferência.

A característica fundamental de uma Unidade de Inteligência Financeira (UIF), como é o Coaf, é que ela tenha independência e autonomia absolutas sobre seu funcionamento interno, sobre como define os padrões de lavagem de dinheiro e sobre o que decide investigar.

Por isso, teoricamente, deveria ser irrelevante a posição institucional do Coaf, desde que se mantenha intacta a independência do órgão e a estabilidade dos seus servidores, que vêm fazendo um trabalho de altíssimo nível.

Assim, mais do que discutirmos o melhor lugar para situar o Coaf, é importante que se dedique mais atenção às formas de garantir que ele continue trabalhando como um órgão técnico, independente e com boa estrutura para seu funcionamento.

Então como saber se o Coaf tem realmente independência?

Nesse sentido, há alguns indicadores importantes para saber se a estrutura institucional da UIF permite essa independência.

Para isso, podemos avaliar alguns pontos: 1º se os diretores e demais servidores são funcionários de carreira e têm estabilidade dentro do órgão; 2º se há uma boa proporção entre membros oriundos do Banco Central, Fisco, Polícia; 3º se há independência operativa, ou seja, se não há interferência política sobre a forma de organização interna do órgão; 4º se há independência financeira, na forma de um orçamento fixo e independente do número de casos que o Coaf investigue por ano — para que exista a liberdade de investigar casos mais complexos, que demandam mais tempo; 5º a UIF tem que ser capaz de traçar um plano de ação anual de investigação de “modos de operação” de lavagem de dinheiro e poder seguir sua linha de investigação de acordo com as decisões internas, sem interferência; 6º ter autonomia para compartilhar informações com UIFs internacionais, tanto enviando como recebendo informações relevantes para suas investigações internas.

Esses são, por exemplo, alguns indicadores que podemos pensar para avaliar a independência do Coaf. Mas essas informações geralmente não são públicas, e talvez nem precisariam ser. O importante é que haja um compromisso das instituições e dos governantes com a independência e preservação da UIF.

Há dois meses, Toffoli decidiu suspender o compartilhamento de relatórios do Coaf, se baseando em argumentos de violação do sigilo bancário. Qual a importância dessa decisão para a efetividade do órgão?

A decisão do Ministro Toffoli foi tomada em um caso pontual e permite interpretações distintas. O ministro afirma que o acesso as operações bancárias deve limitar-se à “identificação dos titulares das operações e dos montantes globais mensalmente movimentados”.

Depois menciona que os órgãos de fiscalização devem respeitar “balizas objetivas” a respeito do sigilo de dados antes de transferi-los automaticamente para o Ministério Publico. Ainda não está de todo claro o alcance dessa decisão.

De um lado, é preciso que o Coaf possa enviar informações suficientes que permitam ao órgão investigador (MP e polícia) entender a operação suspeita de lavagem de dinheiro. E por outro lado, mesmo a presença de um relatório de inteligência financeira (RIF) do Coaf não pode substituir o trabalho de investigação, pois esse é apenas um dentre outros elementos que constituem a investigação criminal. O RIF não pode ser o único elemento a basear a condenação criminal.

Como se resolve então a questão do repasse de informações do Coaf para o MP, por exemplo?

Penso que uma forma de esclarecer esse tema seria uma solução legal, no escopo da Lei de Lavagem de Dinheiro, que regule como os órgãos de investigação devem ou podem usar as informações contidas no relatório de inteligência financeira (RIF). Podemos tentar fazer um paralelo com a forma como essa questão é resolvida no Direito comparado, para quiçá propor uma alternativa ao legislador brasileiro.

Segundo a lei de lavagem de dinheiro espanhola, por exemplo, a polícia não pode anexar o equivalente espanhol do RIF diretamente como elemento de prova no processo penal. A partir das informações do RIF, que costumam ser bastante extensas, polícia e MP devem refazer os principais pontos da investigação bancária com autorização judicial.

Na Alemanha, por outro lado, não existe a proibição expressa de usar o RIF como prova processual, mas esse país tem uma interpretação muito mais restrita sobre o intercâmbio de informações entre órgãos internos, e isso tudo está regulado na Lei de Lavagem de Dinheiro do país e nas demais leis que regulam a proteção de dados e processo penal.

Em minha opinião, é preciso encontrar um equilíbrio. De um lado, o RIF não pode ser utilizado como alternativa para dispensar absolutamente o controle judicial em sede de investigação criminal. Por outro lado, o Coaf deve estar autorizado a compartilhar as informações suficientes para embasar sua suspeita de que se trata de dinheiro ilícito.

Na sua avaliação, a Medida Provisória do Coaf foi bem feita? Pode ser vista como uma solução?

Em princípio, a medida provisória é muito sintética e não oferece parâmetros suficientes para que possamos entender como será a reestruturação do órgão. Por esse motivo, como comentei, acredito que uma regulamentação mais detalhada poderia oferecer melhores parâmetros para todos os interessados no bom funcionamento do Coaf.

Por exemplo, uma regra que determine a proporção de funcionários de cada órgão que compõe a UIF, o financiamento, a periodicidade das reuniões do Conselho, as exceções e limites sobre as regras de proteção de dados, etc.

Acredito que seja especialmente relevante uma solução legislativa para o que está disposto no art. 17 – B e art. 15 da da Lei 9.613, de lavagem de dinheiro. O artigo 17 dispõe que o Coaf só pode enviar informações cadastrais, enquanto que o art. 15 inclui a responsabilidade pela comunicação “para instauração de procedimentos cabíveis”.

O Coaf dever ser preservado e o poder judiciário deve conter os abusos na investigação criminal. E todo esse sistema de pesos e contrapesos pode funcionar muito melhor com uma lei mais esclarecedora.

No entanto, é preciso um debate legislativo muito sério para que essas reformas sejam positivas, e isso talvez seja arriscado nesse momento em que os holofotes estão voltados para o Coaf.

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