Brasil

Modelo no mundo, departamento de combate ao HIV do Brasil perde status

Decreto do Ministério da Saúde transformou órgão que combate a doença em uma coordenadoria dentro da pasta

HIV/Aids: segundo ONGs, associações e especialistas que atuam na área, as mudanças podem enfraquecer a política (NurPhoto / Contributor/Getty Images)

HIV/Aids: segundo ONGs, associações e especialistas que atuam na área, as mudanças podem enfraquecer a política (NurPhoto / Contributor/Getty Images)

EC

Estadão Conteúdo

Publicado em 23 de maio de 2019 às 10h31.

Última atualização em 23 de maio de 2019 às 10h31.

Brasília — O governo federal vem recebendo uma série de críticas de ONGs e especialistas em saúde após alterar a estrutura do departamento do Ministério da Saúde responsável pelas ações de combate ao HIV/Aids e a outras doenças sexualmente transmissíveis.

O órgão tem atuação histórica na luta contra a doença e sua política é considerada modelo para outros países por ações como a oferta gratuita de tratamentos antirretrovirais para todos os portadores do vírus.

Em decreto do último dia 17, assinado pelo presidente Jair Bolsonaro e pelos ministros Paulo Guedes (Economia) e Luiz Henrique Mandetta (Saúde), o governo alterou o nome do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais para Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis, rebaixando a área de HIV/Aids a uma coordenação.

Colocou ainda sob responsabilidade do departamento outras duas doenças não relacionadas ao contágio sexual: tuberculose e hanseníase. Antes, essas patologias ficavam sob o guarda-chuva do Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis.

Segundo ONGs, associações e especialistas que atuam na área, as mudanças podem enfraquecer a política de combate à Aids ao reduzir a importância do tema e dilui-lo em um departamento com diferentes demandas. Um dos temores é que o departamento tenha que desenvolver ações para duas novas doenças sem ter incremento no orçamento.

"Não é uma mera questão burocrática. A gente tinha no departamento um modelo de combate à Aids focado em dois pilares: corpo técnico especializado e participação da sociedade civil. Quando você dilui ou sobrecarrega essa estrutura, o risco é imenso pois perde-se o caráter de relevância e excepcionalidade que essa doença exige", diz Mario Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).

A diretoria da Sociedade Paulista de Infectologia (SPI) afirmou, em nota, que "vê com preocupação" a mudança. "Enquanto muitos países, a exemplo dos Estados Unidos, divulgam políticas para eliminar a transmissão do HIV nos próximos 10 anos, estamos vivenciando um retrocesso no Brasil", declarou.

Em nota conjunta, seis coletivos e associações de ONGs que lutam contra a Aids afirmaram que a decisão é preocupante porque tira o protagonismo do tema dentro do ministério. Eles criticam ainda o fato de não terem sido consultados nem comunicados sobre as mudanças, mesmo tendo participado de reunião com o ministério há um mês.

"O marco simbólico de ter uma estrutura de governo voltada para o enfrentamento a Aids é indicativo da importância que se dá à epidemia", afirmam as entidades.

"Esse decreto acaba com uma experiência democrática de governança de uma epidemia baseada na participação social e na intersetorialidade. Prova disso é que há pouco mais de um mês, nas reuniões da Comissão Nacional de IST, HIV/AIDS e Hepatites Virais (CNAIDS) e da Comissão Nacional de Articulação com Movimentos Sociais (CAMS), absolutamente nada se falou sobre o decreto e nenhum esclarecimento foi prestado sobre suas potenciais consequências", ressaltaram as associações no documento.

Assinaram a nota a Articulação Nacional de Luta contra a Aids (ANAIDS), a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), o Fórum de ONGs AIDS/SP (FOAESP), o Grupo de Apoio à Prevenção da AIDS/RS (GAPA/RS), o Grupo de Incentivo à Vida (GIV) e a Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS.

O youtuber e comunicador sobre educação sexual e prevenção combinada Lucas Raniel, do canal Falo Memo, classificou como "negligência" a falta de transparência sobre o decreto.

"Tenho certeza que se isso tivesse sido divulgado anteriormente, com um debate com organizações, institutos e entidades, esse decreto não teria sido publicado como foi", afirma Raniel.

"Nós, que vivemos com HIV, a partir do momento que Bolsonaro entrou no poder, esperávamos que [o departamento] pudesse sofrer alguma mudança, mas não imaginávamos que fosse tão rápida", declarou.

Segundo o youtuber, a mudança pode abrir caminho para um possível enfraquecimento do programa de prevenção e combate ao HIV.

"Não que vá faltar exames ou medicação, mas com o tempo, os profissionais podem ser menos treinados, menos remunerados. Tudo pode ficar mais difícil, mais demorado e vai enfraquecendo um sistema que deveria ser fortalecido."

Justificativas

Questionado sobre as mudanças, o Ministério da Saúde informou que a estrutura da pasta foi reformulada "visando maior integração entre as áreas e a otimização das ações de assistência e promoção à saúde, combate e prevenção de doenças, incluindo as transmissíveis".

Disse ainda que "a estratégia de resposta brasileira ao HIV/Aids não será prejudicada com a reestruturação" e que "a intenção é trabalhar com as doenças mais comuns nas populações com maior vulnerabilidade e com os mesmos condicionantes sociais".

A pasta deu como exemplo dessa necessidade de integração a relação entre HIV e tuberculose. "As pessoas vivendo com HIV, por exemplo, têm maior risco de desenvolver a tuberculose, além de ser um fator de maior impacto na mortalidade nesses casos. Também é comum que o diagnóstico da infecção pelo HIV seja feito durante a investigação/confirmação da tuberculose", afirmou.

Sobre a questão financeira, a pasta disse que o orçamento para combate ao HIV/Aids, ISTs e hepatites virais vem crescendo ao longo dos últimos anos, tendo passado de R$ 1,7 bilhão em 2018 para R$ 2,2 bilhões neste ano.

O ministério não informou, no entanto, se esse orçamento será reajustado considerando as duas novas demandas do departamento: tuberculose e hanseníase.

Acompanhe tudo sobre:AidsGoverno BolsonaroJair BolsonaroMinistério da Saúde

Mais de Brasil

Ações isoladas ganham gravidade em contexto de plano de golpe, afirma professor da USP

Governos preparam contratos de PPPs para enfrentar eventos climáticos extremos

Há espaço na política para uma mulher de voz mansa e que leva as coisas a sério, diz Tabata Amaral

Quais são os impactos políticos e jurídicos que o PL pode sofrer após indiciamento de Valdemar