Intoxicados, feridos e mortos: animais são vítimas do fogo no Pantanal
A área queimada neste ano já é 76% maior do que a devastada no mesmo período de 2020; época mais seca e quente começa só agora, em setembro
Agência de notícias
Publicado em 1 de setembro de 2024 às 09h57.
A ferocidade do fogo acuou Miranda. Com as patas queimadas, infestadas por larvas, mancando, ela vagou pelo Pantanal do Mato Grosso do Sul fugindo dos incêndios de agosto. Imagens sugerem que a onça-pintada, em seu martírio, percorreu cerca de 100 quilômetros, contornando as chamas, até o local onde foi resgatada, uma manilha onde havia se abrigado, quase sem forças.
A onça-pintada é o mais poderoso dos animais do Brasil. Nada, salta e pode correr a até 80 km/h. Mas não é páreo para a fúria do fogo, iniciado pelo ser humano e intensificado pelo clima. E os animais são as maiores vítimas, destacam especialistas.
O Pantanal é a principal vitrine da biodiversidade do país. Em nenhum outro bioma a vida selvagem se apresenta com tamanha exuberância. O fogo deste ano, porém, ameaça mudar isso.
Sem que populações de várias espécies tenham se recuperado dos incêndios de 2020, até agora os maiores da História, os animais voltam a sofrer. A área queimada já é 76% maior do que a devastada no mesmo período de 2020 e a época mais seca e quente começa só agora, em setembro.
O silêncio das cinzas
No Pantanal, o fogo chega com o rugido do vento, num turbilhão de labaredas. Mas deixa um rastro de silêncio. As áreas queimadas viram campos de morte e cinzas. E mesmo onde não queimou, são poucos os animais que se ouve ou avista nos dias após os incêndios.
Paula Helena Santa Rita, coordenadora do Grupo de Resgate Técnico Animal Cerrado Pantanal (Gretap-MS) e professora da Universidade Católica Dom Bosco, afirma que muitas populações não se recuperaram da crise de 2020.
Alguns bichos escapam pelas rotas de fuga abertas para eles por iniciativas como a da Brigada Alto Pantanal (BAP), do Instituto Homem Pantaneiro, que tem o apoio do projeto GEF Terrestre. Brigadistas abriram caminhos seguros para cursos d’água. No entanto, animais menores, lentos e filhotes não têm chance.
— Alguns, até mesmo onças, ficam cercados, quase sempre devido ao vento. Mas, em geral, os mais rápidos, fogem. Para onde, não sabemos — diz Paula Santa Rita, que liderou a equipe que resgatou a onça-pintada.
O resgate mobilizou além do Gretap, o Ibama e a Polícia Militar Ambiental do MS.
— Saímos para resgatar tucanos, cotias, cobras, como Preciosinha, um filhote de sucuri. Toda vida importa — frisa Santa Rita.
Batizada com o nome do município onde foi encontrada, Miranda está internada desde 15 de agosto no Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (Cras), em Campo Grande. Ela é jovem. Deve se recuperar e voltar à vida selvagem. Outra onça queimada está internada no Cras. É um macho adulto resgatado em Passo do Lontra, batizado de Antã, “forte” em tupi-guarani.
Muitos não tiveram chance. As labaredas se espalharam tão depressa que o filhote de veado parecia ter sido fulminado. Foi petrificado em sua tentativa de fuga, preso na vegetação em chamas. Pegadas no chão de cinzas fumegantes revelaram que a mãe tentou salvá-lo, em vão.
O filhote foi uma das incontáveis vítimas animais do incêndio que atingiu em agosto a Reserva Particular do Patrimônio Natural Engenheiro Eliezer Batista, a cerca de cinco horas de barco do centro de Corumbá (MS).
— A última coisa que a gente quer ver é isso. Não é só mais um animal. É uma vida. Cresci no Pantanal . Sei como era de tanto de bicho — afirma o coordenador da BAP, Manoel Garcia da Silva.
O solo de turfa funciona como uma armadilha de brasa, oculta sob cinzas. Mata após o incêndio e queima por vários dias. Os bichos pisam e afundam. Dois veados presos nessa fornalha e resgatados pelo Gretap com as patas queimando até os ossos tiveram que ser sacrificados porque perderam os cascos.
A tragédia dos bichos afeta com desproporcional inclemência os tamanduás. O pelo deles é extremamente inflamável, e não à toa, são conhecidos no Pantanal como labaredas, explica a médica veterinária Flavia Miranda, presidente do Instituto Tamanduá.
— Muitas vezes, os encontramos sem chance de sobreviver de tão queimados. Mesmo equipes treinadas estão emocionalmente abaladas com tamanho sofrimento. Como os tamanduás, símbolos tão importantes da nossa fauna, morre o Pantanal, que está sendo levado a um ponto de não retorno — diz Miranda.
Ela enfatiza que ações humanas são as responsáveis pela tragédia e que cabe à sociedade a resposta. Muitos animais morreram ou se feriram no incêndio que em agosto devastou 80% dos 53 mil hectares do refúgio ecológico Caiman, em Miranda.
Filhotes órfãos
A pesquisadora teme pelos tamanduás que haviam sido salvos em 2020, reabilitados pelo projeto Órfãos do Fogo e que estavam na área devastada. Miranda acrescenta que o fogo de 2024 fez novos órfãos.
— A mãe às vezes aguenta alguns dias queimada, com o filhote mamando. Mas quando morre, se ele não for encontrado logo, morre também — diz a cientista.
O fogo não poupa nem aves. As araras-azuis, símbolos do Pantanal, foram duramente atingidas em suas duas principais áreas de conservação.
— Os incêndios de agosto foram catastróficos. As araras-azuis perderam áreas de reprodução e de dormitório. Elas vinham tentando se recuperar do fogo de 2019 e 2020. Mas, agora, com outro fogo devastador, não sabemos — afirma Neiva Guedes, presidente do Instituto Arara Azul e a maior especialista do mundo na espécie.
As perdas deste ano ainda estão sendo avaliadas. Guedes diz que, além dos efeitos imediatos, o fogo traz fome, destrói ninhos, aumenta predação e competição e causa uma explosão de doenças.
— O fogo rouba tudo dos bichos. As araras já enfrentavam consequências dos incêndios passados, como nascimento de filhotes com baixa imunidade, lesões. E por conta dos incêndios, não conseguimos nem avaliar quantas araras-azuis restam no Pantanal — ressalta Guedes.