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Para cientista, Maquiavel é fundamental para o bom político

Livro se propõe a explicar “O Príncipe” de Maquiavel no contexto das nossas preocupações sociais e políticas

Senado: o que interessa ao político em sua atuação é a percepção das pessoas, e não a realidade.

Senado: o que interessa ao político em sua atuação é a percepção das pessoas, e não a realidade.

DR

Da Redação

Publicado em 11 de novembro de 2017 às 08h37.

Última atualização em 11 de novembro de 2017 às 15h07.

O Príncipe – uma chave de leitura

Autor: Miguel Vatter

Editora: Vozes

232 páginas

Preço: 38 reais

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É natural para nós admitir que os políticos buscam o poder. Sabemos que eles mentem muitas vezes. Na vida privada, na economia, também admitimos que as pessoas buscam seu próprio lucro, buscam subir na vida. Os homens lutam por mais estima, mais poder; uns querem se sobressair sobre os demais, e não há nada na natureza das coisas que aloque a cada indivíduo seu lugar “correto” no mundo; a vida é o que fizermos dela. Nada disso é novidade. Por muito tempo no ocidente, contudo, essas constatações não podiam ser feitas oficialmente.

Os homens deviam estar contentes com seu estado na vida, buscando melhorar sua condição apenas dentro da estreita faixa que a ela foi alocada pela Providência; almejar cargos e poder era visto como pecado; os reis, para governar bem, deviam ser pessoas pessoalmente virtuosas, piedosas e se espelharem nos escritos dos santos e nos exemplos do passado.

Isso é o que vigorava no plano do discurso. A realidade nunca seguiu essas regras, nem mesmo no auge da fé e da moral cristã pública. Quem rasgou esse véu que impedia os homens de compreenderem a realidade política do mundo em que viviam – ignorância que tinha consequências práticas ruins para muitas sociedades – foi Maquiavel.

Seu pequeno livro “O Príncipe” foi revolucionário em sua época e legou para ele, até os dias de hoje, a fama de professor de maldade. De exemplo negativo, que nenhuma pessoa de bem deveria seguir. O príncipe deve estar disposto a mentir e ser cruel quando necessário. O que poucos atentam, contudo, são as motivações de Maquiavel, não tão distantes das nossas. Explicar “O Príncipe” de Maquiavel no contexto das nossas preocupações sociais e políticas é a função a que Miguel Vatter (professor de filosofia política na Universidade de New South Wales, Austrália) se propõe em “O Príncipe – Uma Chave de Leitura”, livro originalmente de 2013 e publicado aqui no Brasil este ano.

Quando falamos em Maquiavel, costumamos nos lembrar dos maus políticos: daqueles que mentem e tramam ardis para conquistar e manter o poder, no que prejudicam a população. Na explicação de Vatter, fica claro como os ensinamentos de Maquiavel são igualmente – ou até mais – relevantes na conduta do bom político. Afinal, dele depende a liberdade do povo com relação aos demais povos.

Internamente, dele depende a preservação da liberdade do povo contra os anseios das elites que querem dominá-los. Afinal, em toda sociedade haverá aqueles que buscam dominar os demais. Se não houver uma autoridade máxima que garanta o interesse da maioria (do povo) em não ser dominada, ela ficará nas mãos de seus dominadores. Os abusos de ricos e poderosos são um risco constante, e apenas um poder maior que o deles, o do Estado, pode impedi-los.

O desejo de dominação continua a existir. Mas, graças a um sistema de leis e de coerção, ele é agora canalizado não mais para a dominação pelas armas, e sim para fins privados: acumulação de riqueza no mercado, por exemplo. Para instituir esse sistema de direitos respeitados, o Estado tem que necessariamente violar esses direitos num ato original de criação das leis, que depende da violência acima de tudo.

O mundo de Maquiavel não é o mais o mundo medieval em que uma ordem metafísica determinava o bem humano, e a função da autoridade política era direcionar os homens à virtude. Agora, não há mais ordem; apenas desejos, e a função do Estado (esse dono da violência) é a de garantir que cada um possa perseguir seus interesses sem ferir os demais cidadãos. Ou seja, a visão de Maquiavel é a nossa concepção atual da sociedade.

O imoralismo que ele propõe nada mais é do que o realismo que qualquer líder deve ter. Via de regra, ele pode seguir a moral convencional, mas todo Estado chegará a um momento de decisão que exigirá agir fora das regras; e apenas um líder corajoso o bastante para isso será capaz de guiar seu Estado para o sucesso e não permitir que ele seja engolido por outros (como acontecera com a Florença de Maquiavel).

Segundo Vatter, é Maquiavel que, ao abandonar as crenças antigas e medievais numa ordem natural, dentro da qual o governante desempenha um papel previamente determinado naquela visão de mundo, abre caminho para o entendimento liberal da sociedade da política. Nele, o indivíduo humano tem de desejos que não se encaixam em nenhum esquema universal prévio e que entram em conflito com os dos demais, e a função da política como a de desenhar uma ordem social que possa conciliar esses desejos humanos num todo funcional.

A política responde aos anseios da população. E a população se guia por aparências, por opiniões, não pela verdade em si. Sendo assim, o que interessa ao político em sua atuação é a percepção das pessoas, e não a realidade. Por isso ele pode – e às vezes deve – falar coisas para agradar ao público sem intenção de cumpri-las. Se ele realmente quer o bem da sociedade, ele tem que estar disposto a não seguir suas promessas naquelas coisas que, se cumpridas, prejudicariam os reais interesses da população. Uma promessa desastrosa é melhor que seja esquecida do que cumprida.

Não seria mais fácil simplesmente não mentir desde o início? Seria. Mas se ele assim o fizesse, não conquistaria a estima da população, não chegaria ao poder e não poderia fazer nada pela sociedade. É a sina de religiosos bem-intencionados (nos nossos tempos, seriam ongueiros e ativistas?). A sobrevivência e liberdade do povo dependem de pessoas capazes de ser, de acordo com as circunstâncias, astutas como raposas e ferozes como leões. Essa é a real virtude, que está acima das considerações morais.

Uma característica que torna o livro particularmente elucidativo é que Vatter se utiliza de exemplos modernos para ilustrar as ideias de Maquiavel. Embora “O Príncipe” trate de conflitos e questões há muito esquecidas, Vatter traz temas como globalização, poderio americano e campanhas políticas para ilustrar a discussão. Outro detalhe enriquecedor do livro é colocar, ao final de cada capítulo, algumas questões para instigar o pensamento do leitor. Não são meramente para testar a compreensão da leitura, mas levar o que foi discutido um passo além. Após tratar da função do Estado, por exemplo, ele pergunta: “O fato básico da sociedade é o conflito ou a cooperação?”

Maquiavel representa um desafio a todos nós que acreditamos na importância da ética e da coerência para a condução da boa política. A paz exige o militarismo. Os direitos exigem a violação do direito. Vatter, ao mostrar como nossa própria concepção de sociedade é o que estava sendo gestado em Maquiavel, e ao nos instigar a pensar nas implicações que as prescrições do florentino têm nos dias de hoje, torna sua obra ao mesmo tempo clara e formadora.

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