Brasil

Haddad não criou o "kit gay"

Bolsonaro acusa adversário de ter sido responsável pela idealização de material escolar contra homofobia, mas iniciativa surgiu do Legislativo

"Kit gay": a origem do material remonta a 2004, quando Haddad ainda não era ministro da Educação (TV Globo/Reprodução)

"Kit gay": a origem do material remonta a 2004, quando Haddad ainda não era ministro da Educação (TV Globo/Reprodução)

DR

Da Redação

Publicado em 12 de outubro de 2018 às 08h00.

Última atualização em 12 de outubro de 2018 às 08h00.

“[Fernando Haddad] criou o ‘kit gay’.” – Jair Bolsonaro, candidato à Presidência pelo PSL, em entrevista à rádio Jovem Pan.

Ao contrário do que afirmou o presidenciável Jair Bolsonaro (PSL) em entrevista à rádio Jovem Pan em 9 de outubro, seu adversário na disputa eleitoral, Fernando Haddad (PT), não criou nenhum “kit gay”. O termo pejorativo é usado por críticos para se referir ao Escola Sem Homofobia.

O material – composto por um caderno e peças impressas e audiovisuais – foi encomendado pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados ao Ministério da Educação (MEC) e elaborado por um grupo de ONGs especializadas, em conformidade com as diretrizes de um programa do governo federal lançado anteriormente, em 2004. Quando houve a polêmica sobre o seu conteúdo, em 2011, Haddad estava no comando do MEC.

A cartilha tinha como principal objetivo promover “valores de respeito à paz e à não-discriminação por orientação sexual”. Não há no documento nenhuma orientação que justifique a alcunha “kit gay”.

Diversos especialistas em educação já se manifestaram favoravelmente ao material e entidades da sociedade civil avaliam o conteúdo como adequado para as faixas etárias indicadas.

Além disso, não é possível atribuir a Fernando Haddad responsabilidade sobre a autoria do material, porque o projeto surgiu do poder Legislativo e não foi desenvolvido diretamente pelo MEC, mas por ONGs contratadas pelo ministério.

Quando a cartilha foi vetada pela presidente Dilma Rousseff (PT), os materiais do kit ainda estavam sob análise da pasta. Por isso, o Truco – projeto de checagem da Agência Pública – classifica a frase de Bolsonaro como falsa.

A origem do material remonta a 2004, quando Haddad ainda não era ministro da Educação. Foi naquele ano que o governo federal lançou o “Brasil sem Homofobia – Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB e Promoção da Cidadania Homossexual”.

No plano de implementação da proposta há recomendações para que sejam elaborados materiais educacionais que promovam valores de respeito à paz e à não discriminação por orientação sexual.

Seguindo com atraso a recomendação do programa, o projeto Escola Sem Homofobia foi financiado pelo Ministério da Educação por meio de recursos aprovados em 2006 por emenda parlamentar da Comissão de Legislação Participativa da Câmara de Deputados.

O resultado do projeto foi uma cartilha dividida em três capítulos, subdivididos em tópicos, além de dois anexos com sugestões de sequências didáticas e de como utilizar os materiais em vídeo. Dinâmicas sobre o assunto de cada tópico são propostas pelos autores para professores e alunos.

Durante uma reunião da Comissão de Legislação Participativa sobre homofobia nas escolas realizada em 2010, Beto de Jesus, secretário de finanças da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), uma das entidades responsáveis pela criação do material, disse sentir falta da participação do então ministro da Educação, Fernando Haddad, no processo.

“Eu sinto a ausência do ministro nas questões relacionadas a LGBTs”, afirmou. “Já conseguimos falar com os ministros, eles já estiveram em espaços nossos, mas o ministro Haddad ainda não esteve em espaços nossos; ele não foi nem na Conferência Nacional. Outros ministros foram.”

Em nota oficial divulgada em 20 de janeiro de 2011, as entidades envolvidas na elaboração da cartilha garantiram que todas as etapas de planejamento e execução do projeto “foram amplamente discutidas e acompanhadas de perto pelo MEC e pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secad)”.

Na época, o material teve sua distribuição aprovada e recomendada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

Em nota, a Unesco disse que o conteúdo era adequado às faixas etárias e de desenvolvimento afetivo-cognitivo a que se destinam, em concordância com a Orientação Técnica Internacional sobre Educação em Sexualidade, publicada pela entidade em 2010.

Além da Unesco, outros órgãos ligados à Organização das Nações Unidas (ONU), como o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (Uniaids), mostraram-se favoráveis à distribuição da cartilha em 2011.

O Conselho Federal de Psicologia também emitiu um parecer técnico favorável ao Escola Sem Homofobia. “É notório o cuidado didático-pedagógico e qualidade visual com que foi criado e desenvolvido todo o conjunto educacional apresentado no kit – vídeos, livretos, cartilhas, boletins com temas específicos e panfletos. Trata-se de uma produção densa, cuidadosa e bem articulada”, afirma o parecer.

No entanto, pressões de grupos religiosos no Congresso levaram o governo federal a recuar e a presidente Dilma suspendeu a produção e distribuição do material, em maio de 2011.

À época, o kit produzido pelas entidades Pathfinder do Brasil, Reprolatina e Comunicação em Sexualidade (ECOS), com apoio da ABGLT, ainda estava sendo analisado por técnicos do MEC.

Em entrevista à revista Nova Escola, o pedagogo Ricardo Desidério, que avalia alguns conteúdos do material anti-homofobia em seu doutorado na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), diz que o material representaria um avanço nas escolas.

“Os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais, elaborados em 1997) eram o único documento que tratava de sexualidade, mas o faziam de forma genérica. Já esse material faz um recorte prático do que precisa ser trabalhado na escola hoje”, disse Desidério.

Outros especialistas ouvidos pela Folha de S.Paulo em 2011 também aprovaram o conteúdo da cartilha contra homofobia. “Não dá para dizer que há incentivo à bissexualidade, até porque [a orientação sexual] não é algo que se resolva de repente”, disse à Folha a professora de psicologia da educação da Pontifícia Universidade Católica (PUC), Ana Mercês Bock.

O material é alvo de críticas de Jair Bolsonaro com frequência. A própria campanha de Haddad já desmentiu que o petista seria responsável pelo “kit gay” em uma publicação no site da coligação O Brasil Feliz de Novo.

“A expressão preconceituosa vem sendo utilizada com intenções políticas nefastas, inclusive distribuindo imagens falsas do material e citando livros fora de contexto”, relata o texto da página.

Na mesma entrevista para a rádio Jovem Pan, Bolsonaro criticou novamente o projeto anti-homofobia falando que “não se aprende nada na escola, é filme de menino se beijando, filme de menina se acariciando”.

Para o candidato, “a escola é para aprender matemática, química, física, e não sexo.” No entanto, no material do Escola Sem Homofobia não há representações de crianças mantendo relações sexuais.

Bolsonaro também direcionou recentemente suas críticas ao livro Aparelho Sexual e Cia. A obra, editada pela Cia das Letras, já vendeu 1,5 milhão de exemplares em todo o mundo e foi publicada em dez idiomas.

Durante uma entrevista para o Jornal Nacional, da Rede Globo, o candidato afirmou que a obra seria distribuída nas escolas pelo MEC, relacionando-a ao “kit gay”.

No entanto, o livro também não faz ou fez parte de nenhum programa do MEC, conforme desmentido pelo próprio ministério em nota oficial publicada em 2016.

*Conteúdo publicado originalmente no site da Agência Pública.

Acompanhe tudo sobre:EducaçãoFake newsFernando HaddadJair BolsonaroLGBT

Mais de Brasil

Chuvas fortes no Nordeste, ventos no Sul e calor em SP: veja a previsão do tempo para a semana

Moraes deve encaminhar esta semana o relatório sobre tentativa de golpe à PGR

Acidente com ônibus escolar deixa 17 mortos em Alagoas

Dino determina que Prefeitura de SP cobre serviço funerário com valores de antes da privatização