Escolas cívico-militares: entenda por que o Ministério da Educação decidiu acabar com o programa
Nota técnica que embasou o fim do programa defende que ele desvia a finalidade das Forças Armadase e compromete recursos que poderiam ser mobilizados em frentes prioritárias
Agência de notícias
Publicado em 14 de julho de 2023 às 06h52.
Última atualização em 14 de julho de 2023 às 06h53.
A nota técnica do Ministério da Educação que embasou o fim do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim) avaliou que o programa desvia a finalidade das Forças Armadas, comprometeu recursos que poderiam ser mobilizados em outra prioridade e questionou a capacidade de o modelo solucionar problemas do ensino público.
Em um dos trechos mais duros, o documento chega a afirmar que os investimentos para manter militares reformados nas escolas públicas em atividades de assessoria e suporte “parecem debochar da escassez de recursos que as redes de ensino conseguem mobilizar para o pagamento de seu próprio pessoal”.
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O documento, assinado pelo secretário de Educação Básica substituto Alexsandro do Nascimento Santos, ressaltou que oficiais superiores, como os coronéis, recebem gratificações que passam de R$ 9 mil.
O governo Bolsonaro gastou, entre 2020 e 2022, quase R$ 100 milhões em escolas cívico-militares. Em 2023, a administração do presidente Lula zerou os empenhos.
No seu auge, com cerca de 200 escolas mantidas em parceria do MEC com estados ou municípios, o programa atendia apenas 0,1% das escolas públicas. Mesmo assim, em 2021 e 2022, o programa ficou entre as 15 maiores verbas discricionárias, em que o ministro tem poder de decisão de onde gastar, da educação básica.
"O programa foi um desvio de foco, tempo e recursos públicos, com tanta política importante a ser priorizada. É um absurdo o que foi dedicado a esse programa", criticou o diretor de Políticas Públicas do Todos Pela Educação, Gabriel Corrêa.
Criado em 2019, o programa defendia que os colégios do Exército, das Polícias Militares e dos Bombeiros eram modelos que podiam ser replicados e resolveriam os problemas das escolas públicas de ensino fundamental e médio.
Santos argumentou na nota técnica que essa ideia “causa espanto”, já que, segundo ele, essas unidades possuem “finalidade, funcionamento e estrutura absolutamente diferente”.
“A ideia de que a vulnerabilidade social nos territórios em que funcionam nossas escolas públicas possa ser resolvida a partir de dispositivos, modelos ou estruturas de ação próprias dos colégios militares também parece ecoar uma história social brasileira que alimenta uma profunda aporofobia, classificando os pobres (e a pobreza) como um problema relacionado à criminalidade, à falta de disciplina, à sua preguiça ou à sua falta de patriotismo e civismo”, escreveu o autor.
Ainda de acordo com a nota técnica, os colégios militares, em sua regulação, não possuem a finalidade de atender a todos. “Assume-se que o modelo ali definido é baseado na ‘seleção pelo mérito’”, diz o documento. A escola pública, contrapôs a nota, é universal por “definição normativa e por orientação ética”.
Além disso, o documento aponta que “há um equívoco inaugural no modelo da contratação” dos militares. A forma utilizada era por prestação de tarefa por tempo certo que, segundo a lei federal que o regulamenta, é“uma medida de gestão de pessoal militar que tem por fim permitir a execução de atividades de natureza militar por militares inativos possuidores de larga experiência profissional e reconhecida competência técnico-administrativa”.
De acordo com o autor, “não há que se falar em execução de atividades de natureza militar no âmbito das escolas de educação básica regulares”. Ele argumenta que as instituições educacionais possuem outra natureza e as atividades ali desenvolvidas em nada se confundem com atividades de natureza militar.
Veja os principais trechos da justificativa
Aporofobia
Na Exposição de Motivos apresentada quando da propositura do Decreto, é possível ler o seguinte: ‘A motivação para a institucionalização do Programa decorre da necessidade de adaptação das escolas regulares de Ensino Fundamental e Médio, as quais se encontram em situação de vulnerabilidade social, em Escolas Civico-Militares, com ênfase na gestão de excelência nas áreas educacional, didático-pedagógica e administrativa, baseadas nos Colégios Militares do Exército, das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares’.
Causa espanto que a visão instaurada na propositura interprete que os problemas graves e complexos de vulnerabilidade social que emergem nas regiões mais pobres do país e que impactam a estrutura e o funcionamento da escola pública possam ser resolvidos ou tratados a partir de um “modelo de excelência de gestão” desenhado para colégios de natureza militar, com finalidade, funcionamento, estrutura e lugar institucional absolutamente diferente daqueles que organizam e movimentam os sistemas municipais e estaduais de educação. É como se julgássemos que a vulnerabilidade social dos territórios é um tema de política militar e não de política social e que o encaminhamento de suas soluções passa pelo controle, hierarquia, disciplina e ordem que alicerçam a institucionalização das Forças Armadas no Brasil.
A ideia de que a vulnerabilidade social nos territórios em que funcionam nossas escolas públicas possa ser resolvida a partir de dispositivos, modelos ou estruturas de ação próprias dos Colégios Militares também parece ecoar uma história social brasileira que alimenta uma profunda aporofobia, classificando os pobres (e a pobreza) como um problema relacionado à criminalidade, à falta de disciplina (dos pobres), à sua preguiça ou à sua falta de patriotismo e civismo. Tal campo discursivo opta por ignorar que a pobreza e a vulnerabilidade social são consequências de uma história de sustentação de desigualdades inaceitáveis e, longe de ser ‘culpa’ dos pobres e vulnerabilizados, é um fardo que nossa sociedade insiste em lançar sobre seus ombros.
Desvio de Finalidade
Os colégios militares, que têm sua regulação prevista na Lei 9.786/1999 não possuem a finalidade institucional de atender a todos os cidadãos e nem assumem o compromisso de acolher qualquer pessoa que busque participar de seu corpo discente. Ao contrário, no capítulo II do referido diploma legal, ao declarar os princípios que organizam o ensino nos colégios militares, assume-se que o modelo ali definido é baseado na “seleção pelo mérito”.
A escola pública regular é universal por definição normativa e por orientação ética. Não existe qualquer possibilidade jurídica de a escola pública organizar-se por um modelo de gestão que pressupõe, por exemplo, que um princípio organizador da escola seja a “seleção pelo mérito” ou a expectativa de que os estudantes desenvolvam um “condicionamento diferenciado dos reflexos e atitudes funcionais”. A excelência de gestão dos colégios militares serve às finalidades e características da estrutura e funcionamento dos colégios militares e, ao ser “transferido” para as escolas públicas, como um padrão a ser atingido, produz distorções gravíssimas que afetam toda a dinâmica escolar.
Investimentos robustos
Os investimentos robustos para manter militares reformados nas escolas públicas de ensino fundamental e médio em atividades de assessoria e suporte parecem debochar da escassez de recursos que as redes de ensino conseguem mobilizar para o pagamento de seu próprio pessoal. Se, no caso de um oficial de graduação superior, a remuneração média mensal empenhada a título de gratificação para exercer atividades orbita na casa dos R$ 8 mil, pouquíssimos diretores das escolas em que eles atuam alcançam isso como salário.
Assim sendo, não é surpreendente que, quando o poder público oferece a promessa de investimentos robustos de infraestrutura e de uma gestão com a força de imposição que o signo das forças militares mobiliza à comunidades escolares empobrecidas e que contam com escolas nas quais a infraestrutura física é precária e o sistema de alocação dos professores não garante uma estabilidade e regularidade do corpo docente, o resultado seja um grau razoável de aceitação e engajamento com o modelo preconizado pelas escolas cívico-militares estaduais ou vinculadas ao Pecim.
Conclusão
Nossa análise preliminar, salvo melhor juízo, conclui que as características do Programa e sua execução até agora indicam que sua manutenção não é prioritária e que os objetivos definidos para sua execução devem ser perseguidos mobilizando outras estratégias de política educacional. Desaconselhamos que o Programa seja mantido por compreendermos que: a) há problemas de coesão/coerência normativa entre sua estrutura e os alicerces normativos do sistema educacional brasileiro; b) o programa induz o desvio de finalidade das atividades das forças armadas, invocando sua atuação em uma seara que não é sua expertise e não é condizente com seu lugar institucional no ordenamento jurídico brasileiro; c) a execução orçamentária dos recursos de assistência financeira destinados às escolas do Programa ao longo dos anos de 2020, 2021 e 2021 foi irrisória, comprometendo investimentos que poderiam ser mobilizados em outras frentes prioritárias do Ministério da Educação e, salvo melhor juízo, indicando ineficiência no processo de implementação; d) a justificativa para a realização do Programa apresenta-se problemática, ao assumir que o modelo de gestão educacional, o modelo didático-pedagógico e o modelo de gestão administrativa dos colégios militares seriam a solução para o enfrentamento das questões advindas da vulnerabilidade social dos territórios em que as escolas públicas estão inseridas e que teriam as características necessárias para alcançar o tipo de atendimento universal previsto para a educação básica regular, ignorando que colégios militares são estruturalmente, funcionalmente, demograficamente e legalmente distintos das escolas públicas regulares.