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Marielle: um marco nos homicídios políticos no Brasil

Campeão mundial em assassinatos, o Brasil tem uma política violenta em pequenas cidades, mas não a nível nacional

Protesto durante o enterro da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro (Sergio Moraes/Reuters)

Protesto durante o enterro da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro (Sergio Moraes/Reuters)

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Da Redação

Publicado em 15 de março de 2018 às 17h28.

Última atualização em 15 de março de 2018 às 18h40.

Num país com 60.000 homicídios por ano não é qualquer morte que consegue mobilizar a opinião pública, como é o caso do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL). Quinta mais votada nas últimas eleições municipais, Marielle, de 38 anos, dedicava o mandato à defesa das mulheres negras e à luta por direitos humanos. Sua morte a tiros na noite desta quarta-feira trouxe à tona o debate da violência por motivos políticos no país.

Campeão mundial de assassinatos, o Brasil tem uma política violenta em pequenas cidades, mas não a nível nacional. Entraram para a história o assassinato de PC Farias, tesoureiro do ex-presidente Fernando Collor, em 1996, e de Celso Daniel, prefeito de Santo André, morto em 2002, assim como o atentado ao jornalista Carlos Lacerda, crítico de Getúlio Vargas, em 1954. A morte de Marielle, como nenhuma outra, mistura o caos da violência urbana com a falência do estado. É um teste de fogo para a intervenção na segurança do Rio e um possível ponto de inflexão para o cenário político na cidade, no estado e no país.

Antes do cargo de vereadora, Marielle já fazia política como líder no complexo de favelas da Maré, denunciando a violência policial. No último dia 28, a socióloga pós-graduada em administração pública foi nomeada relatora da comissão da Câmara Municipal criada para fiscalizar a intervenção federal na segurança do Rio.

Feminista, negra e mãe, como se definia, Marielle vinha denunciando abusos da Polícia Militar em Acari, onde policiais estariam ameaçando moradores, e um dia antes de ser morta havia postado em seu Twitter: “quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”.

Ela deixa uma filha de 17 anos.

O carro em que estava Marielle foi alvejado por nove tiros disparados de outro veículo, quatro atingiram a cabeça da vereadora. O motorista do carro também foi morto, por três tiros. A assessora de Marielle conseguiu escapar. Nada foi roubado. Segundo a Polícia Civil, ela já estaria sendo seguida desde que saiu de um evento, na Lapa, mais cedo naquela noite.

As características do crime descartam que tenha sido uma tentativa de assalto. A polícia trabalha com a hipótese de assassinato por motivações políticas. Para a pesquisadora Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) da Universidade Cândido Mendes e do Observatório da Intervenção, independentemente da motivação dos autores do crime, o assassinato de Marielle foi político.

“Trata-se de um novo degrau de aprofundamento das dinâmicas de violência no Rio de Janeiro, inaugurando uma nova modalidade de homicídio, o homicídio estritamente político. A morte de Marielle representa uma ameaça aos ativistas de favelas, às lideranças comunitárias e aos defensores de direitos”, afirmou, em nota.

Marielle é, na verdade, uma dos muitos políticos assassinados no Brasil –e no Rio de Janeiro. Apesar de ser o primeiro caso na capital, a história do estado já vinha sendo marcada por esse tipo de crime. Segundo um levantamento publicado em 2013 pelo jornal O Estado de São Paulo, “Sangue Político”, que mapeou homicídios com motivações políticas desde 1979, o Rio era o terceiro estado com mais mortes (110), atrás apenas de Alagoas (114) e Pernambuco (210).

Somente na Baixada Fluminense, região com os piores índices de assassinatos no Estado, foram ao menos 13 candidatos e políticos mortos entre novembro de 2015 e setembro de 2016, às vésperas das eleições municipais. Muito antes disso, a região já colecionava assassinatos brutais, especialmente em Magé, cidade a 60 km da capital.

Em 2002, um vereador, sua mãe e seu motorista foram metralhados em uma emboscada na rodovia Rio-Magé. Mais tarde naquele mesmo ano, a vice-prefeita da cidade foi encontrada carbonizada em seu carro. Em 1997 e 1998, dois vereadores foram mortos a tiros, um ao sair da sede do Grêmio Esportivo Estrela, o outro a sete quilômetros da sua casa. Quase dez anos mais tarde, em janeiro de 2016, o vereador Geraldo Gerpe (PSB) também foi morto a tiros, no estacionamento da Câmara de Magé.

Um dos 13 casos mais recentes foi o do candidato a vereador pelo PSL, Sérgio de Almeida, assassinado com tiros na cabeça dentro de seu carro, na frente da sua casa, em julho de 2016.

Na época, a Divisão de Homicídios da Baixada Fluminense, que investiga os crimes, disse que 11 deles teriam motivação política e ao menos seis teriam sido causados por disputas entre milicianos.

Um estado dominado

“É preciso separar esse tipo de assassinato no Rio de outros estados, porque aqui ocorre uma situação distinta. Temos três Rios de Janeiro, um dominado por traficantes, outro controlado pelas milícias e outro, onde estou sentado agora, que é o Rio com alguma presença estatal”, diz Sérgio Praça, professor da FGV-Rio e colunista de EXAME Hoje.

Segundo um levantamento do G1, publicado nesta quarta-feira, as milícias estão presentes em 37 bairros e 167 favelas da região metropolitana, controlando um território com um total de 348 quilômetros quadrados, onde vivem 2 milhões de pessoas. As milícias são quadrilhas armadas surgidas nos anos 1990 e que funcionam quase como um estado paralelo, controlando a distribuição de gás, água, cesta básica, iluminação e internet.

O caso de Marielle foge à regra não só por suas coordenadas geográficas, mas também por não se enquadrar nos casos clássicos de assassinatos políticos. Segundo o levantamento do Estadão, esse tipo de crime costuma visar garantir espaço na máquina pública, eliminar adversários, vingar a morte de aliados ou liquidar testemunhas.

No caso de Marielle, as investigações estão em curso e todas as possibilidades ainda estão em aberto. O fato é que seu partido, o PSOL, conquistou inimigos no Estado, principalmente por conta da atuação de seu principal expoente na região, o deputado estadual Marcelo Freixo, que denuncia as milícias há anos e foi presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Milícias na Assembleia Legislativa do Rio em 2008.

Para Renata Neder, assessora de direitos humanos da Anistia Internacional, é preciso lembrar que, antes de vereadora, Marielle era uma defensora dos direitos humanos. “O Brasil é um dos países que mais matam defensores de direitos humanos, os números crescem a cada ano”, afirma Neder.

Segundo os relatórios anuais da Anistia, ao menos 47 pessoas foram mortas por atuar na defesa dos direitos humanos em 2016. No ano passado, foram 62. Mas os números dão pouca dimensão do tamanho real do problema, já que são extremamente difíceis de serem levantados.

Neder explica que os assassinatos de defensores de direitos humanos costumam ter dois objetivos principais: interromper a reivindicação de determinado direito e silenciar outros que lutam pela causa. “Quando matam um é como se dissessem que é fácil matar outros. Ainda mais no caso de Marielle, que era uma figura pública, uma vereadora. Se conseguiram matar ela, imagina outros não tão conhecidos”.

Mortes pelo mundo

De acordo com um relatório do think-tank Combating Counter Terrorism, publicado em 2015, mais de 130 países tiveram ao menos um assassinato político nos últimos 60 anos. Alguns planejados por organizações terroristas conhecidas, como o Hezbollah. Outros perpetrados por indivíduos, como o assassinato do então presidente americano John F. Kennedy, em 1963. Segundo uma base de dados construída especialmente para o estudo do Combating Counter Terrorism Centre, foram 954 vítimas de 758 ataques políticos entre 1945 e 2013 ao redor do mundo, 22% deles nas Américas.

Na América Latina, as disputas políticas causadas pelo tráfico de drogas já vitimaram muito políticos no México e na Colômbia. No vizinho sul-americano, o traficante Pablo Escobar mandou matar o então ministro da Justiça, Rodrigo Lilustreara Bonilla, em 1984, num crime que chocou o país e intensificou a guerra contra os narcotraficantes. Desde então, vários outros políticos foram executados por grupos guerrilheiros ou paramilitares. Um dos casos mais recentes foi o do assassinato de 12 políticos pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), em 2007.

Um dos campeões é o México. O país realizará eleições para escolher o novo presidente, além de deputados e senadores em julho deste ano e, desde que se iniciou o processo eleitoral, em 8 de setembro de 2017, 63 candidatos a diversos postos eleitorais foram assassinados, segundo um levantamento do jornal Excelsior.

No Brasil, as mortes de PC Farias e de Celso Daniel nunca foram solucionadas. Espera-se que a morte de Marielle Castro não tenha o mesmo destino.

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