Brasil

A receita e os resultados da paz: uma lição americana

Novo livro mostra que presença policial é essencial, mas sozinha não basta para combater a violência nas grandes cidades

POLICIAIS DE NOVA YORK NO FINAL DOS ANOS 70: mudança na política pública reduziu crime na cidade  (Peter Keegan/Keystone/Getty Images)

POLICIAIS DE NOVA YORK NO FINAL DOS ANOS 70: mudança na política pública reduziu crime na cidade (Peter Keegan/Keystone/Getty Images)

DR

Da Redação

Publicado em 19 de fevereiro de 2018 às 16h39.

Uneasy Peace: The Great Crime Decline, the Renewal of City Life, and the Next War on Violence

Autor: Patrick Sharkey

Editora: W. W. Norton & Company

266 páginas

—————–

Em meio à falência da segurança pública, assistimos ao triste (embora talvez necessário) decreto de intervenção federal do exército na cidade do Rio de Janeiro. Não é nem de longe o único problema na crise pela qual a cidade passa, mas é talvez o seu mais dramático. E o Rio não está sozinho: muitas outras cidades e estados sofreram com o aumento acentuado da violência nos últimos anos, e não está claro como solucionar isso. Um livro norte-americano pode nos dar alguma luz.

Uneasy Peace: The Great Crime Decline, the Renewal of City Life, and the Next War on Violence, de Patrick Sharkey, sociólogo da NYU e especialista em cidades, trata de um processo muito importante da vida americana recente, mas que é pouco entendido e até pouco conhecido. O fato é o seguinte: a partir do início dos anos 90, a violência no país (e especialmente nas grandes cidades) começou a diminuir. O processo foi tão acentuado que Nova York, por exemplo, teve em 2014 o ano menos violento de toda sua história. 

Muitos cidadãos não têm nem ideia desse fato – sua percepção da violência é em grande parte moldada pelo jornalismo (que cobre, obviamente, crimes e não interações pacíficas) e pelos filmes e séries. Do início dos anos 60 até os anos 90, as cidades americanas foram se tornando progressivamente mais violentas, dando origem à imagem delas como antros distópicos de criminalidade e abandono. Desde então, isso mudou radicalmente.

Sharkey quer mostrar duas coisas: uma é o impacto da queda da violência no bem-estar humano. Os ganhos para a sociedade se estendem sobre todas as áreas: economia, qualidade das construções, saúde dos negócios, vitalidade da vida urbana e até educação. Medos quanto à gentrificação de vizinhanças outrora pobres e violentas são exagerados: na maior parte dos casos, os moradores originais não são expulsos: continuam pobres, mas contam agora com melhor qualidade de vida.

Na verdade, são justamente os mais pobres que mais se beneficiam da queda da violência, posto que eram eles também suas maiores vítimas. Crianças de bairros pobres melhoram seu desempenho escolar. Num experimento desenvolvido pelo próprio autor, ele descobriu que a ocorrência de um crime violento na vizinhança antes do teste, por si só, piora o desempenho acadêmico dos alunos. De maneira mais geral, o medo de ser alvo da violência consome recursos, capacidade mental e saúde psicológica, sem falar do desincentivo ao investimento e à poupança. Uma cidade mais segura é também uma cidade em que os mais pobres têm mais condições de melhorar de vida, e não precisam viver com medo.

O que mais nos interessa, contudo, é o outro lado do estudo de Sharkey: as causas da redução da violência em grandes cidades americanas. E aqui ele nos dá respostas com evidência empírica sólida e pouco viés ideológico.

O primeiro fator, que não deve cair bem junto ao establishment cultural brasileiro, é mais policiamento e encarceramento. Ele reconhece os custos também sociais que isso traz, mas é inegável que a redução da violência teve como um de seus fatores centrais uma polícia mais ativa em combater e investigar o crime e uma Justiça mais eficaz em condená-lo. Isso se faz não só com armamento, mas também com mais inteligência e tecnologia de combate ao crime. O desbaratamento de mercados de droga a céu aberto (especialmente de crack) foi um fator decisivo também. Sozinha, contudo, a polícia se degenera numa força hostil, mantendo a paz ao custo do terror.

O uso crescente de tecnologia e serviços de combate ao crime (alarmes, seguranças, câmeras) também contribuiu para uma redução na violência. Se a atividade criminosa fica mais arriscada e custosa, isso reduz o incentivo para engajar-se nela.

Por fim, outro fator importante foi a revitalização de organizações sociais e ONGs que ou trabalhem diretamente com a segurança local (vigilantes da rua, ONGs que tiram jovens do crime, etc.) ou que fortalecem laços de comunidade com atividades sociais e culturais. São lugares que dão aos jovens um sentido de pertencimento, além de servirem como espaços seguros para onde ele pode ir. Em muitos casos, houve esforço coletivo da vizinhança para ocupar uma praça ou parque e expulsar os traficantes. Se crianças e idosos passam a utilizar um espaço, é bom sinal. Para isso, o investimento em infraestrutura urbana (que pode vir do governo, de ONGs ou da filantropia) é essencial.

Uma comunidade mais próxima entre si e das autoridades, com linhas de diálogo abertas com governo, polícia, etc. é uma comunidade mais segura. Aí, figuras de lideranças comunitárias – a que Sharkey nomeia “community quarterbacks” – têm papel central em identificar problemas e atuar sobre indivíduos em situação de risco.

E por que “Uneasy Peace”? Porque a paz construída nas últimas duas décadas é frágil e corre o risco de se desmanchar. Nos últimos anos, a violência voltou a subir. A polícia – ela própria cada dia mais violenta – não tem a solução. Será preciso superar a ideologia do policiamento agressivo, ainda que ele tenha tido resultados no passado. Para isso, as cidades precisarão do engajamento direto de indivíduos, filântropos, empresas e ONGs. 

Os paralelos para o Brasil são diretos. Assistimos à falência do modelo de UPP, no Rio, que por uns poucos anos conseguiram coibir a violência e permitiram o crescimento econômico das favelas cariocas. Entre 2013 e 2015, havia um verdadeiro otimismo para com as favelas de todo o Brasil. A crise nos jogou de volta na realidade sombria da violência. A presença policial é essencial, mas sozinha não basta; precisa de alguma maneira se integrar às lideranças e organizações locais. Claro que nem tudo são derrotas: São Paulo, por exemplo, conseguiu baixar seus homicídios para a mínima histórica. Mesmo assim, o crime continua a preocupar mesmo na capital paulista.

Uma cidade violenta é uma cidade da qual seus cidadãos fogem, procurando abrigo nos subúrbios encastelados. É uma cidade morta, mal cuidada, sem vida nas ruas, na qual os problemas se acumulam e se retroalimentam. É isso que estamos assistindo em muitas grandes cidades brasileiras. Reverter o processo não é o trabalho de demagogos, mas de lideranças preocupadas com o bem comum e que detenham conhecimento de como uma cidade funciona. “Uneasy Peace” serve como um excelente mapa geral, que podemos usar como ponto de partida para criar soluções que se adaptem aos desafios da cidade brasileira.

Acompanhe tudo sobre:CidadesCrises em empresasExame HojeGoverno TemerLivrosNova YorkRio de JaneiroSegurança públicaViolência urbana

Mais de Brasil

São Paulo tem 88 mil imóveis que estão sem luz desde ontem; novo temporal causa alagamentos

Planejamento, 'núcleo duro' do MDB e espaço para o PL: o que muda no novo secretariado de Nunes

Lula lamenta acidente que deixou ao menos 38 mortos em Minas Gerais: 'Governo federal à disposição'

Acidente de ônibus deixa 38 mortos em Minas Gerais