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A Andrade e a arte de pedir desculpas

Pedir desculpas nunca é fácil. Durante muitos anos, especialmente em culturas machistas, pedir perdão era considerado um sinal de fraqueza – como mostra o samba “Atire a primeira pedra”, composto em 1944 por Ataulfo Alves e Mário Lago (“covarde sei que me podem chamar”, diz a primeira frase). Seu último verso, no entanto, já antecipava […]

OTÁVIO AZEVEDO: o ex-presidente da Andrade Gutierrez foi preso na operação Lava-Jato / Veja.com
DR

Da Redação

Publicado em 16 de maio de 2016 às 12h26.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h08.

Pedir desculpas nunca é fácil. Durante muitos anos, especialmente em culturas machistas, pedir perdão era considerado um sinal de fraqueza – como mostra o samba “Atire a primeira pedra”, composto em 1944 por Ataulfo Alves e Mário Lago (“covarde sei que me podem chamar”, diz a primeira frase). Seu último verso, no entanto, já antecipava o que viria a ser prática comum no século 21: “perdão foi feito para a gente pedir”.

Não só para a gente. Também as companhias, desde o final do século 20, foram obrigadas a se aprimorar na arte de pedir desculpas, porque a sociedade se tornou mais informada, mais vigilante, mais ciosa de seus direitos. Os malfeitos são de diversos tipos e suas consequências são também diversas, mas usualmente o caminho da recuperação da imagem e da confiança, tão necessárias para qualquer empresa, começa por um bom pedido de desculpas. Como qualificar, então, o comunicado de mea culpa publicado pela empreiteira Andrade Gutierrez na imprensa, no último dia 9 de maio? Seu ex-presidente, Otávio Azevedo, foi preso em julho de 2015. O pedido de desculpas cumpre o seu papel?

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Segundo o especialista em comunicação americano John Kador, autor do livro Effective Apology: mending fences, building bridges, and restoring trust ( Desculpas eficientes: reparando cercas, construindo pontes e restaurando a confiança ), um bom pedido de perdão é composto de cinco “R”: reconhecimento, responsabilidade, remorso, restituição e repetição.

O primeiro item, reconhecimento, significa admitir a ofensa em termos bem específicos. A empreiteira fez isso, em parte. Ela admitiu os delitos sem titubeios: “reconhecemos que erros graves foram cometidos nos últimos anos e, ao contrário de negá-los, estamos assumindo-os publicamente”. Mas não foi nada específica. Diz que chegou a hora de a empresa vir a público e admitir, “de modo transparente perante toda a sociedade brasileira, seus erros e reparar os danos causados ao país e à própria reputação da empresa”, sem esclarecer que erros e danos foram esses, e por que os cometeu.

O segundo item, responsabilidade, é aceitar a culpa sem dar desculpas. O comunicado cumpre este ponto, embora falte especificar os erros. O terceiro item, remorso, segundo Kador exige o uso de palavras simples e diretas, como “sentimos muito” e “pedimos desculpas”. Embora o comunicado diga claramente que a Andrade Gutierrez “deve um sincero pedido de desculpas ao povo brasileiro”, o tom é um pouco formal, e portanto distante. O fato de a empresa ter mantido o comunicado totalmente impessoal – ninguém o assina, há apenas o logo ao final do texto – prejudica a empatia.

Como gerar empatia?

Um recente estudo de duas pesquisadoras, de Berkeley e da London Business School, conclui que, quando o pedido de desculpas é feito por um executivo-chefe com expressão de tristeza, há mais chance de as ações da companhia se valorizarem após o comunicado. Compare-se o comunicado com a fala de Salim Schahin, do banco Schahin, ao final de seu depoimento aos promotores da Lava Jato: “Fui criado por um pai que chegou ao Brasil sozinho com 16 anos de idade e que teve uma vida extraordinária e por quem eu tenho uma admiração profunda. Esse pai me deu valores enormes, por toda a minha vida e toda a minha infância. Eu quero pedir nesse momento perdão a ele, que já está no céu, se Deus quiser, porque eu me sinto hoje muito constrangido. (…)Em segundo lugar, eu quero pedir perdão à sociedade brasileira pelo delito que eu cometi. Sinceramente, eu me sinto amargurado. Schahin traz uma carga emotiva genuína nos itens responsabilidade e remorso, que ajudam a provocar empatia.

O quarto “r”, restituição, é o mais importante, segundo Kador, porque é uma ação concreta para reparar o erro. Nesse ponto, a Andrade Gutierrez vai bem, com a indenização de 1 bilhão de reais negociada no acordo de leniência homologado pelo juiz Sérgio Moro no dia 5 de maio. E já pula para o quinto item, repetição (a garantia de que os malfeitos não irão ocorrer novamente). “Um pedido de desculpas, por si só, não basta: é preciso aprender com os erros praticados e, principalmente, atuar firmemente para que não voltem a ocorrer”.

Neste último quesito, porém, a empresa fica aquém do desejado. Embora aponte que, desde dezembro de 2013, está implementando um “moderno modelo de compliance, baseado em um rígido código de ética e de conduta”, não é clara em sua promessa de que não repetirá seus erros – até porque alguns deles foram cometidos em 2014, quando o modelo de compliance já estava sendo instalado.

No lugar de chamar para si a responsabilidade de não mais incorrer em atos de corrupção, a empresa faz uma proposta geral para melhorar o ambiente de negócios do país – que é boa, mas não deveria estar misturada ao pedido de desculpas.

Compare-se a fala da Andrade Gutierrez com a entrevista dada por Vitor Hallack, presidente do conselho de administração da Camargo Corrêa: “Se, com tudo isso (Lava Jato, amadurecimento das instituições), nada mudar, estamos fora do mercado. Uma coisa posso te assegurar: em qualquer situação que venha a aparecer novamente [o pagamento de propinas], nossa decisão vai ser não compactuar”, disse em novembro, ao jornal Folha de S. Paulo.

O juiz Moro extrapolou?

A julgar por esses critérios, o pedido de desculpas da Andrade Gutierrez fica nos limites do razoável. O que puxa um pouco sua credibilidade para baixo é o fato de ele ter sido imposto pelo juiz Sérgio Moro. Para que tenha alto grau de eficácia, um pedido de desculpas tem de ser considerado sincero – e espontâneo.

Claro, o fato de Moro ter exigido o pedido de desculpas não significa que a empreiteira não fosse fazê-lo de qualquer forma. Esta é uma discussão presente em quase todas as empresas envolvidas na Lava Jato, segundo pessoas próximas às suas lideranças. “Na hora em que estiver tudo assinado, existe a clareza de que é importante fazer um comunicado para reconstruir nossa imagem”, diz uma delas. Mesmo assim, a impressão que fica é a de um comunicado feito mais por obrigação que por convicção.

Neste caso, também cabe a pergunta: o juiz extrapolou sua autoridade? Em despacho, ele afirmou que o acordo de leniência dependia de um reconhecimento público da empresa nas mesmas condições do anúncio divulgado em junho, em que a Andrade Gutierrez fazia ataques à Lava Jato. Na ocasião, a empreiteira considerou “inadmissíveis as prisões com base em presunções genéricas e depoimentos inverídicos” – e Moro queria uma retratação.

Embora uma exigência dessas não seja usual, ela está longe de ser inédita. Em 2012, em um dos episódios da guerra de patentes entre a Apple e a Samsung, uma corte inglesa exigiu que a Apple desistisse de mover a mesma ação na Alemanha. Quando a empresa se recusou, o juiz Robin Jacob ordenou que ela publicasse um pedido de desculpas à Samsung, admitindo que o Galaxy Tab da coreana não infringia patentes do iPad. Sendo a Apple a Apple, o anúncio começava reiterando a exigência da corte inglesa, para em seguida reproduzir comentários do juiz de como o iPad era mais legal que a linha de tablets da Samsung, e ao final incluía um parágrafo que negava tudo. O juiz não ficou nem um pouco contente, e mandou a Apple fazer outro comunicado.

O exemplo mais dramático é o caso da indústria de tabaco nos Estados Unidos. Em 1999, o governo Clinton exigiu “declarações corretivas” da indústria, parte da reparação por décadas de manipulação de informações sobre os malefícios do cigarro. Entre as declarações que a indústria deveria publicar estavam frases como “empresas de tabaco deliberadamente desenvolveram os cigarros de modo a torná-los mais viciantes” e “o fumo mata mais gente do que os assassinatos, a Aids, suicídio, drogas, desastres de automóveis e álcool combinados”. As empresas apelaram empresas apelaram a uma instância superior, por considerar os termos da declaração humilhantes. E a batalha prossegue até agora. Em abril, os dois lados haviam chegado a um acordo sobre cinco frases. É possível que o comunicado, exigido no governo Bill Clinton, só seja publicado no eventual governo Hillary Clinton, cinco mandatos presidenciais depois.

A principal diferença entre este caso e o da Andrade Gutierrez é que a indústria de tabaco só tem a perder com o comunicado, que inclui a admissão de que os cigarros light fazem tanto mal quanto os demais, enquanto a Andrade Gutierrez só tem a ganhar com o pedido de desculpas que possibilitou o acordo de leniência. Além disso, Moro não cunhou as frases que deveriam estar no comunicado. Nem exigiu uma contrição humilhante.

Aliás, em se tratando de pedidos de desculpas, o da Andrade Gutierrez está alguns furos acima do proferido pelo próprio Moro em março, após a controversa divulgação de uma conversa da então presidente Dilma Rousseff com o ex-presidente Lula. Na ocasião, Moro não reconheceu sua responsabilidade, usando uma linguagem evasiva (“compreendo que o entendimento então adotado possa ser considerado incorreto, ou mesmo sendo correto, possa ter trazido polêmicas e constrangimentos desnecessários”), nem dirigiu suas desculpas à parte prejudicada (em vez disso, solicitou “respeitosas escusas a este egrégio Supremo Tribunal Federal”).

Os benefícios do pedido de desculpas

Na prática, o comunicado da Andrade serve para a empresa começar a recuperar sua imagem ante diferentes públicos. O primeiro deles é o investidor. No caso da Andrade Gutierrez, uma empresa fechada, principalmente os bancos. O acordo de leniência coloca a empresa novamente no espectro de companhias com quem é possível fazer negócios. Por mais que traga um passivo considerável de 1 bilhão de reais, é um passivo determinado, e o mundo financeiro preza muito a previsibilidade.

Um segundo público é dos clientes. O acordo afasta da empreiteira o risco de ser tachada de inidônea. Até a Petrobras pode voltar a contratá-la. E outras grandes empresas, estatais e privadas, podem fazê-lo sem constrangimentos. Um terceiro público é a opinião pública em geral. Vai demorar para que a Andrade Gutierrez alcance uma imagem vistosa, até porque as desconfianças sobre ela não vêm de agora. De qualquer modo, como diz um consultor de imagem que prefere não se identificar, o comunicado não apaga a página, mas vira a página.

Finalmente, e talvez mais importante, há o público interno. A empreiteira se gaba de ter mais de 900 projetos de engenharia e investimentos em diversos setores, que empregam mais de 100.000 pessoas em mais de 20 países. Em geral, é um pessoal que se orgulha de trabalhar em uma companhia de tal porte, e andou tendo motivos para se envergonhar. O pedido de desculpas lhes dá argumentos para delimitar o estrago em sua imagem pessoal, defender sua empresa nas rodas de família e amigos… e recuperar o orgulho de participar de obras essenciais ao progresso do país.

(David Cohen)

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