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1ª vítima do coronavírus no Rio era doméstica e foi contaminada no Leblon

A empregadora, que viajou à Itália, não avisou a funcionária que poderia estar doente, segundo relatos de parentes da primeira vítima da doença no estado

Hospital: sem informações, médicos não conseguiram agir a tempo para tratar corretamente a paciente (Mariana Simões/Agência Pública)

Hospital: sem informações, médicos não conseguiram agir a tempo para tratar corretamente a paciente (Mariana Simões/Agência Pública)

CC

Clara Cerioni

Publicado em 19 de março de 2020 às 17h14.

Última atualização em 19 de março de 2020 às 19h20.

Miguel Pereira é um município da Grande Rio com 25 mil habitantes, conhecido por ser um lugar de descanso, de clima ameno, rios e cachoeiras de águas cristalinas e ar limpo. É ali que as crianças vão com as famílias passar as férias e que muitos idosos vivem em tranquilidade. Também dali saem diariamente centenas de trabalhadores que vão prestar serviços na capital fluminense, a 100 quilômetros de distância.

Mas Miguel Pereira ganhou as manchetes por ter sido o local que registrou a primeira morte em decorrência do coronavírus no Estado do Rio de Janeiro. A notícia foi confirmada hoje, dia 19 de março, pelo governo do Rio e pela prefeitura de Miguel Pereira. A Agência Pública esteve no local e constatou que existem mais 9 casos de suspeita de coronavírus no hospital da cidade.

A paciente que faleceu tinha 63 anos. Deixou para trás um filho de 39 anos que morava com ela e outros parentes em um bairro humilde da cidade. A rua, que não foi calçada por completo, está cercada de casinhas simples, de tijolo exposto.

“Ela era uma mulher trabalhadora. Muito querida por todos e uma boa mãe,” diz sua irmã. Nascida e criada em Miguel Pereira, ela passava quatro dias por semana dormindo no Rio de Janeiro, a mais de duas horas de casa.

Durante 20 anos, trabalhou como empregada doméstica no Leblon, bairro nobre do Rio que tem o metro quadrado mais caro do país. “A patroa não avisou para ela que achava que estava doente”, diz o irmão de 56 anos da paciente. Ele morava com ela e mais três familiares na mesma casinha de cimento de dois andares. A casa fica colada a um cemitério – o mesmo onde ela foi enterrada, na tarde de ontem.

O irmão conta que, em fevereiro, a empregadora fora passar o carnaval na Itália quando a crise do coronavírus se espalhava pelo país. Quando voltou das férias, a irmã voltou ao trabalho como de costume.

Parecia uma tragédia anunciada, em um país tão desigual. Sem orientação clara do governo federal, são inúmeros os casos como o dela, em que empregadas domésticas continuam sendo obrigadas a trabalhar em casas de família, se expondo ao risco do contágio.

Sem informação sobre exposição ao vírus, hospital não pôde agir a tempo

Segundo Sebastião Barbosa, diretor médico do Hospital Municipal Luiz Gonzaga, que tratou da vítima, “a patroa já estava de quarentena, mas a gente não sabe quando de fato chegou o resultado [positivo do teste do coronavírus] para a patroa”.

“A paciente deu entrada no hospital na segunda à noite [dia 16] e até então não tinha nenhuma informação [sobre o coronavírus]. Chegou pela Secretária de Saúde que a amostra da patroa deu positivo para coronavírus só na terça-feira [dia 17], que foi o dia do óbito,” diz ele.

Sebastião relata que a paciente reclamava de estar com um mal-estar muito forte desde sexta-feira, dia 13, mas como já era portadora de diabetes e hipertensão, os médicos procederam a exames de rotina. A princípio, detectaram apenas uma infecção urinária.

“Pedimos exame de sangue e exame de urina porque na verdade era muito indefinido o quadro dela. Ela foi internada e iniciado o antibiótico”, diz Sebastião Barbosa. Logo em seguida, como parte do protocolo do hospital, foi pedido um Raio-X do pulmão. “Nisso ela começa a se queixar de uma falta de ar. Foi avaliado o Raio-X e se viu que tinha um padrão congestivo,” conta Sebastião.

“Na verdade, se as informações tivessem chegado mais cedo talvez a gente tivesse como mudar a história clínica”, diz o médico.

O protocolo para pacientes com suspeita de coronavírus é o encaminhamento direto para a intubação precoce. O paciente é isolado, sedado, e um ventilador mecânico é introduzido para alimentar o pulmão com oxigenação. Segundo Sebastião, por falta de informação, a vítima só foi entubada na terça-feira, dia 17, dia do seu falecimento.

Só sete pessoas no enterro

No dia 18, o enterro aconteceu pertinho da casa da família. A rua estava vazia e silenciosa, exceto pela presença de um morador. Vestido de camisa preta de gola e calça jeans, o primo da paciente, um carpinteiro de 56 anos, levantava poeira vermelha enquanto caminhava por um trecho de terra.

“Eu convivi pouco com ela, mas quis ir no enterro. Tinha só sete pessoas lá”, contou à Pública. Os familiares que tinham contato direito com ela não puderam sair de casa por estar de quarentena.

Pelo telefone, a irmã de 42 anos, que é vendedora autônoma de produtos de depilação, contou que está em isolamento domiciliar na mesma casa onde moravam juntas. “Estou sentindo muito a perda dela”, disse. Ela mora em um puxadinho no andar de cima do imóvel. A casa de dois andares é jeitosa e bem cuidada do lado de fora, com uma fachada de cimento pintada e telhas de cerâmica.

“Ela gostava de receber visita, de fazer almoço. Era muito de acolher as pessoas e de tratar todo mundo como se fosse família,” conta. Dentre os 9 irmãos, a maioria morou a vida toda naquela mesma rua. A paciente morava no andar de baixo com o irmão de 56 anos e o sobrinho. Todos, agora, estão de quarentena.

Em isolamento, a família começa a sentir preconceito por parte dos vizinhos. Um mercadinho local se recusou a oferecer os seus serviços à família. “Ligamos para pedir que fizessem a entrega porque não podemos sair de casa por estarmos de quarentena e eles estão se recusando a entregar,” conta a irmã.

Aos poucos, o medo começa a se instaurar na cidade. O assunto da primeira morte do Estado permeava as conversas nos estabelecimentos visitados pela reportagem. Os taxistas que estavam nos quatro pontos de táxi do centro não paravam de falar no motorista que foi até o Rio buscar a paciente no Leblon e levou ela até o hospital em Miguel Pereira na segunda-feira.

“Estamos tentando descobrir quem é. Ninguém sabe, mas podiam divulgar [para os taxistas] essa informação para a gente também poder se proteger”, diz um taxista que não quis se identificar. Segundo a Prefeitura de Miguel Pereira, o motorista está em isolamento domiciliar.

Além dos familiares da vítima, outros nove suspeitos de terem contraído coronavírus em Miguel Pereira estão também em quarentena e sob observação.

O prefeito André Português (PR) fez um pronunciamento nas redes sociais sobre as ações da prefeitura para combater o coronavírus – entre elas, uma obra que já estava em andamento para criar mais dez leitos no Hospital Municipal Luiz Gonzaga. Mas ela só será concluída e 30 dias. De certo modo, a pequena Miguel Pereira imita um pouco as ações tomadas na esfera federal.

“Montei um gabinete de crise”, escreveu o prefeito. “Montei uma estrutura no hospital 24 horas para quem quiser vir aqui e botei uma equipe só para atender pessoas suspeitas de coronavírus. Tudo que eu como prefeito puder fazer para cuidar da vida de cada um de vocês eu vou fazer”.

“Só que a gente é limitado”, concluiu.

*Reportagem originalmente publicada na Agência Pública

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