Startup cria celular sem WhatsApp, Instagram ou pesquisas no Google
À primeira vista o celular da Light Phone parece um Kindle em miniatura — mas é muito mais do que isso
Tamires Vitorio
Publicado em 19 de setembro de 2020 às 08h00.
Última atualização em 19 de setembro de 2020 às 12h58.
Na era dos smartphones que fazem quase tudo e têm milhares de aplicativos disponíveis (de redes sociais a monitores da saúde), é difícil imaginar que um aparelho sem nenhum desses itens fosse sequer ter espaço no mercado. E pode até parecer coisa dos anos 2000, quando os celulares apenas enviavam mensagens, faziam ligações e, no máximo, tinham o famoso jogo Snake instalado --- mas não é. A proposta da startup americana Light Phone em pleno 2020, é deixar o smart do phone para trás --- e focar somente nas principais funções que um celular deveria ter, segundo os criadores. E mesmo tendo conexão Wi-Fi, é impossível fazer pesquisas em navegadores mobile.
À primeira vista o celular da Light Phone se parece uma mistura de Kindle (leitor eletrônico da Amazon) em miniatura, uma vez que usa a mesma tecnologia que imita papel que o e-reader, com um MP4, mas por dentro ele carrega muito mais do que isso. Com ele o usuário consegue ouvir músicas, enviar mensagens, fazer contas, conferir o horário, agendar alarmes, fazer ligações. Mas outros recursos, como tirar fotos e gravar vídeos, não são possíveis no celular que tem como objetivo um detox grande de redes sociais e do consumo de dados que elas têm sobre os usuários. A nova-velha tecnologia já caiu no gosto de alguns famosos, como o jovem rapper americano Dominic Fike, que publicou em seu perfil no Instagram (ironicamente) que havia adquirido o telefone.
Em entrevista à EXAME , Kaiwei Tang, um dos fundadores da empresa, afirma que a ideia do Light Phone não é fazer o consumidor abandonar totalmente o seu smartphone, mas sim servir de alternativa para períodos de descanso. "Metade dos nossos usuários usam o iPhone como seus celulares secundários e tentam usar os dois celulares ao mesmo tempo. Eles não abandonam um ou outro", diz Tang, em conversa por telefone. "O smartphone é bom para muitas coisas, como videochamadas, buscar coisas na internet, para trabalhar, mas é difícil desconectar deles. No sábado de manhã eu só quero ouvir música e, no máximo, receber ligações", afirma. "Não somos contra a tecnologia, somos contra o modelo de negócios por trás dos aplicativos e das redes sociais, que fazem com que seus usuários gastem muito tempo dentro dos aplicativos para vender os dados para outras pessoas."
Para Tang, comprar um Light Phone não é a mesma coisa que investir em um Nokia "tijolão" ou em modelos mais antigos por uma simples questão: os mais velhos têm apenas compatibilidade com a quase falecida rede 2G, enquanto o celular da marca está disponível com a tecnologia 4G --- sem planos, ainda, para um futuro da 5ª geração. "Outro ponto é que os celulares antigos são pesados e ninguém os usa mais. Não é uma opção válida, na minha opinião. Estamos criando um celular que é moderno e oferece funções modernas, que já estamos acostumados, e que não tem nenhum anúncio, ou cor, ou animação, ou uma tela gigante. No fim, é só uma ferramenta útil", garante.
Somente no ano de 2019, 1,5 bilhão de celulares foram vendidos globalmente, segundo a consultoria americana Gartner. E Tang não está de todo errado ao afirmar que "as redes sociais causam no nosso cérebro um vício que é quase como um vício em álcool ou drogas". Segundo pesquisas recentes, o risco de acidentes no trânsito aumenta de 3 a 4 vezes quando o usuário está distraído por um celular, e o uso excessivo das redes sociais pode causar, entre outras coisas, depressão, ansiedade, além de poder distrair as pessoas a ponto de causar acidentes graves. "Queremos que nosso cliente gaste tempo de qualidade com a sua família e seus amigos, que não leve um mini computador para correr ou para um parque com as crianças. Então criamos um celular que é um celular --- e só isso", diz Tang.
O Light Phone II (versão mais recente do celular) custa 299 dólares, cerca de 1.792 reais na cotação atual, e está disponível em duas cores (preto e cinza claro). Para os brasileiros, é possível comprar uma opção internacional compatível com chips das operadoras Vivo, Claro, TIM, mas não com chips da Oi. O idioma do celular está disponível somente em inglês. Além disso, ele mede cerca de 9 centímetros de altura, bem compacto se comparado com outros celulares. E até para isso tem justificativa: a ideia era fazer um dispositivo do tamanho de um cartão de crédito, fácil para carregar no bolso da calça.
A primeira versão do celular, no entanto, só fazia ligações --- algo que os usuários reclamavam. Segundo Tang, várias pessoas falavam "apenas comprarei um Light Phone quando ele tiver essa ou aquela função". "Então pensamos: é uma distração ter uma calculadora? É uma distração mandar mensagens? Ouvir música? Foi aí que adicionamos essas ferramentas necessárias", diz o fundador.
Um feedback que os fundadores não esperavam é que o dispositivo é uma boa opção de primeiro celular para crianças. "Não era o que eu imaginava. Essa é uma surpresa interessante para a gente. Escolas e organizações de pais conversaram com a gente para enviar nossos celulares para nossas crianças e estudantes, porque eles não têm um navegador, nem redes sociais e nem fotos, o que, para eles, é uma boa ideia de um primeiro celular para crianças. É maravilhoso que não enxergamos isso antes", afirma.
Para passar músicas para o celular basta utilizar um código que é enviado no momento da compra para o usuário em seu computador e sincronizar a sua biblioteca ou playlist ideal. O dispositivo tem cerca de 1 gigabyte de memória --- o que pode parecer pouco, mas vai de acordo com a linha de "menos é mais" que o Light Phone tem.
Tang não é contra a tecnologia --- pelo contrário. Ele e o cofundador do Light Phone, Joe Hollier, se conheceram em um programa experimental do Google em 2014. Foi lá que eles foram desafiados a fazer aplicativos para smartphones e aprenderam mais sobre como os produtos eram feitos e fundados. "Reparamos que era o que menos queríamos. Todo mundo fala de engajamento, de métricas. Companhias se gabam sobre o tempo em que as pessoas passam usando seus aplicativos e a ideia é, que quanto mais tempo a pessoa usa o app, mais sucesso você tem, e que quanto mais anúncios, mais dados você tem para fazer dinheiro", diz. "Eu entendo esse modelo. Mas, ao mesmo tempo, milhões de apps fazem a mesma coisa, e não é justo", diz Tang. Em 2015 a ideia da empresa já estava desenhada. Em 2016 eles lançaram o primeiro modelo do celular. O segundo veio em 2018. De lá para cá, segundo o cofundador da companhia, o lucro está entre "3 e 6 milhões de dólares" e "dezenas de milhares" de celulares foram vendidos até o momento neste ano --- números mais específicos não são abertos pela empresa.
Em 2019, o Light Phone II foi eleito pela revista americana Time como uma das melhores invenções do ano. Na definição do produto, a revista afirmou que ele era uma boa opção "para aqueles que acreditam que o tempo gasto na frente de telas estava fazendo mais mal do que bem" e que a companhia "oferecia um celular com apenas o essencial".
E é exatamente isso que eles querem. O próximo passo da companhia é disponibilizar ainda mais ferramentas úteis em seus celulares, como um GPS, um gravador de voz, um calendário, algo parecido com o Uber e um aplicativo capaz de prever o clima. "Todo mundo tem uma percepção diferente sobre o que é essencial. O cenário ideal é ter mais ferramentas que cubram a lista de essenciais das pessoas para que elas consigam deixar os smartphones cada vez mais de lado", diz.
Na onda de maionese que não é maionese, sorvete que não é sorvete, e do minimalismo, o Light Phone surge como um celular que… é um pouco de tudo --- menos um smartphone.