O governo pode usar dados do celular para monitorar seu isolamento?
De Taiwan ao Brasil, a discussão sobre o monitoramento em meio à pandemia do coronavírus é uma pauta global
Da Redação
Publicado em 11 de abril de 2020 às 12h42.
Última atualização em 11 de abril de 2020 às 13h14.
Um dos temas mais quentes neste feriadão de Páscoa é a possibilidade de governos usarem os dados de celular para controlar a movimentação de moradores. A pauta ganhou força com o anúncio de uma parceria do governo de São Paulo com a operadora Vivo – alvo de crescentes críticas nas redes sociais. Alguns perfis de influenciadores digitais, como o empreendedor Tallis Gomes, convocaram seus seguidores com a frase “Doria, quem te autorizou a monitorar meu celular?”.
Em entrevista ao Jornal Nacional, Luiz Eduardo Médici, vice-presidente da Vivo, afirmou que o governo faz uso de dados agregados, mas que não consegue identificar indivíduos. Esse tipo de informação permite ao governo de São Paulo saber, por exemplo, que o isolamento no estado caiu para 47% na sexta-feira, ante uma meta de 70%. No Rio, dados da operadora TIM mostraram, segundo o jornal O Globo, que comunidades como a Rocinha abandonaram o isolamento na sexta-feira.
A discussão sobre o monitoramento em meio à pandemia é uma pauta global, como mostra reportagem da última edição da revista EXAME. A reportagem mostra, por exemplo, como o governo de Taiwan, um dos países mais bem sucedidos no controle do coronavírus , usa de inúmeras armas de monitoramento como a que tem causado polêmica no Brasil.
No começo do ano, o governo de Taiwan, uma ilha a 130 quilômetros da China, determinou uma série de medidas extremas para controlar a propagação da doença. As cinco principais companhias telefônicas de Taiwan foram convocadas a quebrar o sigilo dos usuários em nome da saúde pública. O governo passou a ter acesso a nomes e números de telefone de quase todos os 24 milhões de moradores da ilha, cujos aparelhos devem estar com a geolocalização ativada. A polícia e o Ministério da Saúde recebem, em tempo real, informações sobre o paradeiro das pessoas. Quem infringir as regras da quarentena poderá ser multado em milhares de dólares e corre o risco de ser preso.
China, Coreia do Sul, Israel, Rússia e outros países também têm usado um leque de tecnologias de monitoramento da população diante da ameaça à saúde pública. Uma questão que se coloca para todos os governantes: é legítimo invadir a privacidade dos cidadãos para enfrentar uma pandemia? “Combater o coronavírus exige medidas de guerra, mas não podemos deixar de lado a reflexão sobre valores como a liberdade e a confidencialidade de nossos dados”, diz Albert Fox Cahn, professor de direito na Universidade de Nova York, nos Estados Unidos.
Em países em que o Estado já ocupa um papel gigante, não houve a menor dúvida de qual seria o caminho a seguir. Na supervigilante China, foi fácil confinar quase 60 milhões de pessoas na província de Hubei, epicentro da covid-19. Mas e no Brasil? “Embora funcione para conter a pandemia, é um sistema de vigilância total”, diz o coreano Jung Won Sonn, professor de desenvolvimento econômico regional na Universidade de Londres, no Reino Unido.
No Brasil, o uso da tecnologia para monitorar a população está no início. A startup pernambucana de geolocalização In Loco criou um sistema que monitora a adoção do isolamento social no país, a partir de uma base que analisa dados de mais de 60 milhões de dispositivos móveis em todo o Brasil. Na segunda-feira 6 de abril, 57% da população brasileira estava reclusa em seus lares, de acordo com os dados da In Loco. Desenvolvida em março, a ferramenta é gratuita para os governos. Até agora, 20 estados já fecharam parceria com a empresa e estão começando a receber relatórios que trazem dados cartográficos e estatísticos, dos quais é possível inferir o percentual de pessoas que não se deslocam.
A tecnologia da In Loco coleta informações da localidade dos aparelhos celulares por meio de sensores instalados nos smartphones , como Wi-Fi, Bluetooth e GPS. Mas a empresa não tem acesso aos dados de identificação do dono do celular, como nome, RG e CPF. “É possível analisar os dados de forma agregada, mantendo a privacidade do usuário, e ainda assim ter uma alta efetividade”, diz André Ferraz, cofundador e presidente da In Loco.
Manter os dados anônimos é também a prerrogativa do acordo firmado na última semana pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) com as principais empresas de telecomunicações com atuação no Brasil: Claro, Oi, TIM, Vivo e Algar Telecom. “Vamos unir os dados em uma única plataforma e permitir o acesso do Ministério da Saúde e dos governos estaduais e municipais”, diz Carlos Araujo, diretor de novos negócios da Claro.
Assim como a tecnologia da In Loco, a ideia é verificar a eficácia do isolamento social em diversas regiões, bem como pontos de aglomeração, o que pode ajudar, por exemplo, a equilibrar as demandas entre os hospitais.
O uso de dados agregados e de forma anônima é uma preocupação generalizada entre as empresas de telefonia para que não corram o risco de infringir a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), sancionada em 2018 e que entrará em vigor em agosto (se não houver adiamento). Com base na legislação análoga europeia, a LGPD prevê multas significativas em casos de vazamento de dados e restringe a captação de informações, que deve ter finalidades justificadas.
No Brasil o tratamento de dados também é citado na recente Lei do Coronavírus, sancionada em fevereiro, que obriga o compartilhamento, entre órgãos públicos, de dados essenciais à identificação de pessoas infectadas ou sob suspeita de infecção pelo vírus. Empresas privadas são obrigadas a fornecer dados caso sejam solicitados por uma autoridade sanitária. Ao final desse período, é quase certo que os governos saibam muito mais sobre seus cidadãos do que eles são capazes hoje em dia.