Revista Exame

Robôs estão mudando o jogo e China lança ofensiva

Com robôs que permitem a personalização de produtos, as fábricas, aos poucos, voltam ao Ocidente — e a China lança uma ofensiva para não ficar para trás

Automação na Alemanha: produção local em vez de importação da Ásia | Divulgação /

Automação na Alemanha: produção local em vez de importação da Ásia | Divulgação /

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Da Redação

Publicado em 24 de maio de 2018 às 05h35.

Última atualização em 24 de maio de 2018 às 05h35.

Cerca de 46 quilômetros ao sul de sua sede, quase na impronunciável cidadezinha de Herzogenaurach, no estado alemão da Baviera, a fabricante de equipamentos esportivos Adidas abriu, em outubro de 2017, uma nova fábrica de tênis de corrida. É em Ansbach, de pouco mais de 40.000 habitantes, que robôs trabalham freneticamente para moldar, cortar e colar calçados que atendam ao gosto dos europeus. Chamado pela Adidas de Speedfactory, o centro de produção também oferece uma redução dos custos de transporte — uma vez que a fábrica bávara substitui a importação de tênis produzidos em uma unidade industrial no Sudeste Asiático. O uso de tecnologias como os robôs está por trás de um fenômeno que poderá ser capaz de modificar a cadeia global de suprimentos e de produção: o retorno das fábricas aos centros consumidores.

Chamado pelo termo em inglês de reshoring, esse movimento ocorre na esteira do aumento de custos na China e com a constatação de que há algo que apenas os robôs são capazes de entregar: produtos personalizados na velocidade que os consumidores atuais exigem.

“A Speedfactory mudará a indústria, pois nos permite combinar velocidade na manufatura com flexibilidade, transformando os processos convencionais para dar aos consumidores o que eles querem, quando querem”, afirma Jan Hill, diretor sênior de engenharia do futuro e líder do projeto na Adidas. A visão da empresa é que com as mudanças será possível reduzir o tempo despendido do desenvolvimento do produto à sua chegada à prateleira da loja. O padrão da indústria é de 18 meses, mas com a nova fábrica é possível reduzir o prazo a cinco semanas — e, no futuro, a meta é ter um período ainda menor, de dias ou até mesmo de horas. Outra vantagem é que, com o auxílio dos robôs, é possível fazer edições de apenas 500 pares, quando a regra é fazer tiragens de pelo menos 50.000.

Isso possibilita apostar em nichos, ampliando o sortimento de cores e estampas. “Por meio do aumento do nível de digitalização, a Speedfactory também permitirá o uso dos dados dos consumidores, como preferências e tamanho de pé, em análises para moldar e personalizar produtos. Isso é apenas o começo da jornada”, diz Hill. A ambição da Adidas é ampliar a participação de produtos criados por meio de projetos Speed, como o da fábrica em Ansbach — que emprega 160 pessoas e revigorou o setor logístico local —, para pelo menos metade de suas vendas líquidas até 2020. Atualmente, apenas 15% das vendas se enquadram nessa categoria. Um novo passo nesse sentido foi dado no final de abril, quando a empresa abriu sua segunda fábrica desse tipo, em Cherokee County, local próximo à cidade de Atlanta, nos Estados Unidos.

Lojas em um cruzamento da Broadway, em Nova York: o uso de tecnologia permite que coleções de moda sejam voltadas para nichos | Richard Levine/AGB Photo

A Adidas não está sozinha nesse retorno da produção aos centros consumidores. A varejista de moda catalã Mango decidiu ampliar sua produção na Espanha, na Itália e na Turquia em detrimento da China e de Bangladesh. Mais emblemático ainda é o caso da chinesa Suzhou Tianyuan, que fornece peças de roupas para marcas como a italiana Armani e a americana Reebok. No início do ano, em vez de abrir mais um centro de produção na China, a Suzhou Tianyuan investiu 20 milhões de dólares numa fábrica no estado americano de Arkansas em que utiliza robôs inteligentes capazes de costurar camisetas e toalhas. “Nem mesmo o mercado de trabalho mais barato do mundo pode competir conosco”, disse em entrevista recente Tang Xinhong, presidente da Suzhou Tianyuan.

Além da proximidade com o mercado consumidor, as fábricas modernas, como a da Adidas e a da Suzhou Tianyuan, estão sendo abertas em países desenvolvidos em razão de outro fator: a mão de obra qualificada. O caso recente mais significativo é o da Ford. Em 2017, a montadora americana escolheu o estado de Michigan, e não o México, como destino de um investimento de 4,5 bilhões de dólares na implantação de uma fábrica de carros elétricos. Apesar de o governo do presidente Donald Trump afirmar que a mudança nos planos da Ford guarda relação com o endurecimento da política comercial do país — sobretudo com a renegociação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte —, o real motivo para essa escolha tem a ver com o simples fato de os engenheiros de carros elétricos e outros profissionais necessários para trabalhar na nova unidade industrial estarem todos nos Estados Unidos. E sem eles seria impossível fazer a manutenção dos robôs ou enfrentar problemas que poderiam aparecer no dia a dia de uma fábrica digitalizada, como os bugs de -software que todo usuário de computador conhece. Em média, ao produzir no México um carro de 25 000 dólares, há uma redução de custos da ordem de 1 200 dólares em relação a produzir nos Estados Unidos. Mas, com as novas tecnologias, essa diferença diminui e as empresas estão repensando as estratégias.

Nesse cenário, os chineses estão preocupados com a escalada de custos em seu território. Segundo a consultoria Euromonitor, o valor pago por hora a um trabalhador chinês subiu 64% de 2011 a 2016, ficando mais próximo do salário pago em lugares como Croácia e África do Sul e acima de países como Vietnã. Soma-se a isso o fato de que os custos de transporte estão atrelados, sobretudo, ao preço do barril de petróleo — que nos últimos 12 meses já acumula uma alta superior a 40%. Portanto, a vantagem competitiva de produzir longe do mercado consumidor está se estreitando. “O reshoring é uma realidade e os robôs, que compõem boa parte da mão de obra da indústria 4.0, têm um custo similar em qualquer lugar do mundo”, afirma Julien Imbert, sócio da consultoria BCG no Brasil. E os custos da automação estão caindo. Em 2005, um robô industrial custava, segundo a BCG, pouco mais de 67 000 dólares. Em 2015, o preço da mesma máquina já estava em 31 000. Até 2025, a queda tende a ser mais lenta, e o preço deve ficar pouco acima de 20 000 dólares. É por isso que, temendo a migração de fábricas para países vizinhos mais baratos ou para centros automatizados na Europa e nos Estados Unidos, o governo de Xi Jinping lançou o programa Made in China 2025, de investimentos em tecnologia. A ideia é o país deixar de ser conhecido pela produção em massa — e manual — de produtos baratos e começar a substituir as linhas de produção por robôs, investindo pesadamente em inteligência artificial. Essa tecnologia permitirá a criação de máquinas colaborativas e com habilidades de realizar tarefas mais complexas além daquelas para as quais foram programadas inicialmente.

Os chineses entenderam que, para continuar seu processo de desenvolvimento, é fundamental abraçar as novas tecnologias. Segundo um estudo do Fórum Econômico Mundial, as tecnologias da Quarta Revolução Industrial vão ter um impacto cumulativo na melhoria da qualidade de vida nos próximos anos. Ficar de fora dessa onda significaria negar o passaporte rumo ao mundo desenvolvido — nas revoluções industriais anteriores, novos países conseguiram entrar no clube dos países ricos. Para não ficar para trás, além de incrementar os investimentos em educação, os chineses foram às compras. O grupo chinês de eletroeletrônicos Midea adquiriu, em 2016, 80% da empresa alemã de robôs industriais e de soluções de automação Kuka por 5 bilhões de dólares. Outra aquisição, no final de 2017, foi realizada pela fabricante de equipamentos Huachangda, que comprou a sueca RSP, uma empresa de automação surgida dento da fabricante de robôs sueco-suíça ABB. O valor do negócio não foi divulgado.

Segundo a fabricante Kuka, as vendas de seus robôs industriais para o mercado chinês totalizarão 1,2 bilhão de dólares em 2020, o dobro do faturamento -atual. Até lá, a China deverá ter 1 milhão de robôs industriais inteligentes, um terço do que é esperado de base instalada em todo o mundo — e um aumento de 230% em relação ao que o país asiático possuía em 2016. “Para quem aposta em inteligência artificial, o palpite mais certeiro é a China. E muitas pessoas não chegariam a essa conclusão há cinco anos”, afirma Mike Gregoire, presidente da empresa americana de -software CA -Technologies. “É por isso que, com as novas tecnologias, todos os países têm o potencial de se desenvolver. O jogo está aberto.”

Carga no porto de Santos: entre os impactos da Quarta Revolução Industrial está o retorno da produção para países consumidores | Gerrmano Lüders

Opinião similar tem Jean-Pascal Tricoire, presidente do grupo francês Schneider Electric, dono de um faturamento de quase 25 bilhões de euros na área de equipamentos elétricos e serviços. “Com o centro fabril do mundo sendo automatizado com qualidade e inovação, isso significa que todos os países precisam se mexer”, diz Tricoire (leia entrevista completa na pág. 54). Foi nesse contexto que o governo do presidente Emmanuel Macron anunciou no início de abril um projeto de 1,5 bilhão de euros para desenvolver empresas e pesquisas em inteligência artificial na França. A proposta contém chamadas públicas de projetos e financiamento de startups na área. O governo espera que, com o plano estruturado, ainda consiga atrair outros 500 milhões de euros de investidores privados. “Acredito que a inteligência artificial promoverá a mudança de diferentes modelos de negócios. É a próxima disrupção. Eu quero fazer parte disso, caso contrário, ficarei sujeito a isso sem criar empregos no meu país”, disse Macron em entrevista recente.

Plano nacional

Executivos e consultores ouvidos por EXAME afirmam que um plano nacional como fez Macron na França é essencial para que países aproveitem a transição para voltar a atrair fábricas. “A China está se preparando muito bem para uma redução do papel industrial tradicional, reconhecendo que a cadeia toda vai se aproximar mais do consumidor. Por isso, é muito importante que o Brasil reconheça que o futuro pertence às novas tecnologias”, afirma Klaus Schwab, fundador e presidente do Fórum Econômico Mundial e uma das maiores autoridades em indústria 4.0 no mundo. Para ele, o Brasil pode dar um salto com as tecnologias, uma vez que o grande mercado consumidor interno é um atrativo para que plantas modernas se instalem aqui. Mas, para isso, é preciso haver políticos que entendam a digitalização, um desafio inerente a qualquer nação. “Os políticos estão atrasados ​​porque é muito difícil, até mesmo para mim, entender o que realmente o blockchain e a inteligência artificial podem fazer”, diz Schwab. “Precisamos ter certeza de que temos políticos educados na Quarta Revolução Industrial.”

Xi Jinping, presidente da China: a meta é qualificar a indústria | Fabrizio Bensch/Reuters

No primeiro trimestre deste ano, o governo brasileiro lançou sua agenda para a indústria 4.0. Além de oferecer linhas de crédito da agência de fomento à ciência e à inovação Finep e do BNDES, que somam 9,1 bilhões de reais, o governo planeja eliminar o imposto de importação de robôs industriais. A expectativa é que, ao zerar a alíquota — atualmente de 14% —, a iniciativa privada invista até 250 milhões de dólares na robotização de parques fabris nos próximos dois anos. Mas o desafio nacional vai além: é preciso promover desembaraços tributários, além de evitar exigências legais que atuem como barreira protecionista. A pressão, nesse sentido, está surgindo da iniciativa privada. A Câmara Internacional do Comércio no Brasil (ICC), por exemplo, alinhavou uma aliança de empresas e de órgãos públicos preocupados com a inserção brasileira no contexto global da Quarta Revolução Industrial. “É preciso garantir que não haja, no Brasil, a adoção de padrões fora da curva tecnológica. Isso é essencial para a integração do país às cadeias globais”, afirma Gabriel Petrus, diretor executivo do ICC. Sem isso, o risco é continuar importando produtos, mas de lugares diferentes: em vez de calçados fabricados por chineses, podemos vir a comprar tênis criados por robôs feitos em qualquer parte do mundo — até nos países ricos. 


“A DIGITALIZAÇÃO IGUALA OS PAÍSES”

Jean-Pascal Tricoire, presidente da Schneider Electric, acha que, com as transformações na China, a produção tende a ser local Rafael Kato, de Paris

O francês Jean-Pascal Tricoire escolheu uma maneira incomum de exercer as funções de presidente do conselho de administração e principal executivo da Schneider Electric — conglomerado que existe desde a Primeira Revolução Industrial na França e atualmente está focado em equipamentos e software para a área de energia. Quando não está viajando, Tricoire comanda o negócio de seu escritório de Hong Kong, onde mora faz dez anos, enquanto seu diretor financeiro, o número 2 da companhia, fica em Paris. Esse arranjo, segundo ele, permite ser mais flexível num mundo em rápida transformação. Mas foi na capital francesa que EXAME conversou com Tricoire sobre como a revolução digital afetará o fluxo global de mercadorias e como os países precisam se mexer para encarar as mudanças.

Tricoire, da Schneider Electric: “Nós colocamos a bota na lama” | Marlene Awaad/Getty Images

Como a digitalização mudará o comércio global?

A China criou o plano China 2025 com base em processos digitais. É uma prioridade nacional. Esqueça o baixo custo, a mão de obra, a montagem manual. Isso não será mais verdade em cinco anos. Com o centro fabril do mundo sendo automatizado com qualidade e inovação, isso significa que todos os países precisam se mexer. Isso, provavelmente, vai empurrar a produção para ser mais local. Na -Schneider, sempre acreditamos que a cadeia de produção tem de ser bastante regional, porque os clientes querem o produto para o dia anterior. No nosso caso, esses produtos nunca são os mesmos. É preciso estar baseado no Brasil para entregar especificações brasileiras. Mas, para quem faz produtos muito padronizados — e está na Ásia —, essa será uma mudança importante, porque as economias de escala serão menores do que eram antes.

A França e o Brasil sofreram desindustrialização. O setor manufatureiro francês recuou de 16,2% do PIB, em 1998, para apenas 9%. A digitalização mudará essa tendência e as economias da França e do Brasil se tornarão mais industriais novamente?

Entre as razões pelas quais as empresas deixaram alguns países estão os custos altos, as questões sociais e as regulamentações pesadas. As empresas que precisavam exportar migraram para outros lugares porque era necessário se manter competitivo em escala global. Não era mais possível exportar competitivamente, no caso de vários produtos, se a empresa estivesse num país como a França antes da digitalização. Mas a digitalização coloca todo mundo em pé de igualdade e reduz custos. Há também a personalização dos produtos. Então, sim, há uma tendência de uma produção mais local. Agora, eu não acho que os casos do Brasil e da França sejam similares.

Por que o senhor diz isso?

Aqui , o presidente Emmanuel Macron iniciou uma reforma da economia que vai reindustrializar a França. O problema não era tecnológico. O problema era a complexidade das leis. Ele decidiu mudar isso. Como a França está no centro da Europa, ela se tornará competitiva novamente. Nós sabemos o que é operar indústrias na França e achamos a reforma bem-vinda. Não posso opinar sobre o Brasil, mas o maior problema foi a fraqueza da economia nos últimos três anos. Minha estimativa é que, pelo que temos visto até agora, haverá um novo desenvolvimento da economia.

O senhor comentou sobre o plano de Macron. O que é uma boa política industrial hoje em dia?

A primeira coisa é realmente dar poder às empresas nas relações sociais delas. Tudo na França, por tradição, é centrado em diálogos complicados. Macron está tentando simplificar tudo ao colocar as leis e os impostos no nível do restante da Europa. Há a celebração do que ele chama de “tecnologia francesa”, instigando os jovens a iniciar a própria empresa ou a trabalhar numa companhia inovadora, como a Schneider. Há um olhar renovado. Quem governa o país é uma pessoa que tem 40 anos, que entende o digital, que não é de partidos tradicionais. É um novo espírito.

Muito se fala sobre a transformação da educação para esse novo mundo. O que é, afinal, essa nova educação e qual profissional a empresa procura?

O maior problema é que as pessoas sempre pensam da mesma maneira, mesmo quando deveriam repensar tudo. Todos devemos repensar tudo. As pessoas estão fazendo máquinas do jeito antigo, fábricas do jeito antigo, projetando cidades da maneira antiga. Empresas como a nossa, universidades e centros tecnológicos devem mudar todo o treinamento para as novas possibilidades do digital. O segundo ponto é que há uma falta de escolas profissionalizantes. Muitas pessoas são treinadas na universidade, mas, no final das contas, quem está fazendo o trabalho de verdade precisa ter treinamento técnico.

Como a Schneider enfrenta essa necessidade?

Temos muitos aprendizes na Schneider. Entre alguém que foi educado com a teoria e alguém com treino misto, com prática e teoria, este é muito mais apto para o mundo de amanhã. Temos gente capaz de entrar em uma plataforma de petróleo ou em qualquer tipo de indústria para resolver um problema do cliente. Não ficamos numa sala branca e limpa. Nós colocamos a bota na lama. E precisamos de mais pessoas para isso. Mas a falta desse pessoal é um problema que temos em todos os lugares, na Europa, na China, nos Estados Unidos e, tenho certeza, também no Brasil.

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