Revista Exame

Como as startups se reinventaram nos últimos anos?

O inverno das startups reduziu a marcha dos possíveis novos unicórnios, abrindo espaço para toda uma nova taxonomia, que inclui camelos, baratas e até gazelas. Em comum, uma condição: a de o negócio se pagar

André Abreu, CEO da BossaBox: planos de internacionalização, 
com foco em países com uma moeda valorizada em relação ao real (Luciano Alves/Divulgação)

André Abreu, CEO da BossaBox: planos de internacionalização, com foco em países com uma moeda valorizada em relação ao real (Luciano Alves/Divulgação)

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GabrielJusto

Publicado em 12 de dezembro de 2022 às 06h00.

Se por acaso algum empreendedor atravessou os últimos anos sonhando com um cenário pós-pandêmico tranquilo e próspero, o despertar certamente não foi dos mais tranquilos. Mesmo passados os piores tempos da pandemia, uma conjunção de choques relacionados à retomada econômica puxou os índices de inflação para patamares que não eram vistos desde a crise do petróleo dos anos 1980.

Para conter a escalada de preços, bancos centrais do mundo todo, até mesmo dos Estados Unidos, elevaram suas taxas de juro, enxugando a economia e fechando as torneiras do mercado de venture capital. As startups, então, foram obrigadas a rever suas estratégias, o que incluiu grandes demissões em massa, inclusive em gigantes como a Meta, dona do Facebook, que mandou 11.000 funcionários para casa na tentativa de reduzir custos e equilibrar as contas.

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A migração dos investidores para ativos menos voláteis, como a renda fixa e as ações de value, atingiu principalmente os negócios mais maduros e que basearam seus crescimentos em uma estratégia de crescimento agressivo com grandes queimas de caixa. Com seus múltiplos fortemente impactados, os negócios em late stage ficaram alguns degraus mais longe de se tornarem unicórnios — abrindo espaço para toda uma nova fauna dentro do universo startupeiro.

A ZOOLOGIA DAS STARTUPS

Ainda em 2020, o investidor americano de venture capital Alex Lazarow escreveu pela primeira vez sobre as startups camelo no seu Out-Innovate: How Global Entrepreneurs — from Delhi to Detroit — Are Rewriting the Rules of Silicon Valley (“Como empreendedores globais, de Deli a Detroit, estão reescrevendo as regras do Vale do Silício”, em tradução livre, ainda não lançado no Brasil). Para ele, startups camelo são aquelas que “primeiro elaboram suas unidades econômicas e, depois, escalam o negócio, gerenciando a queima de caixa e adotando uma abordagem de longo prazo”.

Caterina Fake, investidora e cofundadora do Flickr, há alguns anos também escreveu sobre um novo modelo de startup que se movimenta rápido, pode sobreviver por tempos a fio nas condições mais adversas, não é nada glamurosa, mas é muito forte: a startup barata — que representa, em geral, negócios de crescimento lento, mas sólido. E a lista segue: já se ouviu falar sobre as startups dragão, coelho, gazela, urso…

Caterina Fake, cofundadora do Flickr: “startup barata” foi o termo usado por ela para negócios de crescimento lento, mas sólido (Jussi Ratilainen/Divulgação)

INVESTIDORES MAIS SELETIVOS

Apesar de guardarem suas particularidades, todos esses modelos convergem em um mesmo ponto: a sustentabilidade financeira, para garantir a sobrevivência do negócio, mesmo nos tempos mais difíceis. Se há alguns anos o modelo de blitzscaling (de crescimento acelerado, em detrimento da eficiência de gestão nos períodos iniciais do negócio) era completamente aceitável, hoje os investidores não esperam menos do que um negócio financeiramente saudável.

“Para quem está começando uma startup agora, muda muito pouco, porque o investidor anjo ou de pequenas rodadas está pensando lá na frente. Mas para quem já está no jogo, já pegou algumas rodadas e depende das próximas para seguir crescendo, ficou um pouco mais difícil, porque é preciso rever toda a estratégia do negócio”, explica Luiz Othero, diretor executivo da Associação Brasileira de Startups (Abstartups).

Os dados do mapeamento divulgado em novembro deste ano pela associação mostram que 40% das startups brasileiras já receberam algum tipo de investimento — a maioria anjo (39%) ou seed (18%) — nome dado a aportes feitos em empresas em estágio inicial.

Ao mesmo tempo, dados da plataforma de inovação Distrito indicam uma diminuição de 45% no volume desse investimento (de 6,6 bilhões para 3,6 bilhões de dólares) entre janeiro e agosto deste ano diante do mesmo período de 2021. Mas, em média, os cheques das rodadas iniciais ficaram significativamente mais gordos: nas rodadas pré-seed, foram de 350.000 para 788.000 dólares; e nas rodadas seed, de 1,5 milhão para 2,4 milhões de dólares por rodada. Ou seja: o “inverno das startups” existe, mas afeta os menores com menos força.

Para Daniel Chalfon, sócio da Astella Investimentos, o mercado early stage está “tão pujante quanto antes”, o que pode significar um possível novo ciclo positivo em cerca de dois anos, quando essas empresas que acabaram de captar estiverem buscando uma nova rodada. Para ele, o “inverno das startups” está mais para um retorno à mediana histórica de investimentos, após dois anos de grande pico, que acabou elevando o patamar. Só que agora os investidores estão mais seletivos.

“Atualmente, a empresa que quiser captar dinheiro de growth precisa estar não só crescendo mas também se tornando uma empresa melhor, com boa governança e gestão de caixa, além de ter uma proposta de valor única no mercado”, avalia Chalfon. “Quem conseguir demonstrar esses três pontos, definitivamente, se privilegia neste momento.”

Daniel Chalfon, sócio da Astella Investimentos: com investidores mais seletivos, empresas precisam de boa governança, gestão de caixa e proposta de valor única (Renan Bossi/Divulgação)

CRESCIMENTO COM RESPONSABILIDADE

Triplicando de tamanho a cada ano, e fazendo isso com o melhor dinheiro que existe, que é o do cliente, a foodtech Raízs levantou em abril deste ano — em pleno “inverno” — 20 milhões de reais em uma rodada de série A liderada pela brasileira Solum Capital, fundada por dois ex-XP.

O cheque, que representa o dobro do valor já captado em todos os seis anos do negócio, será usado para expandir suas entregas de produtos orgânicos para mais estados do Brasil, além de incrementar o portfólio proprietário da marca — que inclui castanhas e pães, por exemplo.

“Sempre nos preocupamos com crescimento, mas sempre de maneira saudável e ordenada, e não a qualquer custo”, explica Tomás Abrahão, fundador da Raízs. “Tivemos momentos de breakeven, e outros em que precisamos alavancar, mas sem deixar de olhar para o P&L, para as margens.”

Justamente por ter rodado sempre em um modelo mais “pé no chão” (ou como um “camelo”, pela zoologia das startups), Abrahão diz que o “inverno” não provocou demissões na empresa nem o obrigou a rever as estratégias. O que não necessariamente torna a jornada mais fácil.

O que muda é o “como” fazer, que pode ficar um pouco mais complexo e exigir uma mentalidade de buscar um modelo de negócios que se sustente ao longo do tempo. “Não é melhor nem pior. É uma escolha muito pessoal, que tem a ver com a maneira que eu acredito que os negócios devem caminhar, e que também tem consequências, como trabalhar com menos dinheiro e, com isso, ter de buscar outros caminhos para crescer”, explica ele, que acredita que esse modelo de crescimento mais responsável deve se tornar um padrão do mercado à medida que os negócios forem crescendo. “Isso facilitou muito o nosso acesso a capital.”

BOM PRODUTO É AQUELE QUE SE PAGA

Quem também entendeu esse “novo normal” do mercado, só que um pouco mais na marra, foi a BossaBox, que conecta profissionais de tecnologia a empresas no modelo squad as a service. Até 2019, a startup cresceu quase dez vezes ao ano, mas ao custo de um burn rate (“taxa de queima”, ou quanto a empresa gasta para se manter) significativo e que, por pouco, não arruinou o negócio. Os sócios, então, concentraram seus esforços na eficiência operacional, equilibraram as contas e conseguiram entrar para o Cubo, do Itaú.

Durante o processo seletivo, a BossaBox passou pelo crivo da RedPoint (fundo de venture capital com participações em grandes empresas, como Rappi, Housi e Creditas), que ofereceu um aporte de 1,6 milhão de reais para o negócio.

“O que aprendemos com isso é que a preferência dos investidores e dos consumidores pode mudar, assim como a tecnologia, mas os fundamentos de um negócio não mudam. Tudo aquilo que a gente aprende na faculdade não deixou de ser verdade”, garante André Abreu, sócio-fundador da BossaBox, que em 2020 recebeu outros 8 milhões de reais em uma rodada liderada pela Astella Investimentos.

Mais recentemente, em uma extensão da mesma rodada, já em meio ao “inverno”, a empresa conseguiu captar mais 1,5 milhão de dólares. Com os cheques, o plano é triplicar o faturamento e investir em internacionalização, com foco nos países que têm uma moeda valorizada em relação ao real. Tudo, claro, com o cuidado de preservar boas margens e manter um fluxo de caixa saudável.

“Não é que toda empresa no mercado precise breakivar, mas estamos vendo uma ressignificação do que é um bom produto: é aquele que se paga”, comenta Abreu. “Se você não tem boas unit economics, com as contas fechando, você não pode dizer que tem um product market fit, que na minha definição inclui a rentabilidade do seu produto. É um movimento que deixa o jogo mais difícil, mas mais profissional também.”

Chalfon, da Astella, que liderou os investimentos na BossaBox, concorda. Para ele, o empreendedor brasileiro amadureceu muito nos últimos cinco anos, quando ele viu crescer o que chama de “pelotão intermediário”: empresas que não estão nem no pequeno concentrado (6%), responsável por retornar 60% dos ativos investidos, nem são aquelas vendidas ou fechadas sem dar algum retorno.

Esse “messy middle”, explica o executivo, oferece uma liquidez provável muito grande e importante para os investidores. “Isso mostra a evolução do nosso mercado. Temos empresas com qualidade de 2022 a preços de 2018”, avalia Chalfon. “Outro indicativo é que temos ainda uma grande geração que fez parte dos times fundadores das grandes startups e que agora sente que é a hora de empreender.”

EXPERIÊNCIA CONTA

Fornecedora de infraestrutura de open finance e open insurance para pequenas e médias empresas, a Lina Infratech é uma startup que surgiu de um movimento como o descrito por Chalfon. Antes de fundar a empresa, os sócios acumularam anos de experiência em um nicho bastante específico e crítico do mercado financeiro: o de infraestrutura de mercado, cuja expertise é altamente demandada por empresas que querem entrar no mercado financeiro, como as fintechs.

A partir desse background, a empresa começou vendendo projetos de consultoria, o que financiou o desenvolvimento dos produtos que, hoje, geram uma boa receita recorrente.

“Esse perfil dos sócios nos ajudou a sentar na mesa com clientes importantes, nos abriu portas em círculos que não conseguiríamos frequentar de outra forma e, principalmente, trouxe credibilidade ao negócio”, explica Murilo Rabusky, CCO da Lina, que optou por estabilizar as receitas antes de buscar capital externo. “Quando começamos a negociar com investidores, já tínhamos uma boa receita e um bom fluxo de caixa, o que mostrava a solidez do negócio. Sempre fomos mais ‘camelo’.”

Combinando experiência e lucratividade, em setembro a Lina recebeu um aporte de 7,5 milhões de reais da sua já parceira RTM, controlada pela Anbima (80%) e pela B3 (20%), que oferecerá os produtos da startup para as mais de 700 instituições que já são suas clientes.

Tomás Abrahão, fundador da Raízs: crescimento saudável e ordenado, sem deixar de olhar para as margens de lucro (Carlos Pedretti/Raízs/Divulgação)

PRONTO PARA A PRÓXIMA RODADA?

CEO da Bornlogic, uma startup que integra os vendedores do varejo às campanhas de marketing das lojas, André Fonseca acredita que mais importante do que ser um animal ou outro é desenvolver a capacidade de metamorfose. Em março de 2020, ele tinha tudo em ordem, mas foi surpreendido pela pandemia e precisou apertar os cintos para não fechar. Já no final daquele ano, com os números estabilizados, a Bornlogic conseguiu seu primeiro investimento seed, de 8 milhões de reais, também pela Astella.

“Quando o investidor olha para o negócio, a casa tem de estar arrumada: você precisa ter um produto bom, estar vendendo, crescendo, com uma margem excelente e bom mercado potencial, boa defensibilidade, um storytelling robusto e, principalmente, alguma inovação, seja na maneira de vender, no modelo de negócio, seja na precificação”, explica Fonseca que, mais recentemente, recebeu um aporte de 52 milhões de reais em uma rodada de série A — para a qual ele já vinha se preparando desde o ano passado. “Rodada de captação também tem janela, um timing específico que você precisa estar preparado para aproveitar, senão essa janela fecha, e sabe-se lá quando abre de novo.”

Apesar do momento mais duro do mercado, Fonseca aposta que o modelo de blitzscaling não morreu de vez. Ele, na verdade, deve ser entendido como um foguete propulsor, que é ligado quando necessário, mas nunca para sempre. “É essa metamorfose que é importante para atravessar períodos de calmaria e tormenta. Afinal, é muito difícil a gente ter dez ou 20 anos de estabilidade econômica plena, sem nenhuma crise”, analisa o CEO. “A única certeza é a mudança, então o melhor a fazer é se preparar para ela.”

Alex Lazarow: em seu livro, ele descreve as startups camelo como aquelas que “primeiro elaboram suas unidades econômicas e, depois, escalam o negócio” (Divulgação/Divulgação)

UMA NOVA PRIMAVERA

A próxima mudança, inclusive, já está em curso: ao mesmo tempo que restringem investimentos, os fundos de venture capital têm recebido bastante dinheiro. Dados da consultoria PitchBook mostram que, só nos três primeiros trimestres de 2022, foram levantados 151 bilhões de dólares — um valor maior do que em todo o ano anterior. E o chamado dry powder (recursos prontos para investir) já soma 300 bilhões de dólares.

“O apetite ao risco já está voltando com força, e isso vai mudar todo o cenário. Mas com a lição de casa para as empresas, que é pensar em gestão e focar o crescimento sustentável”, analisa João Kepler, CEO da Bossanova Investimentos. Para ele, apesar das lamentáveis demissões, o “inverno” foi um freio de arrumação importantíssimo para reduzir o número de startups se dando mal no futuro. “Hoje elas são empresas mais ajustadas, que pensam duas vezes antes de gastar loucamente antes da próxima rodada. Isso as consolida como uma classe de ativos mais convexa e segura.”

Othero, da Abstartups, aposta na mesma linha: “Dias melhores virão, e quem sobreviver chegará lá na frente com muito potencial, podendo usufruir de uma abundância de investimentos que está represada. Menos startups vão chegar lá, é verdade, mas isso é bom para quem consegue fazer a travessia”.


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