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Depois de Brumadinho, o que mudou?

Um ano após a tragédia, bilhões foram pagos em reparações e 16 pessoas foram denunciadas. Falta ao país e à Vale colocar a sustentabilidade em prática

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Ruínas: a destruição deixou vestígios tristes, ainda bem visíveis em Brumadinho  (Germano Lüders/Exame)

Ruínas: a destruição deixou vestígios tristes, ainda bem visíveis em Brumadinho (Germano Lüders/Exame)

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Mariana Desidério, de Brumadinho (MG), Denyse Godoy e Juliana Estigarríbia

Publicado em 30 de janeiro de 2020 às, 05h48.

Última atualização em 3 de fevereiro de 2020 às, 10h34.

O paredão antes formado pela barragem um da mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho, Minas Gerais, é hoje uma enorme cratera na montanha. Um ano depois do estouro do depósito, a lama escura dos rejeitos de minério de ferro que eram armazenados ali pela mineradora Vale continua espalhada pela maior parte dos quase 10 quilômetros que separam o local do Rio Paraopeba. Nas casas destruídas, a massa que derrubou paredes permanece sobre móveis e eletrodomésticos.

Já se passaram 365 dias mas quem perdeu familiares e amigos ainda vive em suspensão, sob a sombra de 25 de janeiro de 2019. “Ouço meu filho me chamar todos os dias. Ele trabalhava no almoxarifado da mineradora tinha menos de um ano. Deixou três filhos”, afirma Malvina Nunes, que perdeu o filho Peterson Nunes, de 35 anos. O corpo de Juliana Resende, de 33 anos, filha de Geraldo Resende, é um dos 11 que ainda não foram encontrados. Ela e o marido trabalhavam na mina e deixaram os  filhos gêmeos, hoje com 1 ano e 10 meses. “Eles saíram para trabalhar sãos e foram enterrados vivos”, diz o pai. As buscas do Corpo de Bombeiros continuam. Todo dia 25 familiares se reúnem e fazem uma chamada com os nomes das vítimas.

Foto: Germano Lüders
Homenagem em Brumadinho: todo dia 25 as 270 vítimas da barragem são lembradas por moradores | Germano Lüders

Quem vive nos bairros de Brumadinho mais atingidos pela lama reclama do barulho dos caminhões que estão fazendo a limpeza, da violência e da falta de acesso a água. Em alguns casos, quem precisou sair de casa ainda não encontrou moradia definitiva. “Já fiquei em duas pousadas e, agora, estou nesta casa. Mas já vou ter de sair, o dono pediu o imóvel”, diz Elizângela Gonçalves Maia, de 49 anos. O consumo de ansiolíticos cresceu 79%; e o de antidepressivos, 56%, segundo a prefeitura. No comércio, a apreensão é sobre o que será da cidade quando o movimento em torno da barragem rompida acabar. “Por enquanto, a cidade está recebendo auxílio. Mas e depois?”, diz o comerciante Marcelo Ferreira.

A Vale concordou em pagar auxílio emergencial de um salário mínimo aos moradores da cidade, mas, a partir deste mês, vai cortar a ajuda pela metade para a maioria. A empresa também se comprometeu a continuar pagando uma compensação financeira à prefeitura até dezembro. O exemplo da cidade mineira de Mariana assusta. Lá, a barragem da mineradora Samarco (controlada pela Vale e pela australiana BHP) se rompeu em 2015. Sem a Samarco, ainda paralisada, o município de Mariana chegou a ter desemprego de quase 30% e só agora começou a se recuperar.

A queda da barragem da Vale em Brumadinho foi a maior tragédia trabalhista da história do país. Deixou 270 mortos (272 se considerados os bebês que ainda estavam na barriga das mães). Desalojou famílias e gerou uma considerável perda econômica para o estado de Minas Gerais. Segundo um estudo feito pela consultoria MB Associados, o produto interno bruto do estado poderia ter crescido 1,2%, para cerca de 607 bilhões de reais em 2019, caso não tivesse ocorrido o desastre. Mas o crescimento deve ter ficado em 0,7%. “Minas Gerais sentiu muito”, diz o governador Romeu Zema (Novo). “Agora estamos procurando fazer com que o estado dependa menos da mineração.” 

Um ano é pouco para superar um desastre dessa proporção. Mas é tempo suficiente para as cidades, o estado e o país aprovarem leis e investirem em prevenção. É também tempo suficiente para o acerto de indenizações e para que avancem as investigações e as punições sobre o que ocorreu em 25 de janeiro de 2019. Seria, ainda, o suficiente para a Vale direcionar sua estratégia para abraçar a sustentabilidade e colaborar para um mundo com menos impacto ambiental e com uma economia mais limpa.

Grandes tragédias tendem a dar origem a grandes promessas. Após Brumadinho, falou-se até em “intervenção” na diretoria da Vale, algo que felizmente não ocorreu. No entanto, o caminho desde o clamor popular por providências até a obtenção de respostas é longo. No caso de Minas Gerais, foram necessárias duas tragédias para uma medida concreta. Apresentado à Assembleia Legislativa em julho 2016, após a queda da barragem em Mariana, o Projeto de Lei de iniciativa popular Mar de Lama Nunca Mais ficou parado durante anos. Foi aprovado após Brumadinho, em fevereiro de 2019.

Entre outras medidas, a nova lei proíbe a construção e a ampliação de barragens com pessoas vivendo perto da estrutura e determina o descomissionamento das barragens a montante (com tecnologia semelhante à de Brumadinho). Hoje são cerca de 50 no estado. Mas alguns artigos ainda não foram regulamentados. Alguns municípios criaram regras mais rígidas. Mariana aprovou em 2017 um código ambiental; Congonhas, outra cidade mineradora, criou seu Plano Municipal de Barragens. Houve avanços também na fiscalização. O núcleo de inteligência do programa mineiro de gestão de barragens foi de dez para 22 funcionários e ganhou mais 11 veículos. Em 2020, o orçamento do programa cresceu de 80 milhões para 180 milhões de reais. Agora o governo de Minas trabalha para adotar um modelo que alimente os órgãos públicos com informações em tempo real. “Precisamos investir para superar a insegurança que se instaurou na sociedade”, afirma o secretário estadual de Meio Ambiente, Germano Vieira.

A experiência de Mariana trouxe aprendizado sobre o que não fazer. A queda da barragem da Samarco completou quatro anos em novembro e parte importante da reparação não terminou. A reconstrução do distrito de Bento Rodrigues, o mais arrasado pela lama, deve ficar só para 2021, na estimativa de moradores. Contatada, a Fundação Renova, entidade criada para gerir as reparações, não deu um prazo definitivo. EXAME visitou o local e encontrou um canteiro com obras longe de ficar prontas. A lentidão nos reparos promovidos pela Renova recebe críticas de vários lados.

“A Renova tem caminhado a 20 quilômetros por hora. Quem até hoje viu alguma benfeitoria da Renova?”, questiona Zema. Em Brumadinho, a percepção é que o andamento das reparações tem sido mais rápido. As negociações e as reivindicações são feitas diretamente à Vale, com a mediação da Justiça.

Logo após o desastre, a Vale criou uma operação para conter os rejeitos da lama e iniciar a reparação da área afetada. São 2 800 funcionários destacados para o trabalho. Foram construídas 29 barreiras para a lama ao longo do Córrego Ferro e Carvão, que desemboca no Rio Paraopeba. Os rejeitos serão depois depositados na cava da Mina do Feijão, que foi totalmente desativada. A meta é encerrar esse processo até 2023. Na beira do Paraopeba, todo o rejeito já foi retirado e a companhia deve iniciar em fevereiro o plantio de mudas de mata nativa.

A Vale montou também duas estações de tratamento de água. Mas o rio ainda não melhorou: um relatório divulgado em janeiro pela ONG SOS Mata Atlântica mostra que, um ano depois do acidente, o Paraopeba continua poluído numa extensão de 356 quilômetros que corta 21 cidades, nas quais a agricultura e o consumo seguem inviáveis.

A sensação de que ainda falta muito a fazer se estende às reparações à população. Em um ano, a Vale fechou quase 5.000 acordos de indenizações individuais e trabalhistas. “Optamos por acordos individuais extrajudiciais pensando na celeridade em devolver às pessoas os meios para gerenciar sua vida”, diz Marcelo Klein, diretor especial de reparação da Vale. Se por um lado os acordos individuais são rápidos, por outro reduzem o poder de negociação das famílias.

“Numa negociação coletiva há mais transparência e as famílias têm mais força para negociar”, afirma Bruno Milanez, professor na Universidade Federal de Juiz de Fora e especialista em economia da mineração. A reparação coletiva, mais lenta, será definida com a ajuda de assessorias técnicas escolhidas pelos moradores para levantar os danos causados. No entanto, esse trabalho está parado depois que a Vale contestou um plano apresentado. A empresa alega que o projeto tem prazo longo e redundâncias que gerariam retrabalho. A questão está em discussão na Justiça.

O comerciante Marcelo de Souza Ferreira: “Por enquanto, a cidade recebe auxílio de emergência, mas o que vai acontecer quando parar?” | Germano Lüders

A visão do governo de Minas e da prefeitura de Brumadinho é que a mineradora tem sido rígida nas negociações. No caso do governo do estado, a dificuldade está na negociação de uma compensação por danos à economia. Já na prefeitura um ponto latente é o auxílio emergencial. Em fevereiro de 2019, a Vale assinou um acordo para pagar auxílio a mais de 100 000 pessoas afetadas. A ajuda era de um salário mínimo por adulto, metade para adolescentes e 25% para crianças. Em janeiro de 2020, a ajuda integral passou a contemplar quem foi considerado atingido diretamente, de 10 mil a 15 mil pessoas. Os demais passaram a receber metade do valor.

“A Vale está sendo dura demais com o município. Se a empresa não ajudar a estruturar a cidade, haverá consequências inimagináveis para nosso futuro”, diz o prefeito Avimar de Melo Barcelos (PV), que compreensivelmente tenta levar o máximo para seu município.

A tragédia de Brumadinho também levou a revisões no governo federal. Entre as mudanças adotadas pela Agência Nacional de Mineração (ANM) está a obrigação de que a maior autoridade na hierarquia de uma empresa assine a Declaração de Condição de Estabilidade de uma barragem juntamente com o responsável técnico. Antes, podia ser qualquer representante legal. Barragens com dano potencial alto deverão começar a ter monitoramento em tempo real até dezembro deste ano. Outra mudança é uma resolução publicada no ano passado que exige o descomissionamento de todas as barragens a montante no país: a maioria até 2023 e o restante, de grande porte, até 2027. De 30 a 40 empresas estão nessa situação.

Consultores e empresários ouvidos por EXAME afirmam que o rigor é bem-vindo, mas que, aliado à falta de pessoal e ao medo de punições, levou a uma paralisia do setor. Cerca de 19 mil requerimentos de lavra aguardam publicação da ANM, a maioria por falta de licenciamento ambiental (concedido pelo Ibama ou por órgãos estaduais). “Ficou muito mais difícil obter um licenciamento”, diz Terence Trennepohl, sócio especializado na área ambiental do escritório Trennepohl Advogados. Dos cerca de 800 funcionários da agência, mais da metade está para se aposentar.

Os recursos pagos pelas empresas como compensação para exploração mineral, que financiam a agência, não foram transferidos integralmente nos últimos anos, segundo sua diretoria — a ANM recebeu em 2019 apenas 30% dos cerca de 300 milhões de reais a que tinha direito. Segundo Eduardo Leão, diretor da agência, a autarquia pleiteou um concurso público para 150 profissionais, mas ainda não obteve retorno. Até o rompimento de Brumadinho, havia oito técnicos para fiscalizar 816 barragens de mineração. Agora são 13. Do total de barragens de rejeitos no Brasil, 46 estão classificadas com risco “alto” e 242 têm dano potencial associado alto (ou seja, a probabilidade de ruir pode ser média ou baixa, mas, se romper, o estrago será grande). Procurado, o Ministério de Minas e Energia informou, em nota, que trabalha para ampliar os recursos da agência.

Operação da Vale em Carajás, no Pará: aumento na produção para compensar a queda após o desastre de Brumadinho | Germano Lüders

Ainda no campo das promessas que esbarram no mundo real está a criação de leis federais para ampliar o rigor sobre a mineração. O caso foi alvo de cinco Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs): na Câmara Municipal de Brumadinho, na Câmara Municipal de Belo Horizonte, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, na Câmara dos Deputados e no Senado. O desastre também foi alvo de uma investigação conjunta da Polícia Civil e do Ministério Público de Minas Gerais. A investigação culminou numa denúncia apresentada em 21 de janeiro contra a Vale, a consultoria alemã TÜV SÜD e 16 funcionários e executivos, denunciados sob acusação de homicídio doloso duplamente qualificado e de diversos crimes ambientais. Entre eles está o ex-presidente da Vale Fabio Schvartsman.

De acordo com a denúncia, a Vale ocultava informações sobre a segurança de suas barragens de forma sistemática. Em 2018, a companhia já teria uma lista de dez barragens em situação crítica, que incluía a barragem que ruiu. “Havia na Vale um contexto determinante para a prática de crimes baseado no não compartilhamento de informações, postura refratária a denúncias, retaliação a empresas de auditoria e dispersão de responsabilidades”, afirma o promotor William Garcia Pinto Coelho, coordenador do núcleo criminal da força-tarefa que denunciou a empresa. O assunto também é alvo da Polícia Federal, cujas investigações devem ir até junho. A TÜV SÜD alega que as causas do desastre “ainda não foram esclarecidas”; a Vale disse ser “prematuro apontar assunção de risco consciente”. A defesa de Schvartsman argumenta que denunciá-lo por homicídio doloso “é açodado e injusto”.

Financeiramente, a Vale já deixou Brumadinho para trás. Na semana que seguiu ao desastre, a mineradora perdeu 26% do valor de mercado. Mas, no início de janeiro deste ano, com alta de 30%, chegou a superar o valor de antes da tragédia, que era de 270 milhões de reais. Seu desempenho no período foi bem melhor do que o das concorrentes: a BHP Billiton perdeu 1% de valor de mercado nesse intervalo, e a Rio Tinto avançou 18%.

Os ganhos são impulsionados por uma elevação média de 36% no preço do minério de ferro em 2019 sobre o ano anterior, em decorrência, entre outros fatores, do próprio desastre de Brumadinho. A Vale anunciou no final do ano que o conselho de administração aprovou o pagamento (em data ainda a ser definida) a acionistas de 7,2 bilhões de reais em juros sobre o capital próprio referentes ao resultado do terceiro trimestre de 2019 — um período com lucro, embora o ano tenha sido até então de prejuízo devido ao provisionamento por causa de Brumadinho. O valor é superior aos 6 bilhões que a empresa afirma ter pagado em indenizações, reparações e outras medidas emergenciais. A empresa também deve recuperar, em 2020, os níveis de produção que tinha antes de Brumadinho, algo como 400 milhões de toneladas de minério, graças a um aumento na operação de Carajás, no Pará. 

No momento de maior preocupação da sociedade com a responsabilidade social e ambiental, tema central do fórum econômico de Davos deste ano, como os negócios devem responder ante um desastre? Os controladores da Vale — os fundos de pensão Previ, dos funcionários do Banco do Brasil, Petros, da Petrobras, Funcef, da Caixa, mais a Bradespar, empresa de participações do Bradesco, a japonesa Mitsui e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social — não comentam o resultado da empresa. A Mitsui diz que não se envolve “na implementação e no gerenciamento” das políticas. Entre os sócios minoritários da Vale, 18% são brasileiros e 45% estrangeiros, liderados pela gestora americana BlackRock.

Seu presidente, Larry Fink, divulgou em janeiro uma carta aberta dizendo que sua estratégia de alocação vai seguir mais de perto, a partir de agora, a cartilha da sustentabilidade. Sobre a fatia de 5% na Vale, a gestora disse que se trata de investimento passivo que apenas replica a carteira do Ibovespa, principal índice da B3. A Vale tem peso de 8% no índice, o segundo maior, atrás da Petrobras. “Se um fundo de investimento não tem o papel na carteira e a ação da mineradora dispara, o cliente vai chiar por não ter acompanhado essa alta”, diz William Eid, professor de finanças na Fundação Getulio Vargas. Todos os 20 fundos de ações que deram maior retorno com menor risco em 2019 aplicam nos papéis da Vale.

 

A brasileira Logos Capital vendeu na bolsa de Nova York seus recibos de ações da Vale no próprio dia 25 de janeiro de 2019, antecipando-se à derrocada que viria. Voltou a comprar os papéis nos meses seguintes. “Hoje, as ações da Vale estão sendo negociadas com um desconto de 20% em relação a suas principais concorrentes. Achamos que há potencial de valorização”, afirma Ricardo Vieira, sócio fundador da Logos, cujo fundo contabilizou retorno de 116% em 2019.

De acordo com ele, questões éticas são levadas em consideração, “mas a Vale tem demonstrado que pretende mudar a forma como descarta os rejeitos”. O fundo de investimento do banco central norueguês, o Norges Bank, chegou a sinalizar no início do ano passado que reveria sua posição de 1% na mineradora brasileira. Mas, passado um ano, não mexeu nas ações. O Norges Bank diz que não comenta investimentos específicos.

A Vale talvez passe a sofrer mais pressão dos investidores quando os atuais sócios majoritários deixarem de ter o controle, neste ano, segundo nova versão de seu acordo de acionistas, assinado em 2017. Nenhum deles poderá ter uma fatia superior a 25% do capital, empurrando a mineradora na direção de se tornar uma corporação com capital pulverizado — e sujeita a investidores ativistas.

Algum deles pode cobrar da Vale mais esforço para abraçar a economia de baixo carbono. É o que têm feito, por exemplo, os acionistas da petroleira BP, antiga British Petroleum, que mudou seu nome em 2000 prometendo se voltar para a energia renovável, mas não cumpriu o plano. As respostas internas a Brumadinho, segundo EXAME apurou, estão sendo feitas, mas é cedo para dizer se mudam a essência da companhia. Parte importante das respostas, até aqui, está em mais controles e comitês independentes — propostas similares às feitas após o desastre de Mariana. A Vale criou novos comitês, uma diretoria de segurança e excelência operacional, e reduziu o peso dos resultados financeiros nos bônus executivos, de 60% para 40% do total pago.

A petroleira BP (ex-British Petroleum): cobrança dos investidores por plano de sustentabilidade mais efetivo | Universal Images Group/Getty Images

Em dezembro, em encontro com investidores em Londres, o presidente Eduardo Bartolomeo definiu as prioridades de sua gestão na Vale. “Em primeiro lugar vem a reparação de Brumadinho. O segundo ponto é garantir que nossas barragens sejam seguras. Em terceiro, precisamos trazer de volta os volumes de produção de minério de forma sustentável. E, por último, devemos ter disciplina na alocação do capital.” Bartolomeo não deu entrevista a EXAME — quem fala por Brumadinho, segundo a Vale, é o diretor de reparação. É um sinal de que a Vale leva a reparação de Brumadinho a sério, mas talvez não o suficiente para se transformar em uma nova empresa. 

Com reportagem de Natália Flach


OS BRASILEIROS SOB RISCO SÃO 12 MILHÕES

Apesar desse número espantoso e de os problemas se repetirem ano a ano, as políticas públicas de precaução continuam insuficientes | André Jankavski

Temporais no Espírito Santo: nove mortos e mais de 10 500 pessoas desalojadas | Adriano Zucolotto/Espirito Santo State Government /AFP

As tragédias ocorridas nas barragens de Brumadinho e Mariana foram gravíssimas, mas, pelo menos por enquanto, seguem como exceções dentro do setor de mineração brasileiro. Porém, fenômenos comuns e previsíveis, como as chuvas de verão, continuam fazendo estragos ano após ano. As chuvas que caíram entre a quinta-feira 23 e a segunda-feira 27 de janeiro em Minas Gerais causaram mais de 50 mortes e desabrigaram 18 000 pessoas. No Espírito Santo, nove pessoas morreram em 11 dias de chuva e outras 10 500 não tinham a possibilidade de voltar para casa. Durante o verão, o risco de que novos desastres como esses ocorram em diversas regiões do Brasil é sempre alto.

O país ainda não conseguiu criar uma cultura de prevenção a fenômenos climáticos. “Estamos fracassando permanentemente. Gerir e identificar os riscos são coisas complexas e não temos um mapeamento significativo”, diz Fernando Rocha Nogueira, coordenador do Laboratório de Gestão de Riscos da Universidade Federal do ABC. Logo, os prejuízos só aumentam. Um estudo do Centro de Estudos e Pesquisas em Engenharia e Defesa Civil, ligado à Universidade Federal de Santa Catarina, calculou que o Brasil perde, em média, 7 bilhões de reais ao ano com danos causados por enchentes, cheias, desmoronamentos, entre outros problemas.

Uma tentativa de mudar esse cenário foi feita em 2011 com a criação do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Em 2018, o órgão calculou que 8,3 milhões de pessoas estavam expostas a riscos de deslizamentos de terra, inundações e enxurradas. Algumas cidades se destacaram negativamente nesse aspecto: Salvador tinha 46% dos cidadãos vivendo em áreas de risco, cerca de 1,2 milhão de pessoas. São Paulo ficou em segundo lugar em número de pessoas expostas: 674 000. No caso de barragens, um relatório da Agência Nacional de Águas estima que 3,5 milhões de pessoas vivam em cidades onde existem diques com risco de rompimento — a soma de brasileiros sob perigo, portanto, sobe para quase 12 milhões.

O Cemaden tenta reduzir o estrago monitorando 958 cidades. Um exemplo é o acompanhamento de 3 100 pluviômetros automáticos espalhados por esses municípios. O instrumento é tido como o melhor para prevenir desastres. Quando chove muito, os aparelhos mandam informações a cada 10 minutos a um sistema que emite alertas para autoridades e para a população em área de risco. No entanto, o próprio Cemaden admite que isso é insuficiente. “O Japão, que é um país do tamanho do estado de São Paulo, tem mais que o dobro de pluviô-metros”, diz Regina Alvalá, diretora do órgão. Para piorar, a conservação é precária. Por falta de dinheiro, apenas seis em cada dez pluviômetros têm manutenção anual. O recomendado são duas intervenções ao ano por aparelho. “Precisamos de 22 milhões de reais para a manutenção mínima e recebemos 25% desse valor”, diz Regina. Enquanto isso, as chuvas e os desastres continuam janeiro após janeiro.


O DIFÍCIL RECOMEÇO

As histórias de três vítimas em Brumadinho revelam a lentidão no resgate, a carência diária e o uso de remédios

Geraldo Resende, 62 anos | Germano Lüders

“Hoje nossa vida é esperar. Queremos encontrar o corpo da minha filha. Os bombeiros estão procurando com boa vontade, trabalham com chuva e sol, eu agradeço. Perdi minha filha e meu genro. Tenho dois netos que ficaram órfãos de pai e mãe. É uma perda sem limite. Eles saíram para trabalhar sãos e satisfeitos e foram enterrados vivos. Ela fez faculdade de direito e administração, trabalhava na Vale como analista. Dói muito, a Vale podia ter tido mais cuidado, porque eles gostavam de trabalhar na Vale, mas no final deu nisso. Os meninos estão agora com 1 ano e 10 meses. É uma tristeza ver que não são a mãe e o pai deles que estão cuidando. Ao mesmo tempo, eles

são a alegria que temos.”


Vera Lucia Simão Lopes, 75 anos | Germano Lüders

“Estou saindo da consulta agora, a médica me passou um remédio controlado porque não estou conseguindo dormir. Muitos conhecidos e vizinhos morreram. Moro no Parque da Cachoeira [um dos bairros mais afetados pelo desastre], é muito barulho na minha casa, a noite toda tem caminhão. O ritmo mudou, estou com pressão alta, o coração acelerado.

No meu quintal tenho vários pés de fruta, que não sei se posso usar. O principal problema para mim é a água. Lá eu usava poço artesiano. Agora a Vale entrega água toda semana. Mas não é suficiente, e a água da Copasa é cara. Então, às vezes, uso do poço e corro risco.”


Elizângela Gonçalves Maia, 40 anos e Núbia Natália Gonçalves, 35 anos | Germano Lüders

“Minha prima morreu na barragem. A estrutura da minha casa ficou abalada e tive de sair de lá. Até agora já foram duas pousadas e agora estou nesta casa. Estou aqui desde agosto, e já vou ter de sair, porque o proprietário pediu o imóvel. Minha casa era simples, mas era minha. Vivemos o dia 25 a cada dia, dá crise de desespero. A Vale não tem consideração. Eles estão fornecendo transporte para atendimento de saúde de quem foi atingido. Mas agem como se fosse uma mordomia. Agora tomo remédio para dormir. Quando preciso de transporte para atendimento psicológico, tenho de provar para eles que irei mesmo ao psicólogo. Ainda se acham no direito de exigir provas. É humilhante.”


ALÉM DA MINERAÇÃO

Romeu Zema encarou a tragédia de Brumadinho em seu 25o dia como governador. De lá para cá, tenta cortar a dependência do estado da atividade que lhe dá o nome | Mariana Desidério

Romeu Zema: “Queremos que a Vale invista em dezenas de projetos nas áreas de saúde e educação” | Bruno Rocha/Fotoarena

Quais são os principais impactos do desastre da Vale para Minas Gerais?

Temos impactos negativos humanitários, que todos sabem, e uma cidade traumatizada. Tivemos ainda o lado econômico. Minas Gerais sentiu muito. Ficamos em último lugar, entre os estados, em termos de crescimento econômico. O reflexo disso é grande porque há toda uma cadeia que se movimenta por trás da atividade de mineração. E tivemos também o lado bom, se é que podemos dizer assim, que são as lições tiradas da tragédia. Posso dizer que serei o último governador a enfrentar esse tipo de fato. Porque agora realmente foram tomadas medidas para eliminar esse risco. Em dois ou três anos, as barragens a montante em Minas Gerais terão sido descomissionadas. A tragédia também serviu para mudar a cultura das empresas, das auditorias e dos órgãos fiscalizadores.

O que mudou nos órgãos fiscalizadores de Minas Gerais?

Nós tivemos cinco CPIs sobre o caso, o que na minha opinião foi até um excesso. E o que se viu foi que a Secretaria do Meio Ambiente, em períodos anteriores, e estou falando aí de dez, 15 anos atrás, fez vista grossa para alguns procedimentos, o que pode ter contribuído para que isso acontecesse. As coisas hoje são tratadas com mais seriedade e mais critério, algo que não acontecia no passado.

Como está sendo o contato do governo com a Vale?

Em alguns momentos, a empresa reconheceu que precisava ajudar, como fez com a cidade de Brumadinho. Vejo que a Vale até se excedeu ao pagar um salário mínimo a todas as pessoas da cidade. A empresa também está com dezenas de máquinas mobilizadas à procura dos que não foram encontrados. Mas está sendo muito dura na compensação ao estado, para além das providências reparatórias e indenizatórias, que são medidas mais fáceis. Nós estamos negociando com a Vale a compensação ao estado, para que a empresa execute obras de infraestrutura que compensem a população mineira. Queremos que a empresa invista em dezenas de projetos nas áreas de saúde, educação, saneamento e infraestrutura rodoviária. Temos visto a Vale bastante reticente.

De quanto seria essa compensação?

O valor ainda está sendo negociado. A Vale fez uma provisão no seu balanço, mas nós queremos ir um pouco além. A empresa tem condição de fazer isso, e na minha opinião ela ficaria muito bem vista por estar realmente reconhecendo esse erro. Nós temos como prazo limite o mês de fevereiro. Se a negociação não se encerrar até lá, infelizmente vamos ter de partir para a judicialização. Como não é estado, a Vale vai ter liberdade e agilidade para contratar. Não vai ter a criação de uma fundação como a Renova, como aconteceu em Mariana, que tem caminhado a 20 quilômetros por hora. Quem hoje viu alguma benfeitoria da Renova? Quase ninguém.

O que o senhor tem feito para reduzir a dependência da mineração no estado? 

Em 2019, assinamos protocolos de intenção de investimento no valor de 56 bilhões de reais. Uma parcela que não é tão expressiva veio do setor de mineração. Muita coisa vem de outros setores, principalmente de energia fotovoltaica. Além disso estamos trazendo mais uma fábrica de celulose, temos fábricas de cerveja em construção, de embalagens, e nosso agronegócio cresce cada vez mais. Temos uma agricultura de ponta que não deve em nada para outras regiões. A mineração continua existindo, é relevante, mas o crescimento de outras atividades vai fazer com que no longo prazo ela perca participação.

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