Revista Exame

O futuro está nos dados para quem quiser governar bem

Como as empresas privadas, o setor público agora cruza informações e estatísticas para se antecipar a demandas da população. Nasce, assim, um novo jeito de governar

Mais informação para o usuário: com um aplicativo instalado no telefone celular, os usuários do transporte público de São Carlos sabem onde está o ônibus que eles estão esperando e em quanto tempo o veículo passará pelo ponto (André Lessa/EXAME)

Mais informação para o usuário: com um aplicativo instalado no telefone celular, os usuários do transporte público de São Carlos sabem onde está o ônibus que eles estão esperando e em quanto tempo o veículo passará pelo ponto (André Lessa/EXAME)

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Da Redação

Publicado em 9 de janeiro de 2014 às 07h54.

São Paulo - Em Memphis, nos Estados Unidos, a polícia pode chegar a uma esquina perigosa antes de ter sido chamada pela vítima de um assalto ou por uma testemunha para atender uma ocorrência de furto. Em São Carlos, no interior paulista, o celular avisa o usuário de transporte coletivo sobre quantos minutos seu ônibus levará até chegar ao ponto.

Na Noruega, o cruzamento de informações dos bancos de dados públicos sobre aposentados e pensionistas ajuda a planejar melhorias no sistema de saúde. São, todos eles, exemplos de uma nova realidade na gestão pública moldada pelo avanço da tecnologia. De um lado, especialmente nos centros urbanos, é possível capturar um volume crescente de informações sobre tudo o que está acontecendo nas ruas por meio de câmeras e de sensores eletrônicos.

De outro lado, há uma intimidade cada vez maior na relação cotidiana do Estado com os cidadãos — e ela resulta na acumulação de toda a sorte de informações sobre cada um de nós. A carteira de vacinação da infância, os dados fornecidos para a emissão de passaporte e a declaração de imposto de renda são fontes de conhecimento do perfil, do histórico e dos hábitos do cidadão. Até há pouco tempo, os órgãos públicos, enredados na burocracia, pouco proveito tiravam desse acervo. Mas o cenário começou a mudar.

À moda das empresas privadas, que se esmeram para desenvolver produtos de acordo com o gosto da freguesia, governos têm feito o mesmo, tomando como ponto de partida o conhecimento arquivado sobre os indivíduos e o que se passa com eles. Os “produtos” dos governos são os serviços públicos, os “clientes” são os cidadãos — e o “lucro” pode ser o bom resultado nas urnas. Do ponto de vista das empresas privadas, é uma lógica simples. Mas, no poder público, equivale a uma revolução de conceitos.

Afinal, os governantes costumam ta­tear­ no escuro para adivinhar o que a população quer. Isso ficou evidente nas semanas que se seguiram aos protestos populares de junho de 2013 no Brasil, quando se viram reações como a do titular da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho: ele confessou que estava com dificuldade para entender o que queriam os manifestantes. Não por acaso, estudiosos da gestão pública tratam o fenômeno do uso de bases de dados como a gênese do governo do futuro.

Tecnologia e informação são os dois componentes-chave desse novo jeito de governar. Não se trata de apenas entupir repartições públicas com computadores para que eles sirvam para armazenar pilhas de estatísticas. Isso já se faz há décadas — e ter computadores à mão não necessariamente torna uma repartição pública mais eficiente.

O passo evolutivo está no uso prático e inteligente dessas informações. Uma cidade que ilustra a nova realidade é Memphis, localizada no estado americano do Tennessee. A polícia local recebe uma média de 2 milhões de chamadas por ano. Cada telefonema para denunciar um crime contém inúmeras informações — qual crime foi cometido, em que região da cidade ocorreu, descrição física dos suspeitos, horário da chamada.


O que acontece com esses dados? Em lugares em que a administração pública ainda não deu o passo evolutivo, eles viram apenas estatística. Em Memphis, passaram a balizar a ação do órgão público. Com base em dados que antes apenas armazenava, a polícia mudou a distribuição de viaturas e policiais na cidade.

Esse cruzamento de um grande número de informações por meio de softwares de análise é genericamente chamado de big data. Foi assim que fez cair 30% o número de crimes na cidade nos últimos seis anos. A polícia também pode ter acesso à lista de alunos que não foram à escola do bairro.

Quando muitos jovens cabulam aula no mesmo dia, o risco de haver pequenos furtos nas proximidades normalmente cresce. É um sinal de que é bom a polícia passar por ali — e muitas vezes isso faz com que um policial chegue a tempo de evitar que um delito ocorra.

Perguntar é preciso

“A base desse novo modo de pensar a gestão pública é muito simples: perguntar às pessoas o que elas querem”, disse a EXAME Guy Peters, professor da Universidade de Pittsburgh e uma das maiores autoridades mundiais em administração pública.

Afinal, qualquer pessoa — até os governantes — pode supor que a população quer educação, saúde, transporte e segurança melhores. Mas que tipo de saúde se quer? E em que momento um tema como saneamento básico assume o topo das prioridades dos cidadãos?

Os governantes costumam achar que vitórias nas urnas dão a eles também a prerrogativa de antever o que o público deseja. Não poderiam estar mais equivocados. “Como é impossível atender a todas as demandas, é preciso investigar os dados para definir prioridades”, diz Peters. Foi esse espírito que, em 2011, ajudou o município de São Carlos, no interior de São Paulo, a derrubar o número de reclamações sobre o transporte coletivo da cidade.

A queixa contra os atrasos, uma das mais comuns relacionadas ao serviço na cidade há dois anos, caiu 70% desde então. Em 2011, os ônibus de São Carlos já contavam com um sistema de monitoramento, utilizado para o controle da frota. Esse sistema passou a “conversar” com um aplicativo de telefone celular desenvolvido pela empresa de tecnologia da informação Criar.

O aplicativo informa a localização, o destino e o tempo em que o ônibus estará no ponto do usuário. Na prática, o passageiro sabe que o ônibus está chegando antes de avistá-lo.


Ouvir as reclamações é algo antigo, mas cruzar bancos de dados para fazer disso um norte para a administração pública é um avanço recente. Nada que o setor privado já não tenha entendido há mais tempo. No início dos anos 90, Christopher Hood, professor da Universidade de Oxford, cunhou o termo New Public Management, ou Nova Gestão Pública.

Hood enxergou um incipiente movimento em governos mundo afora que, influenciados pelos processos adotados no setor privado, puseram na ordem do dia a busca por maior eficiência e qualidade nos serviços públicos. Mas só agora, duas décadas depois, com o desenvolvimento das comunicações e o surgimento de tecnologias mais apropriadas, é que os governos têm conseguido multiplicar tais ações.

Nos Estados Unidos, estima-se que o uso do big data no setor público possa reduzir os gastos do governo em 380 bilhões de dólares por ano, segundo pesquisa realizada pela Tech­America Foundation, instituição de estudo ligada a grandes empresas de tecnologia da informação.

Ouvir e interpretar

Não basta ouvir — e, ao ouvir, é preciso fazer com que manifestações aparentemente desconexas dos cidadãos se transformem em diagnósticos de demanda palpáveis. Em 2004, telefonemas para a NYC 311, a central de atendimento ao cidadão de Nova York, davam conta do incômodo causado por barulho nas ruas e carros estacionados em fila dupla.

Os telefonemas não eram denúncias contra grandes atividades criminosas, mas foi a isso que levaram: com base nessas informações, a polícia descobriu redes de casas noturnas clandestinas. “O call center monitora os desejos da população, mas é preciso interpretar os dados para poder antecipar-se às demandas”, diz Bernard le Masson, diretor de serviços públicos da consultoria Accenture em Paris.

A empresa elaborou um amplo estudo reunindo informações sobre algumas das principais iniciativas do gênero no mundo. No caso da prefeitura de Nova York, a criação do serviço permitiu juntar em uma só central os serviços de 300 diferentes agências governamentais. Na solução de Nova York — onde antes da central a demora apenas para a solicitação da troca de uma lâmpada de rua podia levar mais de 20 minutos e hoje se resolve em um único e breve telefonema —, a interação humana é essencial.

Em outros casos, a interação é desnecessária. A prefeitura de Boston, no estado de Massachu­setts, também nos Estados Unidos, adotou uma tecnologia que detecta buracos de rua por meio de um aplicativo instalado em telefones celulares. Quando um motorista, já com o aplicativo em seu celular, dirige pela cidade, o aparelho percebe pontos de trepidação acima do normal no asfalto.


Esse alerta é passado a uma central da prefeitura, que destaca uma equipe para recuperar a pista. Boston fecha 19 000 buracos de rua por ano. É uma lógica parecida com a que funciona no bairro Guajuviras, em Canoas, na Grande Porto Alegre, chamado “Bagdá brasileira”.

O número de homicídios no bairro caiu pela metade nos últimos três anos. Em 2010, Guajuviras ganhou sensores que detectam o som do disparo de uma arma num raio de até 3 quilômetros. A informação captada pelos sensores chega a uma central da polícia, que imediatamente envia uma viatura para verificar a ocorrência. 

Usar de maneira mais inteligente as informações que têm sobre nós é também uma forma de os governos melhorarem o gasto público. A Oxford Economics, consultoria econômica ligada à Universidade de Oxford, na Inglaterra, analisou dez países para saber o impacto que o aumento da eficiência dos governos teria sobre as contas públicas.

Se os governos desses dez países elevassem sua eficiência em apenas 1% ao ano de 2012 a 2025, eles economizariam um total de 2 trilhões de dólares. No Brasil, a economia seria de 122 bilhões de dólares, segundo a Oxford Economics. “Os governos têm hoje muita informação sobre as pessoas. Eles precisam identificar quais dessas informações são relevantes — o que é também uma maneira de ser eficiente”, diz Rolf Alter, diretor de governança pública da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), entidade que congrega 34 paí­ses, em sua maioria, desenvolvidos.

Afinal, eficiência na coleta de dados é mais do que amealhar o máximo de informações possível: é saber quais delas são de fato importantes para elevar o nível da gestão. “Não adianta melhorar os processos para guardar informações inúteis”, diz o senador Salvador Vega-Casillas, ex-ministro da Administração Pública do México de 2007 a 2011. O México foi premiado em 2011 pelo Banco Mundial por práticas de modernização da gestão pública, como o uso da tecnologia para acelerar a abertura de empresas. 

O avanço da tecnologia amplificou o uso que os governos fazem das informações para definir políticas públicas. A Noruega reformou toda a relação que tem com seus aposentados e pensionistas. Hoje, 22% da população norueguesa recebe aposentadoria ou algum tipo de pensão.

Nos últimos anos, o país criou uma plataforma na internet para concentrar toda a relação do poder público com esse estrato da população. Primeiro veio a melhora no atendimento: requisições de aposentadoria, que podiam levar mais de três meses, agora podem ser feitas em minutos.

O benefício adicional — e aqui está a impressão digital do “governo do futuro” — é que o governo passou a contar com dados mais precisos e atua­lizados de seus pensionistas para preparar o sistema de saúde para as próximas décadas. Esse acréscimo não é desprezível, especialmente quando se considera que, em 2050, cerca de 40% dos noruegueses estarão aposentados, segundo as projeções atuais.


“Saber usar as informações dos cidadãos para antecipar demandas deles é o Santo Graal da gestão pública no mundo atual­mente”, diz Geovani Fagunde, sócio da consultoria PwC.

Quanto mais a tecnologia — e a qualidade das informações — evoluir, mais assertivo será o diagnóstico das demandas dos cidadãos. Só na área da saúde, essa evolução poderia significar uma economia de 450 bilhões de dólares anuais em despesas governamentais em todo o mundo, nos cálculos da consultoria McKinsey. Já há iniciativas nessa linha.

A Escócia, por exemplo, criou um programa que cruza dados da população, como idade, hábitos alimentares e histórico de doenças familiares, para implementar programas de saúde preventiva — o objetivo é diminuir os gastos com procedimentos mais caros, como cirurgias e tratamentos complexos. “À medida que os dados clínicos ficam mais precisos, é possível prever melhor a chegada de doenças e, assim, desenvolver ações de prevenção”, diz Rick Ratliff, diretor global da área de serviços de saúde da Accenture.

Levantar, armazenar e cruzar informações para fazer disso um instrumento de gestão pública pode soar como uma conversa sobre o sexo dos anjos para muitos governantes. Essa leitura depreciativa ganha força quando a eles é apresentada a conta pelo trabalho. Não é uma iniciativa barata — nem aparece tanto quanto colocar asfalto numa rua, por exemplo (o que parece tornar mais difícil a transformação dela em votos).

A mudança no sistema de gestão das aposentadorias da Noruega saiu por mais de 500 milhões de dólares. Em Nova York, cada telefonema para o NYC 311 custa ao poder público cerca de 2,50 dólares — o custo do serviço chega a 50 milhões de dólares anuais. O que não entra na matemática desses mesmos governantes é que a omissão também impõe uma conta elevada.

De acordo com uma pesquisa do Programa de Administração Pública da Organização das Nações Unidas, só 36% dos habitantes de um grupo de dez países, entre os quais o Brasil, estão satisfeitos com os serviços públicos que lhes são oferecidos. Há uma maioria de insatisfeitos. É bom que os políticos comecem logo a utilizar as ferramentas da tecnologia para melhorar os serviços públicos.

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