Revista Exame

O dinheiro acabou

Pela primeira vez em 11 anos o Brasil vai ter uma contração do crédito concedido a empresas e pessoas. Eis um lado perverso do processo de ajuste da economia brasileira

Os tempos em que o país criava de 1 milhão a 2 milhões de empregos por ano ficaram para trás (Alexandre Battibugli/Exame)

Os tempos em que o país criava de 1 milhão a 2 milhões de empregos por ano ficaram para trás (Alexandre Battibugli/Exame)

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Da Redação

Publicado em 13 de agosto de 2015 às 10h08.

São Paulo — A fábrica da Honda em Manaus fez 1,1 milhão de motocicletas no ano passado — a metade do que saía de suas linhas de produção em 2011. O tombo pode ser explicado em uma palavra: crédito — ou, mais especificamente, a falta dele. Há quatro anos, havia fartura de dinheiro — os bancos financiavam a aquisição de motos em prazos que chegavam a 72 meses.

A situação agora é outra. De um lado, a piora da economia está fazendo as instituições financeiras aumentar as exigências na análise de risco antes de soltar o dinheiro. Ao mesmo tempo, o medo do desemprego e o endividamento diminuem o apetite dos consumidores. “Em 2011, 40% das pessoas que pediam financiamento tinham o crédito aprovado”, diz Paulo Takeuchi, diretor de relações institucionais da Honda.

“Hoje, só um quinto de quem pede empréstimo é atendido.” Segundo a Associação Nacional das Empresas Financeiras das Montadoras, o saldo de financiamento para veículos e motos deverá ficar próximo de 193 bilhões de reais em 2015 — 20% menos do que em 2012. O caso da Honda não é isolado.

A escassez de crédito é geral na economia brasileira. Segundo um estudo da consultoria Tendências, o estoque de todos os empréstimos mantidos para pessoas e empresas no país deverá fechar o ano em 3,2 trilhões de reais. Descontada a inflação, trata-se de uma diminuição de 0,8% em relação a 2014. Se as projeções se confirmarem, será a primeira queda nesse indicador nos últimos 11 anos.

De 2004 a 2012, o crédito cresceu quase 15% ao ano. A rápida expansão no período foi consequên­cia de uma série de reformas que ajudaram a diminuir o risco e a baratear o custo dos empréstimos. Um exemplo: a criação do crédito consignado na folha de pagamentos, com as parcelas descontadas diretamente do salário do trabalhador.

Outra foi a alienação fiduciária, que facilita aos credores a retomada de imóveis de devedores inadimplentes. Medidas como essas aumentaram os recursos que os bancos estavam dispostos a emprestar, contribuindo para estimular as vendas de bens antes inacessíveis a milhões de brasileiros, de computadores e TVs de tela plana a imóveis. 

No passado recente, o crédito foi um combustível para o crescimento — seu enxugamento, agora, é mais um dos sinais de que o motor da economia brasileira está emperrado. Uma das tarefas da equipe econômica atual é conter a inflação, que já supera os 8% ao ano. A principal arma é o aumento de juros.

De dezembro a abril, a taxa básica de juro subiu 2 pontos, para 13,25% ao ano (a reportagem foi escrita antes do término da reunião do Copom no dia 2 de junho). Isso elevou os juros ao consumidor para 56% ao ano — o nível mais alto desde 2011. Segundo a Confederação Nacional do Comércio, os juros deverão superar os 61% ao ano até o fim de 2015.

É natural, portanto, que muitos consumidores agora evitem fazer um crediário para comprar um eletrodoméstico. Não é o único problema que atrapalha o consumo. Os tempos em que o país criava de 1 milhão a 2 milhões de empregos por ano ficaram para trás. O banco Credit Suisse projeta queda de 0,6% na população ocupada em 2015.

A renda dos trabalhadores poderá cair 1,5%, segundo as mesmas projeções. “O cenário econômico ruim faz com que os bancos e os consumidores se tornem avessos ao risco”, diz Flavio Calife, economista-chefe da Boa Vista Serviço Central de Proteção ao Crédito. A elevação do spread — isto é, a diferença entre o custo do dinheiro captado pelas instituições financeiras e os juros que elas cobram nos empréstimos — é um indicador do aumento da aversão dos bancos. O spread para pessoa física saiu de 21,5 para 24 pontos percentuais nos últimos seis meses. Para as empresas, aumentou de 8 para 9 pontos.

Produção e Emprego em queda

Os efeitos da contração já estão sendo sentidos. Segundo a Boa Vista, a demanda por crédito caiu 10% nos 12 meses encerrados em abril. Resultado: estragos no comércio e na indústria. Os fabricantes de eletrodomésticos, um dos setores que mais foram irrigados pelo crédito na fase boa, deverão vender 5% menos neste ano.

Na Whirl­pool, maior fabricante de geladeiras do país, dona das marcas Brastemp e Consul, a produção recuou 15% de janeiro a abril em comparação com o mesmo período do ano passado. “É o pior resultado dos últimos dez anos”, diz Armando do Valle, vice-presidente de relações institucionais da empresa.

No ano passado, as vendas da Whirlpool já haviam declinado 4%. A queda da produção ainda não levou a empresa a demitir, mas mesmo assim seu quadro de pessoal está sendo reduzido. O que a Whirlpool faz é não repor as saídas. Assim é que já cortou 2 600 dos 22 000 funcionários que tinha no início de 2014. “Como não vemos melhoria no mercado, essa política deverá continuar ao longo do ano”, diz Valle.

A contração do crédito não causa só a diminuição do consumo. Ela também aperta as condições que as empresas dispõem para se financiar. De acordo com a consultoria Tendências, o estoque de crédito para pessoas jurídicas deverá cair 1,4% neste ano. Empréstimos para capital de giro — fundamentais para muitas firmas sobreviverem — deverão cair 4,5%.

Entre as fontes mais ameaçadas estão os recursos direcionados do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). De 2008 até o ano passado, a instituição repassou cerca de 500 bilhões de reais para empresas. Com a chegada de Joa­quim Levy ao Ministério da Fazenda, essa torneira começou a ser fechada. Um dos setores afetados é o de caminhões.

Por muitos anos, as vendas dessa indústria dependeram de juros subsidiados pelo BNDES. No fim do ano passado, as bondades acabaram. O banco, que antes financiava até 100% do preço de um caminhão com juros abaixo do mercado, agora só libera de 50% a 70% do valor. Resultado: queda de 40% nas vendas no primeiro quadrimestre de 2015 em comparação com 2014.

Isso levou as montadoras a procurar alternativas. A Iveco, do grupo Fiat-CNH, está oferecendo juros abaixo da média de mercado para a fatia não financiada pelo BNDES. “Queremos neutralizar os efeitos do encarecimento do crédito”, diz Jucivaldo Feitosa, diretor comercial do Banco CNH. A participação do financiamento próprio na venda dos caminhões passou de 45% para 62% desde o ano passado.

O crédito mais restrito vai ter impacto também nas concessões de infraestrutura que o governo pretende lançar até o fim do ano. Um levantamento da consultoria Bain & Company projetou a alta nos custos financeiros para o setor rodoviário, que deve se refletir em pedágios mais caros nas rodovias que o governo deverá leiloar até o fim do ano.

Se em 2012 o retorno mínimo para o acionista precisava ser de 12,8%, em 2015 deverá ser de 14,2%. “Ou o pedágio ficará mais caro nas estradas que vão a leilão, ou o prazo das concessões precisará ser ampliado para que o investidor se sinta atraído”, diz Fernando Martins, sócio da Bain.

Reduzir o consumo das famílias é o principal meio que o governo tem para derrubar a atividade econômica. Um estudo dos economistas do Banco Central André Minella e Nelson Souza-Sobrinho quantificou o efeito: quase dois terços da queda do produto interno bruto provocada pela elevação dos juros decorrem da redução das compras das famílias.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o PIB do primeiro trimestre encolheu 0,2% em relação ao trimestre anterior e 1,6% na comparação com os três primeiros meses do ano passado. E o que mais ajudou a puxar para baixo o resultado? O consumo das famílias, que contraiu 0,9%. Trata-se do pior resultado em 12 anos.

“O ajuste que a economia brasileira está passando — e que está derrubando o crédito — está atingindo a demanda e, principalmente, a das famílias”, diz o pesquisador Vinícius Botelho, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas. O momento é doloroso. E o ajuste, inevitável.

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