Daniel Randon, presidente da Randoncorp: “Precisamos manter nossa história, mas temos de nos conectar com o novo mundo” (Germano Lüders/Exame)
Repórter de Negócios
Publicado em 25 de abril de 2024 às 06h00.
Última atualização em 26 de abril de 2024 às 17h19.
Um detalhe passa quase despercebido no piso de um prédio de 1.000 metros quadrados no gigantesco parque industrial da Randoncorp, a maior fabricante de reboques da América Latina, em Caxias do Sul, cidade a 130 quilômetros de Porto Alegre. Bem na entrada do espaço, no chão, azulejos recebem, quase despretensiosamente, o desenho da primeira logomarca da Randon, lá dos meados dos anos 1960. Daquela época, naquele prédio, só restou o piso. Ele é, de certa forma, o encontro entre o passado e o futuro na indústria gaúcha que completa 75 anos em 2024.
Nos últimos anos, esse espaço, que já foi o escritório-sede da companhia, passou por uma reforma para receber a operação física da Conexo, o programa de inovação aberta da Randoncorp. Por ali, dezenas de startups se encontram num ambiente em que é possível trabalhar no modelo de coworking, assistir a palestras e fazer reuniões. Até o banheiro tem ares de inovação. Unissex, ele usa uma pequena porção de solução química biodegradável para higienizar o vaso sanitário, sem utilizar nem sequer uma gota de água da descarga.
A Conexo é o exemplo físico de uma transformação de mentalidade pela qual a Randoncorp passou nos últimos oito anos. Na dianteira dessa mudança está a inovação. Entre 2014 e 2016, abalada pela recessão econômica e por uma crise que atingiu em cheio o setor de caminhões após políticas fiscais que inflacionaram a demanda nos anos anteriores, a companhia viu sua receita cair quase pela metade.
Na época, o então vice-presidente de administração e finanças Daniel Randon — filho de Raul Randon, um dos fundadores da indústria — entendeu que era a hora de virar a chave.
“As crises ajudam as empresas a rever conceitos”, diz Daniel, hoje presidente da Randoncorp. “Passamos a entender mais nossas dificuldades, estudar sobre inovação e trazer startups para dentro de casa.” O movimento acabou posicionando a empresa como uma das primeiras a aderirem a programas de inovação corporativa, hoje prioridade número 1 na pauta de praticamente todas as indústrias do país.
A maior prova de que o assunto está em alta pode ser obtida pelos números de empresas brasileiras que criam seu corporate venture capital (CVC), um dos estágios mais avançados da inovação corporativa. Nunca essa modalidade de investimento, em que as grandes corporações fazem o aporte em startups que podem resolver gargalos do negócio, esteve tão em alta. De 2020 para cá, o número de companhias com esses programas mais do que dobrou, passando de 36 para 83, segundo levantamento da ABVCap, a associação brasileira de venture capital. O dinheiro movimentado também atingiu números recordes recentemente. Em 2022, foram cerca de 900 milhões de dólares. No ano passado, houve uma queda que estabilizou o aporte nos patamares anteriores à pandemia. Isso não significa, porém, um arrefecimento nos investimentos. “Em 2022, muitas companhias anunciaram seus programas de CVC, e o anúncio costuma vir acompanhado dos primeiros aportes”, diz Priscila Rodrigues, presidente da ABVCap.
“Acontece que, no capital privado, o processo de investimento é lento porque identifica-se uma oportunidade, estuda-se a startup e depois negocia-se, isso tudo demora. Não significa que o apetite diminuiu.” Fato é que 15% do dinheiro para startups veio diretamente de corporate venture capital no último ano. “Quando 15% do volume de aportes vem de programas de investimento de companhias, já podemos dizer que se trata de uma iniciativa extra para financiar o ecossistema de inovação”, diz Victor Harano, chefe de pesquisa da consultoria Distrito.
Na visão do especialista, os corporate venture capitals chegam a 2024 em sua fase crucial: a de separar o joio do trigo. “A linha que define se eles continuarão numa empresa ou não são os primeiros três anos”, diz. “Depois desse tempo, a grande parte é descontinuada ou muda de perfil. Estamos nessa fase no Brasil, a que separará o CVC que vai virar uma operação mais estruturada daquele que deve deixar de existir.” Esse movimento pode ser visto, atualmente, nos Estados Unidos, por exemplo. Professor de Stanford que estuda corporate venture capital, Ilya A. Strebulaev percebeu que 31% dos CVCs por lá foram dissolvidos entre 2020 e 2023. Por trás desse número, há também a falta de compreensão das lideranças dessas companhias sobre o que esperar de um programa de investimento em startups.
Com quatro anos de corporate venture capital na bagagem e outros quatro anteriores trabalhando com inovação, pode-se dizer que a Randon já passou por essa seleção natural — e sobreviveu. Criada no início de 2020, antes mesmo da pandemia, a Randon Ventures já investiu 25 milhões de reais em sete startups de áreas como logística, seguros e finanças. Na prática, a indústria apostou em empresas que poderiam, de alguma forma, dar algum retorno ou agregar algum serviço para a companhia. A TruckHelp, por exemplo, primeira investida da empresa, é um marketplace que conecta motoristas de caminhões com oficinas mecânicas e autopeças, uma das principais verticais da Randon. Já a Abbiamo, de Santa Catarina, recebeu 2,5 milhões de reais da Randon e é um dashboard que permite ao cliente final ver com mais facilidade em que fase da rota andam suas compras. A logística se conecta com o caminhão, que se conecta diretamente com a Randon.
O maior exemplo de interação entre startups e o gigante gaúcho, porém, está na Sirros IoT, uma empresa de Novo Hamburgo que digitaliza indústrias com inteligência artificial e internet das coisas. Ela foi contratada em 2018 pela Randon para instalar sensores e deixar algumas plantas fabris mais inteligentes. Era uma fornecedora como qualquer outra, a não ser pelo fato de ser uma startup. Até então, a companhia havia trabalhado com poucas dessas empresas de tecnologia, e todas no ambiente administrativo, como a Gupy, de recrutamento. Foi a primeira vez que uma startup interagiu diretamente com o core business da Randon: a produção fabril. “E foi muito difícil, porque, quando uma grande empresa vai contratar um fornecedor, para validar a compra o compliance quer muitas informações que startups não têm”, diz Daniel Ely, vice-presidente da Randoncorp responsável pelo braço de serviços financeiros e produtos digitais da companhia.
O caminho foi fazer uma mudança geral na cultura da Randon, que passou a ter um processo específico de contratação de startups. Mais: a indústria percebia ali que colocar empresas menores, tecnológicas e inovadoras para dentro de casa poderia ser um bom negócio. Aos poucos, a Sirros IoT deixou de ser apenas uma fornecedora. Começou a testar e a validar novos produtos e tecnologias nas fábricas da Randon, e a entender seu modelo de negócios, graças ao gigante de autopeças e reboques. “Foi por causa da Randoncorp que percebemos que nosso cliente era a grande empresa”, diz Diego Schlindwein, um dos fundadores da startup que fornece serviços atualmente para 30 companhias de larga escala. Não deu outra: em 2022, a Randon anunciou que estava virando sócia da startup junto com a maior fabricante de aço do mundo, a ArcelorMittal.
Ao acompanhar o desenvolvimento da Sirros, a Randon percebeu que sua força no ecossistema de inovação não estava apenas no dinheiro, mas também no conhecimento e na estrutura que poderia oferecer a essas empresas de tecnologia. Nessa toada, a empresa anunciou em março que passará a apoiar startups com aceleração e mentorias, além do investimento. Algo parecido ao que faz a Ambev. “Nós temos muitos ativos além de dinheiro para dar às startups. Sentar com o VP da Ambev por duas horas e tirar dúvidas tem muito valor”, disse Luciana Sater, head de investimentos da Ambev, num evento sobre CVC em 2023.
No fim das contas, a estratégia de agregar novos serviços e startups no portfólio de produtos oferecidos pela Randon tem um objetivo claro: aumentar a receita. É um movimento que tem ganhado adesão nas indústrias brasileiras. A Ambev, por exemplo, tem um serviço de delivery para chamar de seu, o Zé Delivery. Já a Gerdau investe na Brasil ao Cubo, startup catarinense que faz construção modular com blocos de concreto e aço pré-moldado. “São indústrias tradicionais que enxergam na tecnologia a possibilidade de mexer em seu modelo de negócios, na interação com clientes e nos processos produtivos”, diz Priscila Rodrigues, da ABVCap. No caso da Randoncorp, existe há décadas um braço de serviços financeiros, com consórcios e seguros. Eles ficam agora mais ricos com novos produtos a serem oferecidos para o cliente que vai lá comprar um reboque. Para ter uma ideia, até software a Randon vende hoje em dia. No final de 2022, a empresa comprou a DBServer, uma startup que desenvolve softwares para a indústria por 23 milhões de reais. Também é possível alugar veículos pesados com a Addiante, uma joint venture da autoindústria com a Gerdau.
Em 2023, esse braço de inovação e serviços financeiros faturou 704,6 milhões de reais, um crescimento de 57% em relação ao ano anterior. Se considerar também uma vertical de tecnologia avançada, na qual se concentra boa parte da pesquisa e do desenvolvimento de novos materiais, o faturamento já chega próximo aos 900 milhões de reais. Por ali, por exemplo, a Randon descobriu um jeito de produzir nanopartículas de nióbio em larga escala, além de cuidar do Centro Tecnológico Randon, uma área de 92 hectares em Farroupilha, também na Serra Gaúcha, que serve como uma grande pista de teste para montadoras e fornecedores homologarem desde automóveis de passeio e veículos agrícolas até caminhões e implementos.
Mesmo para uma empresa com um processo de inovação corporativa já bem estruturado, há desafios pela frente. No último ano, a receita geral da companhia ficou em 10,9 bilhões de reais, uma redução de 2,4% em relação a 2022. É a primeira queda desde 2016, puxada por uma produção menor de caminhões no país e pelos efeitos do cenário econômico na Argentina, um mercado importante para a empresa. Para 2024, a meta é faturar entre 11,5 bilhões e 12,5 bilhões de reais. Seria um aumento, mas caso ele não venha resta saber se poderá ter impacto no braço de inovação na companhia ou se, assim como na crise da década passada, mais fichas serão apostadas nele. No caso da Randon, há o benefício de que a aposta em inovação já é uma estratégia de longo prazo. “É preciso desmistificar a ideia de que, por ser uma indústria tradicional, ela não é inovadora”, diz Harano, da Distrito. “Para uma empresa como a Randon estar onde está há 75 anos, é porque ela é inovadora desde sempre.” A fala se conecta, de fato, com a história da Randon. Nos anos 1950, os irmãos Hercílio e Raul Ancelmo Randon cuidavam de uma mecânica quando perceberam que os caminhões que desciam a serra carregados de madeira perdiam o freio. Inspirados em modelos europeus, desenvolveram um novo freio de ar até então inédito no Brasil que ganhou escala e foi por anos um dos produtos mais vendidos da empresa. “Eles identificaram um problema e foram atrás da solução”, diz o CTIO da Randoncorp, César Augusto Ferreira. “Foram os startupeiros de sua época.” A depender do legado, então, a inovação está garantida na Randoncorp.
Presidente da Randoncorp, Daniel Randon foi o responsável por colocar mais inovação no dia a dia da empresa | Daniel Giussani
Qual foi o ponto de virada que fez vocês investirem em inovação?
Geralmente, essa virada acontece quando as empresas percebem que a água começa a subir. Em 2015, o mercado de caminhões e semirreboques foi muito difícil. As produções reduziram para praticamente um quarto em relação a 2011. Foi o momento de rever questões e acelerar projetos. Trouxemos startups para dentro de casa.
É preciso haver uma mudança na relação entre fornecedor e empresa quando o fornecedor é uma startup?
Sim. As grandes empresas têm compliance, governança. Quando contrata um fornecedor, ele precisa ser bem estruturado. Mas nem sempre é o caso de uma startup. Então, mudamos nossos processos para aceitar mais startups como fornecedoras. Também investimos em pesquisa avançada. No ano passado, fomos a quinta instituição com maior número de patentes no Brasil. Em relação às empresas privadas, só ficamos atrás da Stellantis.
Uma transformação focada em inovação precisa ter apoio de todos os elos da cadeia: fornecedores, clientes, empresas e até governo. Como a Randon se posiciona?
Queremos ajudar a olhar e a investir no futuro. Precisamos manter nossa história, nossas indústrias e empresas, mas elas precisam se conectar ao novo mundo para verem novos negócios e demandas. E os clientes estão muito ligados a questões ESG, essa demanda existe.
Quais são os desafios?
O setor público precisa aprender a incentivar a inovação, e não só criar burocracias. Precisa tributar, mas não pode tirar a competitividade dos empreendedores.
Para que tipo de startup a Randoncorp olha?
Hoje, temos sete startups investidas diretamente. Outras 25 investidas por meio de fundos. E são 80 startups como fornecedoras. Desde o backoffice até o desenvolvimento de tecnologia. Em tudo que estiver ligado ao transporte, ao cliente, à logística e ao lado financeiro estamos de olho.
A Randon trabalha com um corporate venture capital tradicional, mas há novos modelos sendo testados por aí | Marcos Bonfim
❶ Nova estrutura
O fundo de CVC e venture building da petroquímica Braskem tem um cheque de 150 milhões de dólares e foi construído como uma estrutura independente e time próprio. Criado em 2022, já aportou 7 milhões de dólares em sete startups em economia circular, energia renovável e novos materiais.
❷ Dentro de casa
Para estar mais perto dos desafios do setor elétrico, o veículo da empresa de energia EDP fica dentro de casa. O CVC adota uma estratégia global e investiu mais de 340 milhões de reais desde que nasceu, há dez anos. Atualmente, reúne 39 startups ativas no portfólio, seis delas por aqui.
❸ Fora de casa
Cresce no mercado o modelo em que fundos de venture capital fazem a gestão dos CVCs para grandes companhias. É o caso da gestora Vox Capital, conhecida por investir em negócios de impacto. A gestora está no comando de estruturas do Einstein, da Copel e do Banco do Brasil.
A inovação corporativa ganha novos ares ao querer transformar a cidade inteira num polo de tecnologia | Daniel Giussani, de Porto Alegre*
Nem o sol escaldante numa sensação térmica de 41 ºC impedia um empolgado Daniel Randon de ficar circulando entre os pavilhões do South Summit Brazil 2024, que aconteceu em março em Porto Alegre. O presidente da Randoncorp é um dos bons exemplos de uma nova geração de líderes que estão focados em olhar para fora de seu negócio e em fazer a inovação transbordar para as comunidades. Além de cuidar da empresa que carrega seu sobrenome, Daniel preside o Transforma RS, um hub de empresários, universidades e políticos gaúchos que trabalham para deixar o estado mais tecnológico e competitivo. “O que entendemos nesses últimos anos é que, para conseguirmos ser realmente inovadores, toda a cadeia precisa querer inovar”, afirma.
O primeiro passo para uma região se tornar um polo de inovação começa, mesmo, nas universidades, quando elas criam seus parques científicos e tecnológicos. Foi assim pelo mundo, como o parque de Stanford, criado em 1951, embrião do Vale do Silício. Foi assim também aqui no Brasil, com a criação do Porto Digital, no Recife, e de parques como o Tecnopuc, em Porto Alegre, em 2002.
Agora a moda é criar bairros inteiros ao redor de centros de tecnologia. Fora do Brasil, o exemplo mais vivo talvez esteja em Barcelona, na Espanha, país-sede do South Summit. Por lá, há um distrito de inovação com 200 hectares de antigo solo industrial, onde mais de 1.500 empresas vinculadas a audiovisual, tecnologia da informação, energia, desenho e pesquisa científica se encontraram. Para ter uma ideia da dimensão — e do sucesso — do espaço, são mais de 90.000 empregos diretos gerados na cidade só por ali.
No Rio Grande do Sul, a principal iniciativa para criar um bairro de inovação é liderada pelo Instituto Caldeira, criado com o suporte de empresários como José Galló, ex-Renner, e Marciano Testa, do Agi. Fisicamente, está num galpão de 22.000 metros quadrados na zona norte de Porto Alegre, também num antigo distrito industrial. Com escritórios compartilhados, salas de reuniões e auditório, o espaço recebe diariamente dezenas de empresas e startups que vão até ali trabalhar e discutir tecnologia.
O projeto está dando tão certo que o instituto anunciou, durante o South Summit, a ampliação do espaço num investimento de 120 milhões de reais, que deve criar na região um distrito de inovação. A ideia é construir também prédios residenciais por ali e, dessa maneira, atrair “startupeiros” para morar nos arredores do Caldeira.
Ao que tudo indica, não é só Porto Alegre que está de olho no sucesso de Barcelona ao criar bairros inovadores. No Rio de Janeiro, um projeto capitaneado pela prefeitura chamado Porto Maravalley inaugurou, em abril, um hub para startups numa área de 10.000 metros quadrados até então degradada. Em Curitiba, um programa da prefeitura de incentivo a espaços inovadores chamado Vale do Pinhão tem feito com que hubs de tecnologia e construtoras olhem para o Rebouças, primeiro bairro industrial da cidade. A última novidade foi anunciada em março: um projeto privado com quês do Instituto Caldeira para reunir grandes empresas e startups num prédio de 12 andares. Exemplos de como as cidades estão correndo para serem os novos hubs de inovação do país.
*O repórter viajou a convite do South Summit Brazil 2024