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Batismo de fogo

A Argentina adotou medidas de isolamento rígidas e conseguiu controlar a propagação da epidemia. Agora, o desafio é reativar uma economia

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Trabalhador do Mercado Central de Buenos Aires, na Argentina: sucesso no combate à pandemia, desarranjo na economia  (Marcelo Endelli/Getty Images)

Trabalhador do Mercado Central de Buenos Aires, na Argentina: sucesso no combate à pandemia, desarranjo na economia (Marcelo Endelli/Getty Images)

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Marcia Carmo, de Buenos Aires, e Filipe Serrano

Publicado em 21 de maio de 2020 às, 05h30.

Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às, 12h58.

O presidente da Argentina, Alberto Fernández, não havia completado quatro meses no cargo quando anunciou, em 19 de março, a decisão de colocar todo o país em quarentena obrigatória para conter a propagação do novo coronavírus. Parecia uma medida exagerada. O país de 44 milhões de habitantes tinha pouco mais de 100 casos confirmados de covid-19 e registrava apenas duas mortes. Dois meses depois, o resultado é que a Argentina conseguiu desacelerar a proliferação do vírus e boa parte do país já retomou as atividades quando esta edição foi para a gráfica, em 18 de maio. Só a região metropolitana de Buenos Aires continuava em quarentena.

Mas até na capital uma parte das lojas já reabriu. O governo argentino diz que é cedo para afirmar que a epidemia está controlada — a quantidade de novos casos continuava subindo em maio. Mas os números do país surpreendem. Ao todo, eram 8.068 casos de covid-19 e 374 mortes quando esta edição da EXAME foi finalizada. É uma quantidade ínfima perto da dolorosa tragédia brasileira. No estado de São Paulo, que tem uma população equivalente à da Argentina, o número de casos era quase oito vezes maior (61.183). As mortes somavam 4.688, 12 vezes mais.

Professor de direito na Universidade de Buenos Aires, onde dava aulas até assumir a Presidência em dezembro, Alberto Fernández costuma explicar suas decisões projetando gráficos e estatísticas em um quadro branco diante das câmeras de televisão. O estilo professoral, sua voz pastosa e as aparições ao lado de governantes da oposição fortaleceram sua liderança durante a quarentena. Foi um batismo de fogo do novo presidente.

Com a crise, até a popular ex-presidente e atual vice Cristina Kirchner — que patrocinou a candidatura de Fernández — acabou ofuscada. “Alberto Fernández fortaleceu sua liderança antes do que esperávamos”, diz o analista político Pablo Knopoff, da consultoria Isonomía, de Buenos Aires. Parte disso tem a ver com a decisão de priorizar a saúde. Em suas falas, Fernández repete que existe jeito para o bolso, mas não para a morte. “Prefiro saber que as fábricas estão vazias porque os trabalhadores fizeram quarentena do que pensar que se ausentaram porque foram vítimas do coronavírus”, afirmou num pronunciamento.

As ações contra a pandemia têm o aval da população. Em abril, mais de 68% dos argentinos diziam aprovar o governo Fernández, um salto de mais de 10 pontos desde dezembro, de acordo com a consultoria Trespuntozero. As medidas do governo tiveram o respaldo de 80% dos argentinos no início da quarentena. O apoio seguia alto em maio (70%), segundo um levantamento das consultorias Rouvier y Asociados e Management & Fit (MyF).

“Os argentinos continuam achando o combate ao coronavírus uma prioridade. Mas agora vemos que a preocupação com a economia tem subido”, diz Ricardo Rouvier, presidente da Rouvier y Asociados. Já a diretora da MyF, Mariel Fornoni, diz que, quando perguntados sobre sua principal preocupação, 43% dos argentinos respondem que é a “pandemia” e 38% dizem que é a “economia”. Para ela, o apoio a Fernández é “volátil” e sua sustentação no tempo dependerá de as medidas contra o coronavírus continuarem dando bons resultados e de o dólar e a inflação não dispararem — o que é um risco concreto.

Alberto Fernández, presidente da Argentina: a aprovação a seu governo saltou para 68% da população durante a pandemia | Juan Mabromata/AFP

Apesar do sucesso no plano da saúde, a quarentena tem sido criticada por empresários e economistas que sinalizam a “falta de combinação” entre o isolamento preventivo e a cambaleante economia argentina. O país convive há nove anos com uma crônica combinação de inflação alta e estagnação, com alguns intervalos de estabilidade. Para empresários e economistas, o presidente precisa agora pensar num respirador também para a economia, que antes da covid-19 já se encontrava metida numa encruzilhada. Em maio, o país estava em contagem regressiva, com risco de cair em um default (calote) se não pagasse uma dívida de 500 milhões dólares com credores.

Seria o nono default na história recente do país, como observou o economista Daniel Artana, da consultoria econômica Fundação de Pesquisas Econômicas Latino-Americanas (Fiel, na sigla em espanhol). “Acredito que os credores estariam dispostos a aceitar de 45% a 50% de desconto. Mas se a Argentina não pagar os juros de três bônus que deveriam ter sido pagos em 22 de abril, o país entra em default”, diz Artana. Para ele, falta um programa econômico por parte do ministro da Economia, Martín Guzmán. “O governo ainda não apresentou um plano macroeconômico. Não existe sequer um orçamento para este ano”, diz.

A dívida é só um dos desafios do complicado labirinto econômico argentino. O país enfrenta uma disparada do dólar paralelo — que chegou a registrar diferença de 100% em relação à cotação oficial —, uma taxa de risco-país em torno de 3.000 pontos básicos (no Brasil a taxa era de 420) e uma inflação alta. Nesse ambiente, os argentinos que podem poupar correm para comprar dólares no mercado paralelo.

Na entrevista recente a uma rádio, o presidente Fernández questionou “para quê” as pessoas queriam comprar o dólar blue — principal referência do câmbio paralelo —, já que a economia estava parada. Peronista típico, o presidente disse ver uma conspiração quando o blue chegou a 127 pesos e o oficial valia cerca de 68 pesos. “Os credores têm como perturbar a economia interna, e muita gente na Argentina atua a serviço deles”, disse. A acusação foi uma provocação aos credores.

A Argentina tem um estoque de dívida de cerca de 68 bilhões de dólares sob jurisdição estrangeira com detentores de títulos do país, nos cálculos do economista Sebastián Taboada, da consultoria OJF & Asociados. Fontes do governo ouvidas pela EXAME sob a condição de anonimato dizem que o acordo com os credores é o caminho mais provável. A avaliação é que o impacto global da pandemia pode favorecer os argentinos.

Nas atuais condições, o país que oferece pagar um juro alto, mesmo com um desconto forte, acaba sendo valorizado. “A proposta da Argentina ainda não é suficiente para convencer os credores, mas, num contexto de taxas de juro mais baixas, a margem da oferta melhorou”, diz Juan Barboza, economista da equipe de pesquisas do Itaú BBA, responsável pela cobertura da Argentina.

EM ESTADO DE EMERGÊNCIA

O temor entre os empresários é que a economia continue caindo ladeira abaixo com a paralisação na quarentena e diante da ameaça de um novo calote. A consultoria econômica Fiel estima que a economia terá retração de 9% neste ano, mas reconhece que o tombo poderá ser ainda maior. Será o terceiro ano consecutivo de recessão, depois de uma queda de 2,5% em 2018 e de 2,2% em 2019. O Ministério da Economia calcula que a retração neste ano será em torno de 6,5% e o Fundo Monetário Internacional (FMI) estima uma queda de 5,7% do produto interno bruto. A contração é uma das maiores previstas na América Latina.

Buenos Aires em quarentena: o comércio fechado e as fronteiras bloqueadas ajudaram a conter a propagação do vírus | Marcelo Endelli/Getty Images

Os números mostram que a economia argentina está em estado de emergência. Em 2019, 38% da população vivia em condição de pobreza. A expectativa é que, com a pandemia, o índice chegue a 45%. No ano passado, o país enfrentou uma crise cambial no governo do ex-presidente Mauricio Macri e recorreu ao FMI para obter um empréstimo recorde de 57 bilhões de dólares. Desse montante, o país recebeu 44 bilhões.

O problema é que o governo não tem instrumentos para estimular a economia. O imbróglio da reestruturação da dívida faz com que os investidores pensem duas vezes antes de emprestar dinheiro ao país. Sem acesso aos mercados de capitais no exterior, a Argentina não tem de onde tirar recursos para salvar as empresas ou para dar benefícios aos trabalhadores. A saída tem sido ampliar a emissão de moeda com repasses e adiantamentos do Banco Central para o Tesouro Nacional, aumentando o volume de moeda em circulação — o que é equivalente a imprimir dinheiro.

Em março, abril e maio, a injeção somou 805 bilhões de pesos (cerca de 11,9 bilhões de dólares), uma cifra sem precedentes. É uma estratégia arriscada que tende a gerar ainda mais inflação no futuro e a piorar a já delicada situação. “Houve uma expansão muito forte da base monetária e há ameaça de aumento da inflação no segundo semestre. Isso pode desestabilizar a recuperação e a confiança dos agentes econômicos”, diz Pamela Ramos, economista da consultoria Oxford Economics, do Reino Unido.

Fábrica de automóveis na Argentina: com a produção paralisada, as exportações de veículos para o Brasil despencaram | Erica Canepa/Bloomberg/Getty Images

Desde o início do governo Fernández, a inflação vinha sendo controlada com medidas que dificultam a saída de capitais do país, segurando o câmbio oficial. Mas, num contexto de aumento de gastos, manter o equilíbrio fica difícil. Nos cálculos da equipe do Itaú BBA, a Argentina deverá terminar o ano com um déficit primário de 4,3% do PIB. É pouco comparado a outros países, mas o rombo será coberto quase integralmente pelo Banco Central. “Há um risco alto de a inflação subir, dependendo de como o Banco Central administrar a normalização da expansão monetária daqui para a frente”, diz Juan Barboza, do Itaú.

Após uma quarentena de sucesso, empresários e economistas passaram a pedir publicamente a mesma eficiência do governo Fernández na esfera econômica. A Associação Empresarial Argentina, que reúne companhias como o conglomerado industrial Techint e a empresa de comércio eletrônico Mercado Livre, fez um comunicado pedindo ao governo a volta ao trabalho, com uma produção organizada e segura, incluindo o distanciamento social entre os trabalhadores, e que seja evitado o default.

O empresário Eduardo Costantini, fundador do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba) e que tem investimentos nos setores de construção e de finanças, pediu ao governo que combata o “vírus inflacionário” e que o país volte a ter uma moeda forte e distribuição de renda. “Vivemos uma crise de confiança, que se prolonga sem uma solução de continuidade”, escreveu Costantini num artigo no jornal La Nación.

O setor privado espera que o governo adote na economia o mesmo empenho que tem feito para evitar a propagação do vírus. Empenho que até agora não foi detectado. “O governo organizou um conselho de infectologistas para combater a pandemia. Mas deveria ter incluído economistas. Faltou uma combinação”, diz Marcos Buscaglia, da consultoria econômica Alberdi Partners.

A quarentena começou no dia 20 de março com um Decreto de Necessidade e Urgência (DNU, equivalente a uma medida provisória), com base nas orientações do grupo de infectologistas. O plano incluiu a construção de oito hospitais modulares, a importação e a fabricação de respiradores artificiais, campanhas de conscientização e a distribuição de alimentos em favelas e bairros pobres, organizada por militares.

Os ministros da Segurança, Sabina Frederic, e do Interior, Wado de Pedro, chegaram a liderar bloqueios nas estradas para impedir que moradores de Buenos Aires seguissem viagem para suas casas de veraneio nos balneários do país. Em alguns casos, os próprios balneários fecharam as entradas. No dia 14 de maio, a Argentina tinha 8.000 leitos de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) disponíveis para tratar as vítimas da doença, segundo a infectologista Florencia Cahn, uma das conselheiras do presidente. “Temos 150 pacientes na UTI, nem todos em estado grave, e muitos leitos vazios. E é assim que queremos continuar”, afirma ela.

Uma amostra das dificuldades econômicas pode ser vista no setor automotivo. Nele, como em tantos outros, ocorreu o que o presidente chamou de “hibernação”. Principal pilar da balança comercial com o Brasil, o setor automotivo registrou em abril a exportação de apenas 859  veículos para o país, menos de um décimo do que em abril de 2019 (14.648), segundo a Associação de Fabricantes Automotores (Adefa). Os números são anteriores à reabertura das concessionárias na Argentina na segunda semana de maio, numa das etapas da flexibilização da quarentena. Mas era difícil prever se as vendas subiriam, como disse a Adefa em nota à EXAME. A produção de automóveis foi nula em abril.

“Desde o decreto do presidente, todas as empresas deixaram de produzir”, disse a associação. Somente em 11 de maio, mais de 50 dias depois, as montadoras e os fabricantes de autopeças puderam retomar a produção. As províncias de Tucumán e de Córdoba já tinham reiniciado algumas das atividades ligadas ao comércio exterior. Em Tucumán, a montadora Scania voltou a produzir caixas de engrenagem para exportação e em Córdoba a Volkswagen voltou a fabricar caixas de câmbio. A Argentina destina 70% de sua produção automotiva ao mercado externo (67% são exportados para o Brasil), o equivalente a 8,1 bilhões de dólares anuais. O valor representa 12,5% das exportações argentinas e 33% do total de bens manufaturados vendidos ao exterior, segundo a Adefa.

Tratamento de pacientes com a covid-19 em hospital em Porto Alegre: o grande número de casos no Brasil contrasta com os dados da epidemia na Argentina | Diego Vara/Reuters

A disfunção não ocorreu somente no setor automotivo. Numa pesquisa global realizada por pesquisadores das universidades Princeton e Yale, nos Estados Unidos, e de Oxford, na Inglaterra, 40% das pequenas e médias empresas da Argentina disseram que tinham maior probabilidade de fechar as portas do que de não fechar em seis meses. Endividadas, com crédito limitado, muitas recorreram à ajuda emergencial do governo Fernández. Mas a inflação e a incerteza, além da queda no consumo que já estava à deriva, dificultam a sobrevivência.

Pouco mais de cinco meses depois de tomar posse, Alberto Fernández e o ministro da Economia, Martín Guzmán — que tiveram de suspender suas habituais peladas de fim de semana na residência presidencial de Olivos por causa da pandemia —, terão de fazer muitos dribles para que a economia volte aos trilhos. “O governo aumentou a presença do Estado nesta pandemia com uma série de DNUs [medidas provisórias]. Agora é hora também de governar ouvindo os outros Poderes, que ficaram esquecidos com a urgência do combate ao coronavírus. Isso é importante para a democracia”, diz Daniel Sabsay, professor de direito constitucional na Universidade de Buenos Aires. O Congresso Nacional voltou a funcionar, de maneira virtual, na segunda semana de maio, quase dois meses depois do isolamento obrigatório.

Com o relaxamento da quarentena e uma volta gradual à normalidade, a dúvida agora é saber como será a recuperação do país. A avaliação de economistas é que, apesar do sucesso em conter a propagação do coronavírus, ainda é cedo para dizer se a retomada será lenta ou rápida.

“O governo encarou a pandemia com seriedade e agiu rápido. Se não tomasse as medidas, a atividade iria se deteriorar mais. Agora, se isso vai alavancar a retomada, diria que possivelmente não”, afirma Alberto Ramos, diretor para a América Latina da equipe de análise econômica do banco Goldman Sachs. “O que vai determinar a recuperação é como as empresas vão sobreviver.” É certo que a pandemia terá um efeito prolongado na economia mundo afora, e na Argentina não será diferente. Alberto Fernández venceu a primeira etapa — y solamente eso.


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