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O chef argentino Francis Mallmann, ás do churrasco, cria receitas veganas

O maior chef argentino, conhecido pela devoção ao churrasco, investe em receitas veganas — e isso diz muito sobre a gastronomia atual

Francis Mallmann: “Em 30 anos não haverá mais carne” (Francis Mallmann/Divulgação)

Francis Mallmann: “Em 30 anos não haverá mais carne” (Francis Mallmann/Divulgação)

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Da Redação

Publicado em 6 de dezembro de 2018 às 05h12.

Última atualização em 4 de junho de 2020 às 15h16.

A notícia de que uma celebridade como a cantora Miley Cyrus aderiu à dieta vegana tem um sabor bem diferente da descoberta de que Francis Mallmann tem se debruçado sobre o assunto. Chef mais conhecido de seu país, sobretudo em razão das carnes na parrilla, o argentino se notabilizou por promover churrascos mesmerizantes nos quais os cordeiros são assados presos a estacas, com as patas formando uma cruz, e os frangos, devidamente degolados, pendem sobre o fogo sustentados por arames. “Em 30 anos não estaremos mais comendo carne, simplesmente não haverá mais”, justifica o chef. “E tenho a sensação de que, se continuar só cozinhando carnes, em dez anos terei apenas velhos em meus restaurantes.” 

Mallmann está às voltas com um livro de receitas veganas que devem ser preparadas perto do fogo, sua especialidade, e falou sobre o projeto após sua palestra na última edição do congresso de gastronomia Mesa SP, organizado em novembro no Memorial da América Latina, em São Paulo. “Decidi fazer esse livro pensando nos veganos mais jovens, de 20 e poucos anos, bem mais respeitosos do que os antigos. Eles dizem: ‘Seu trabalho é lindo, mas não comemos carnes’. Antes se atiravam   pedras em quem cozinhasse animais”, afirma. A data de lançamento do livro não foi divulgada, nem as receitas. “Quero que um vegano prove algo feito com fogo e sinta que comeu um bom churrasco”, limita-se a dizer.

Não, ele não deixou de comer ingredientes de origem animal. Mas engana-se quem o imagina um carnívoro inveterado. Perguntado sobre o que costuma cozinhar quando está em casa — ele vive sozinho numa ilha na Patagônia, no sul da Argentina, sem sinal de telefone ou de internet —, responde com o que parece ser uma piada: “Arroz branco com salada de repolho”. Diante da incredulidade do repórter, emenda: “Em casa é só o que como, adoro. Quando estou fora, claro, acabo comendo outras coisas”. Naquela sexta-feira, por exemplo. Terminada a entrevista, Mallmann foi levado para almoçar no Açougue Central, na Vila Madalena, a casa de carnes de Alex Atala e a primeira do chef brasileiro que iria conhecer.

Quatro episódios separam o argentino do brasileiro na série documental Chef’s Table, da Netflix, que multiplicou a fama de ambos mundo afora. “Ganhei uma voz internacional muito forte, mudou tudo”, diz Mallmann sobre o episódio protagonizado por ele, talvez um dos melhores se levada em conta a franqueza com que lidou com as câmeras. Expôs, por exemplo, o arranjo com a atual mulher, a chef Vanina Chimeno, com quem tem duas filhas. Cada um tem sua casa e eles passam juntos só cerca de dez dias por mês. “Viver junto destrói a paixão”, justificou na série. Em outro trecho, fez muita gente pensar duas vezes antes de chamá-lo para jantar. “Não quero perder tempo com pessoas de que não gosto, principalmente na hora de comer”, disse. “Não preciso mais desse teatro.”

Nascido nos arredores de Buenos Aires há 62 anos, ele foi levado para Bariloche, na Patagônia, aos 7 anos, quando seu pai, professor de física, aceitou um emprego na região. Diz ter enveredado pela gastronomia “um pouco pelo teatro da coisa” — leiam-se as flores, a música e a decoração envolvidas em uma grande refeição. Lapidou seu talento na França, para onde rumou na juventude com o intuito de trabalhar com chefs estrelados pelo guia Michelin. Escreveu oferecendo sua mão de obra aos 21 que na época ostentavam a cotação máxima, de três estrelas, e recebeu respostas de todos, boa parte delas com sinal verde.

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Voltou para a Argentina nos anos 80 disposto a replicar a nouvelle cuisine francesa que aprendera a dominar. E talvez se mantivesse fiel a ela até hoje não fosse um jantar encomendado por um mandachuva da Cartier, a maison de luxo francesa. Terminada a refeição, o executivo disparou: “Mister Mallmann, estava realmente horrível. Acho que você precisa pensar no que está fazendo porque não estava certo. Digo isso pois vejo seu esforço, mas isso não é comida francesa”. O argentino engoliu a seco e, a contragosto, agradeceu a observação. Não muito depois, concordou com ela e se voltou para a cozinha ancestral de seu país.   

O fogo logo virou um ingrediente indispensável em seu trabalho. Ele define assim seu uso na gastronomia: “Cozinhar com fogo é um pouco como fazer amor. Pode ser intenso, forte ou pode ir lentamente. Essa é a grande beleza do fogo. Vai de zero a dez em força. E entre zero e dez há várias formas de cozinhar”. Entre as técnicas ancestrais adotadas por Mallmann está a cocção diretamente sobre o fogo de peixes envoltos em argila — a substância impede que eles percam água, apesar da alta temperatura.   

Hoje está à frente de dez restaurantes, como o Patagonia Sur, em Buenos Aires, e o Los Fuegos, em Miami. O Château La Coste, o primeiro na Europa, aberto no ano passado, fica na Provence, na França. Seria uma forma de tentar ganhar uma estrela do Michelin, sem edições nas cidades de seus outros restaurantes? “Respeito o Michelin, o sistema de avaliação dele”, responde. “Mas não é algo que ambiciono. Minha comida é para contentar as pessoas.” 

Entre elas figuram desde anônimos até celebridades como a atriz Gwyneth Paltrow, para quem ele cozinhou em seu segundo casamento, em setembro, com o roteirista Brad Falchuk. “Gosto de cozinhar tanto para os reis quanto para o povo, todos os escalões são interessantes”, desconversa. Nem sempre dá certo, como da vez em que foi incumbido de uma refeição na Argentina para chefes de Estado latino-americanos em 2006. Prestes a dar início ao serviço, viu Fidel Castro se levantar e começar um discurso que terminou 3 horas depois. O jeito foi refazer toda a comida. 

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