Como a Fiat venceu crise interna e chegou à liderança de mercado no Brasil
Herlander Zola, diretor da marca na América do Sul, conta planos para crescer enquanto o mercado cai
Gabriel Aguiar
Publicado em 14 de maio de 2021 às 12h13.
Última atualização em 14 de maio de 2021 às 13h04.
Esse momento não poderia ser melhor para a Fiat: líder de mercado e com direito ao veículo leve mais vendido no ano. De fato, a nova picape Strada foi um divisor de águas para a empresa, mas o plano de recuperação foi além disso. “Há três anos, me chamariam de maluco se eu previsse esse resultado”, diz Herlander Zola, diretor da marca na América do Sul e de operações comerciais no Brasil.
Primeiro, é preciso relembrar que a crise do fabricante vem de bem antes, quando perdeu a liderança para o Chevrolet Onix —e também para os americanos. Foi o fim do reinado que durou 11 anos e que permaneceu distante dos italianos por meia década. Até agora. Nos primeiros quatro meses, a Fiat garantiu 21% das vendas por aqui, seguido pela VW (17,1%) e já distante da GM (14,5%).
“Viemos de um período no qual a marca sofreu muito em participação pelo crescimento dos SUVs. E a gente não tinha nenhum lançamento neste segmento. Nossas novidades vieram a partir de 2016, mas em outros segmentos. E, ao longo desse tempo, a gente fez um trabalho profundo para entender quais eram as fragilidades em produto, marca e tentar definir um plano de reposicionamento”.
No primeiro ciclo de investimentos, o fabricante lançou por aqui o Mobi, em 2016, seguido por Argo e Cronos nos anos seguintes. Já na segunda fase, chegaram as novas Strada (apresentada no ano passado, no primeiro ápice da pandemia) e Toro. E estão confirmadas mais três: o Progetto 363, primeiro SUV da empresa aqui, revelado em plena final doBBB; além do elétrico 500e e de outro SUV maior.
“Esse movimento envolveu os planos estabelecidos em 2018 e nos levaram a investir mais em picapes e em produtos que aumentassem o tíquete médio. Por isso lançaremos dois utilitários esportivos. Também fomos muito pautados pela redução dos custos de todo nosso portfólio, identificando caminhos para os produtos se tornarem cada vez mais competitivos, mais completos e mais tecnológicos”.
Para cumprir a estratégia de reposicionamento, a Fiat criou opções mais completas, como a aventureira Trekking e a linha S-Design. E houve mudanças para além dos veículos: mudaram toda identidade visual e até mesmo o logotipo anterior foi aposentado; recebeu a bandeira italiana estilizada para relembrar a origem europeia; e até adotou novo padrão arquitetônico para a rede de concessionárias.
“Esse projeto de rebranding está acontecendo com força e, hoje, temos cerca de 520 revendas em todo o país, sendo que 50 delas já estão completamente renovadas. E, até o fim deste ano, mais 250 deverão receber reformas, porque 100 delas já estão em processo neste momento. Nossa expectativa é terminar tudo até o ano que vem. Interessante é que a maior parte do plano se deu durante a pandemia”.
Em menos de três anos, a Fiat partiu dos 13,2% de participação no mercado brasileiro e chegou ao topo da tabela de mais vendidos, com avanço de 7 p.p. em relação ao fim de 2018. Para ter ideia, o número é maior até que a participação da Toyota, quinta colocada nos veículos leves, que soma 7% no acumulado entre janeiro e abril. De acordo com a marca, foi a maior recuperação no setor desde 2005.
“Todos nós apostávamos internamente, aí sim, com olhar muito mais otimista que alguns dos principais rivais. Sabíamos que todo nosso trabalho [ de replanejamento ] poderia render frutos importantes e levar a uma posição de destaque. Mesmo durante um período tão desafiador, como tem sido essa pandemia, a gente manteve todos os investimentos que estavam previsto para o mercado brasileiro”.
Para garantir a produção, vale um pouco de tudo: procurar novos fornecedores; trazer peças com avião; adiantar a linha de montagem de versões menos equipadas —e que demandam menos itens escassos—; pagar mais caro pelos componentes; e apostar no bom planejamento de volume. De acordo com Zola, o momento do mercado é oportuno para as empresas que têm disponibilidade de produto.
“Digo sem medo de errar que a liderança é fruto de trabalho e planejamento. E não sorte. Os problemas que os concorrentes tiveram, nós também tivemos: semicondutores e aço também estão em falta aqui. É uma realidade que atinge a indústria como um todo. Só que a Strada assumiu a liderança pela primeira vez em setembro, quando a produção do Onix em Gravataí (RS) não estava paralisada ”.
E se o resultado tem sido bom para os italianos, um detalhe pode preocupar à primeira vista: analisando os cinco veículos mais vendidos da Fiat, apenas o Argo tem mais de metade das vendas no varejo —com o Uno, por exemplo, as vendas diretas representam mais de 96% dos 10.042 emplacamentos neste ano. Também surpreende o volume para Strada (77% de VD), Mobi (50,3%) e Toro (50,1%).
“A dinâmica de vendas diretas é muito moldada por duas variáveis. Primeira envolve picapes, que têm a vocação natural para a negociação com pessoa jurídica, como comerciais leves em geral. E 45% do nosso volume é desse segmento. Outro fator são as locadoras, que seguem crescendo, seja pela demanda dos aplicativos ou pela locação direta. Achamos um ponto saudável para essa operação fluir”.
Segundo o diretor da Fiat na América do Sul e de operações comerciais no país, as concessionárias veem com bons olhos a estratégia comercial atual e têm garantido boa rentabilidade durante a pandemia. No cenário atual, com mudança nas regras para compra de veículos com isenções para PCD —que entram na conta de vendas diretas—, cerca de 60% de todas as vendas ocorrem nesta modalidade.
“No nosso caso, diria que temos uma relação bastante saudável com ambos os canais de vendas e, hoje, a rede enxerga na Fiat um negócio favorável. Já passamos por momentos complicados no passado, com nossas revendas em dificuldades financeiras, só que, agora, temos bons resultados financeiros, inclusive comparado a alguns dos concorrentes. Chegamos a ter 80% de vendas diretas anos atrás”.
Teoricamente, vender para pessoa jurídica colocaria o fabricante como rival do próprio concessionário. Mas, considerando o momento atual da pandemia, essa lógica inverteu: ainda que o comissionamento seja menor, os custos também foram reduzidos, já que não há gastos com estoque na operação. Se levar em conta as incertezas da economia, se livrar do risco de carros parados é uma boa ideia.
“Não temos previsão do que pode acontecer com o estoque. No começo da pandemia, o problema era outro, porque nossa rede tinha veículos disponíveis, só que a demanda era zero. E aquele estoque teria que ser pago em algum momento. Com bom equilíbrio da dinâmica de atendimento, utilizando estoque de maneira inteligente para não onerar, nossas revendas podem ganhar muito dinheiro”.
De fato, o tamanho da rede de concessionárias se manteve praticamente igual nos últimos meses, sem grandes variações (fossem para melhor ou para pior). Para dar assistência durante os períodos iniciais da pandemia, foram prolongados os prazos de pagamento. Só que esse período também rendeu mudanças para longo prazo, como a criação de um marketplace dentro do site do próprio fabricante.
“Essa nova ferramenta permite anunciar unidades específicas disponíveis em estoque, com os detalhes específicos de chassi, cor e opcionais, por exemplo. E tem gerado uma taxa de conversão mais efetiva do que a gente já tinha antes. Por conta do crescimento, a rede está ganhando mais dinheiro agora. Somos baseados em volume e, mesmo que o mercado tenha recuado, o nosso bolo aumentou”.
Na previsão de Herlander Zola —e da própria Fiat—, o setor automotivo deverá fechar este ano com 2,4 milhões de emplacamentos, o que significa um piora em relação às estimativas de antes da pandemia, mas é considerado positivo em relação ao que era apontado em meados de 2020. Com isso, o plano é de continuar lutando pela liderança nas vendas, mesmo com a recuperação dos rivais.
“Temos os pés no chão e sabemos que nossos resultados também são influenciados pelos concorrentes, principalmente a Chevrolet, que perdeu espaço em virtude da falta de componentes. E é claro que, no momento que estiver com tudo regularizado, eles terão mais participação. Mas confio muito no projeto que temos, nos lançamentos previstos e no sucesso dos carros que já estão disponíveis”.
Tamanha expectativa para o futuro é justamente porque duas das principais apostas confirmadas para chegarem às lojas até o início de 2022 serão na categoria de SUVs, que neste ano representou 38,4% de todas as vendas de automóveis. Vale lembrar que, atualmente, a empresa não oferece nenhuma opção para disputar o concorrido (e muito aquecido) segmento de utilitários esportivos por aqui.
“Não tenho dúvidas de que a liderança é uma consequência e não o fim. Toda nossa estratégia é voltada para a saúde da operação. E a gente tem investido para garantir uma posição cada vez mais competitiva, que proporcione mais volume e melhor rentabilidade. Nosso plano prevê uma atuação rentável e sólida. E se a gente lutar pela liderança, melhor, desde que ofereça satisfação a clientes e acionistas”.
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