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Em obra póstuma, Zygmunt Bauman retrata epidemia global de nostalgia

"Retrotopia" analisa movimentos políticos, sociais e econômicos que buscam no passado uma saída para a vida em sociedade

BORIS JOHNSON, MINISTRO BRITÂNICO E DEFENSOR DO BREXIT: partidos, movimentos e grupos parecem fazer uma volta ao passado, buscando referências em ideias e ideologias desatualizadas, para não dizer ultrapassadas

BORIS JOHNSON, MINISTRO BRITÂNICO E DEFENSOR DO BREXIT: partidos, movimentos e grupos parecem fazer uma volta ao passado, buscando referências em ideias e ideologias desatualizadas, para não dizer ultrapassadas

DR

Da Redação

Publicado em 7 de abril de 2018 às 07h34.

Última atualização em 7 de abril de 2018 às 16h13.

Retrotopia

Zygmunt Bauman

Editora Zahar

164 páginas

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Trezentos e quarenta e dois engradados de chá foram parar no mar de Boston no dia 16 de dezembro de 1773. Não se tratou de naufrágio: um grupo de manifestantes chamado Native Americans atirou todo o carregamento de um navio da Companhia das Índias Orientais, do governo da Inglaterra, na água.

Com vestimentas indígenas, o grupo protestava contra uma lei que aumentava os impostos em diversos produtos vendidos aos Estados Unidos, então colônia do Reino Unido. Uma das máximas dos americanos contrários às arbitrariedades da metrópole era “nada de impostos sem representação” (no taxation without representation).

Sem ter a chance de eleger representantes, os colonos exigiam ser ouvidos antes de ter de pagar pelos caprichos dos ingleses. O evento ficou conhecido como Boston Tea Party (a festa do chá de Boston) e precipitou a Guerra de Independência, através da qual os Estados Unidos se livraram do domínio colonial.

Séculos mais tarde, em 2009, a memória do Boston Tea Party foi evocada pelo grupo que se denominou simplesmente Tea Party. Parte de uma ala ultraconservadora do Partido Republicano, o grupo exigia impostos menores, a diminuição da interferência do governo na economia e controles mais estritos sobre a imigração.

O surgimento do Tea Party se deu durante o governo de Barack Obama, em reação a um projeto do então presidente de auxiliar cidadãos com dificuldades de pagar sua hipoteca. Rick Santelli, um comentarista da rede de TV CNBC, fez um discurso na Bolsa Mercantil de Chicago criticando a medida e chamando-a de subsídio para as hipotecas dos “perdedores”. Em seu discurso, pediu que houvesse uma “Chicago Tea Party” em protesto à decisão do governo Obama.

A fala de Santelli se tornou viral e precipitou a criação de diversos movimentos Tea Party pelo país. Usando as redes sociais e notícias falsas como ferramentas de recrutamento, o grupo cresceu e se consolidou como uma alternativa ao establishment republicano, visto como conivente com os desmandos da política americana.

Embora ele não contasse com uma liderança clara, algumas figuras do Partido Republicano se tornaram porta-vozes do movimento, como a ex-governadora e ex-candidata à vice-presidência Sarah Palin. No mesmo ano em que nasceu, o Tea Party levou 250 000 pessoas a Washington, num protesto que condenava a reforma do sistema de saúde americano, conhecida como Obamacare.

Embora tenha perdido força como movimento organizado, o Tea Party conseguiu se infiltrar no Partido Republicano, espalhando ideias radicais a respeito da imigração, de subsídios governamentais e protecionismo econômico. Também é herança do movimento o método de acolher e espalhar boatos e mentiras a respeito de democratas e outros adversários.

O “birtherism” (nascimentismo), por exemplo, nasceu no Tea Party. Trata-se de uma crença infundada na ideia falsa de que Barack Obama não nasceu nos Estados Unidos e, portanto, não poderia ser presidente. Enquanto ainda ocupava o cargo, Obama se viu pressionado a divulgar publicamente sua certidão de nascimento para tentar apaziguar os ânimos dos conspiradores. É claro que não adiantou muito. E essa teoria foi usada até por Donald Trump como ferramenta política quando era candidato. O atual mandatário americano, pode-se dizer, é uma cria direta no novo Tea Party.

Volta ao passado

Vivemos tempos de aceleração tecnológica intensa. Inovações técnicas e sociais são criadas aos montes todos os dias. A informação se tornou onipresente, assim como dispositivos de comunicação muito mais poderosos do que qualquer máquina que a NASA possuía quando colocou seres humanos na Lua. No entanto, vemos um movimento contrário na política. Partidos, movimentos e grupos parecem fazer uma volta ao passado, buscando referências em ideias e ideologias desatualizadas, para não dizer ultrapassadas.

Essa parece ser uma tendência mundial. Se nos Estados Unidos há quem olhe para a Guerra de Independência para tentar recuperar algo parecido à essência do país, no Brasil temos o discurso pedindo a volta dos militares, numa esperança de que a ditadura de 1964 possa trazer algo supostamente bom de volta.

A Europa vê grupos neonazistas e nacionalistas ganhando ainda mais força e conseguindo expressivos resultados nas urnas, como na França, Holanda e Polônia. Os britânicos decidiram que o cosmopolitismo europeu não é mais desejável e se retiraram da União Europeia, no referendo conhecido como Brexit. Embora seja comum que os conservadores tenham seus horizontes voltados a ideias ligados à tradição, estamos vivendo um surto de nostalgia nesse grupo.

“A nostalgia é um sentimento de perda e de deslocamento, mas também é um romance da pessoa com sua própria fantasia”, segundo Svetlana Boym, professora de literatura da Universidade de Harvard.

“O século 20 começou com uma utopia futurista e acabou com nostalgia”, continua ela. Boym é citada pelo filósofo Zygmunt Bauman (1925-2017) em seu livro póstumo Retrotopia, uma investigação a respeito da sanha contemporânea por buscar consolo e referências em tempos passados. Segundo o sociólogo polonês, a “epidemia frenética de progresso” deu lugar a uma “epidemia global de nostalgia”. A ideia de retrotopia vem da utopia do escritor Thomas More. Para Bauman, trata-se de um negação das utopias, ao colocar o foco em um passado perdido, “mas que não morreu”.

Um dos motivos da troca, argumenta o autor, é que o progresso foi individualizado e privatizado. Em nome de uma maior liberdade e talvez prosperidade, os serviços sociais e o Estado foram sacrificados. O futuro se tornou um local assustador, infestado pelo medo de perder a casa e a posição social, de perder o emprego, de ver os filhos tropeçarem socialmente e caírem de nível.

O porvir, em vez de Éden, se torna um pesadelo. Pensemos, por exemplo, na crise financeira mundial de 2008, ainda ecoando fortemente pelo mundo. Busca-se, então, consolo no que já foi e pareceu, à distância, dar relativamente certo. Tudo o que cheira a futuro passa a ser suspeito; o passado reconforta e dá uma sensação de segurança. “Fiel ao espírito utópico, a retrotopia deriva seu estímulo da esperança de reconciliar, finalmente, segurança e liberdade, feito que nem a visão original nem sua primeira negação tentaram alcançar – ou, se tentaram, fracassaram”, define.

Bauman lista uma série de motivos para esse desejo de retorno. O fracasso do chamado “processo civilizatório” em aprimorar a natureza humana é o primeiro da lista. Ele não conseguiu eliminar o “animal hobbesiano dentro do ser humano”.

Isso quer dizer ainda não foi resolvida a questão da legitimidade da violência. O Estado tem monopólio do uso da força? Ele é capaz de garantir que não haverá violência fora dos limites legais estabelecidos? Na opinião de Bauman, foi justamente esse fracasso que colocou em questão a eficiência conceitual e prática da soberania do Estado. “O Leviatã se mostra incapaz de expressar a fronteira que ele próprio estabelece entre violência legítima e ilegítima de maneira realmente confiável”, afirma.

Poder sem território

A segunda questão essencial da conjuntura social e política diz respeito à desterritorialização do poder. Causada em grande parte pela globalização, essa nova condição trouxe incerteza para o exercício do poder político, econômico e, claro, do monopólio da violência. Uma vez que o domínio territorial deixa de ser uma das bases do poder político, o Estado perde “o seu suposto monopólio de estabelecer a fronteira que separa a violência legítima da ilegítima”. O planeta se tornou interdependente de maneira incontrolável, um lugar onde o Estado não consegue mais desempenhar suas funções.

O sociólogo faz questão de frisar que essa situação não é causada por falta dos “Leviatãs”, mas sim porque há um grande número deles, que “fracassam no desempenho das tarefas em nome das quais nossos ancestrais (…) o convidaram a governá-los”.

Dessa maneira, voltamos a um tribalismo, que impede as pessoas de ouvirem umas às outras e as fazem descartar qualquer coisa que não sejam as crenças do grupo. Mas, alerta Bauman, não se trata apenas de voltar a uma comunidade qualquer. Esse tribalismo tem, paradoxalmente, características individualistas, traduzidas em grupos menos fortes que as tribos antigas e nas quais os indivíduos têm liberdade maior de circulação.

A base de tudo é a filosofia da administração. De acordo com essa maneira nova de organizar a sociedade, temos comunidades abertas nas quais as características individuais são essenciais na avaliação do desempenho dos indivíduos, principalmente no mundo do trabalho.

Os grandes expoentes desse nada admirável tampouco novo mundo são os millenials, a geração que vê no progresso uma ameaça para seus empregos e perspectivas de futuro. Tanto trabalhadores manuais quanto intelectuais, frisa Bauman, estão ameaçados pelos computadores e robôs. Esse grupo etário é “a primeira geração pós-guerra a expressar medo de perder, em vez de elevar, o status social alcançado por seus pais”.

O medo do futuro é eixo organizador da retrotopia. Em toda a sociedade inicia-se uma busca por elementos que reorganizem os valores compartilhados. A memória, então, se torna o local de referência para tudo. Especialmente para a política. “O passado fornece um local de construção muitíssimo conveniente, e de muitos modos, mais atraente e tentador para tais zonas de conforto”, diz Bauman.

Os novos meios de comunicação, de maneira contra-intuitiva, facilitam a criação desses espaços de isolamento; eles “produzem uma seletividade rigorosa e extravagante na coleta de informação, na construção de redes e na comunicação” e “induzem o isolamento hermético da pessoa em relação em tudo aquilo que é descartado com arrogância por ser considerado de manuseio difícil”.

Por último, o aumento das desigualdades sociais e a perspectiva de que elas continuarão a crescer (por conta da automação) são mais um dos fatores basilares para o desejo de retorno ao passado.

Desmontado o Estado de bem-estar social do século 20, os cidadãos se veem desassistidos em uma economia que, por padrão, se torna mais fragmentada. A ideia de uma renda básica universal começa a se tornar mais do que um sonho da social-democracia, mas uma necessidade. Segundo Bauman, é preciso pensar na renda básica “como um tremendo ganho social e moral, que nenhuma outra prescrição para lidar com a desigualdade parece ser capaz de granjear”.

Embora apresente um diagnóstico potencialmente dos rumos da sociedade globalizada, a análise de Zygmunt Bauman, publicada após sua morte, se parece mais com um programa político do que apenas com uma obra de sociologia. Bauman, aparentemente, desejava deixar um programa de pesquisa para uma variada gama de ciências sociais, econômicas e psicológicas.

A pista principal do sociólogo não surgiu, no entanto, de nenhum clássico da filosofia ou das humanas, mas do Papa Francisco, definido por Bauman como “hoje a única pessoa entre as figuras públicas com autoridade planetária considerável, ousado e determinado o suficiente para propor e lidar” com as questões da humanidade e do cosmopolitismo.

A resposta de Francisco, afirma Bauman, é o diálogo. O pontífice quer “levar o destino da coabitação pacífica, da solidariedade e das colaborações entre os seres humanos do reino vago e obscuro da alta política (…) para as ruas, oficinas, escritórios, escolas e demais espaços públicos”.

A derradeira obra de Bauman nos prepara para tempos com mais perguntas que respostas, época em que será preciso ter paciência e determinação para manter vivas as esperanças de um humanismo universal. O autor admite que será difícil barrar essa necessidade de retorno que já se manifesta plenamente pelo mundo todo. O esforço se justifica, no entanto pela escolha entre “nos darmos as mãos” ou “rumar para as nossas valas comuns”.

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