Regra sobre aborto pode mudar nos EUA e impactar debate no Brasil. Entenda
Há quase 50 anos, quando os Estados Unidos decidiram por uma jurisprudência garantindo o direito ao aborto no país, a movimentação terminou gerando uma cadeia de debate sobre o tema em todo o mundo. A partir dos anos 1970, uma série de países também autorizariam o aborto como direito das mulheres no início da gravidez, do Canadá aos países da Europa Ocidental.
Agora, meio século depois, o debate reverso toma conta da política americana, com a Suprema Corte caminhando para reverter a decisão chamada de Roe vs. Wade, de 1973, que declarou o direito ao aborto como constitucional. Uma votação no Senado nesta semana também terminou com a proposta de converter o Roe vs. Wade em lei rejeitada.
A tendência é que a mudança de status nos EUA, como ocorreu nos anos 1970, gere repercussão em outros lugares do mundo que já têm leis pró-escolha da mulher ou que pensam em aprová-las.
O debate também pode respingar no Brasil em meio às eleições deste ano, embora o aborto não seja, até o momento, assunto principal de interesse dos eleitores brasileiros, focados em economia, segundo as últimas pesquisas EXAME/IDEIA.
Mas o tema também divide opiniões no país, com maioria da população contrária. Na última sondagem EXAME/IDEIA em abril, 55% dos brasileiros foram contra a descriminalização do aborto, 38% a favor e 7% não souberam responder.
O apoio à descriminalização, no entanto, é majoritário entre os mais ricos, acima de 60% nas classes A e B. (A pesquisa foi registrada no Tribunal Superior Eleitoral com o número BR-02495/2022 - clique aqui para ler o relatório completo.)
Em quais casos o aborto é permitido no Brasil?
O Brasil tem uma das legislações mais restritivas do mundo sobre aborto até o momento.
Realizar um aborto pode render às mulheres pena de um a até três anos de prisão, em um arcabouço que, no geral, data do Código Penal de 1940.
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O procedimento só é permitido em três casos: estupro, gravidez que oferece risco à vida da mulher e, segundo decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012, em casos de anencefalia, quando há malformação do cérebro do feto. A maioria dos brasileiros se disse a favor de manter a regra como está, segundo o EXAME/IDEIA.
O aborto também ganhou destaque no debate eleitoral no Brasil após declaração do ex-presidente Lula, que disse que o tema deveria ser tratado como saúde pública.
Enquanto isso, nesta semana, o tema chegou a ser um dos mais comentados no Twitter depois de a atriz Cassia Kis dizer no programa Encontro, de Fátima Bernardes, que fez um aborto em 1985, mas que hoje tenta convencer mulheres que não o façam.
Mesmo com a tipificação como crime no Brasil, estima-se que são feitos por ano mais de 500 mil abortos clandestinos no país. Uma em cada cinco mulheres, aos 40 anos, terá realizado um aborto, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, coordenada pela pesquisadora Debora Diniz, um dos estudos mais completos realizados no Brasil na área em meio aos poucos dados oficiais sobre o assunto.
EUA pode pautar debate no mundo
A Anistia Internacional divulgou nota afirmando que a movimentação nos EUA poderia "dar um exemplo terrível do qual outros governos e grupos anti-direitos poderiam se aproveitar em todo o mundo, em uma tentativa de negar os direitos das mulheres, meninas e outras pessoas que podem ficar grávidas", segundo a secretária-geral da organização, Agnes Callamard.
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A possível restrição no paradigma sobre aborto nos EUA acontece enquanto países com maiorias religiosas — antes restritivos ao aborto — têm aprovado mudanças no sentido contrário.
Na América Latina, que tem uma das legislações mais restritivas sobre aborto e maioria da população católica, Uruguai (2012), Argentina (2020), Colômbia (2022) e partes do México (2022) mudaram suas regras recentemente. Países como o Chile também estudam mudanças.
A Irlanda, um dos últimos países da Europa onde o aborto não havia sido descriminalizado, também mudou a lei em 2019.
No sentido contrário, um dos exemplos claros de possível influência dos EUA citados por especialistas internacionais é a Polônia, que passou recentemente leis proibindo quase todas as opções de aborto, uma mudança em relação a seu arcabouço legal anterior.
A mudança tem gerado críticas amplas de outros países da União Europeia, onde o aborto também é autorizado a depender da escolha das mulheres. Mas o governo polonês poderia argumentar, por exemplo, que se os EUA — um aliado de primeira ordem dos europeus — mudou a lei, a Polônia também pode fazê-lo sem ser criticada.
Nos EUA, enquanto isso, protestos massivos têm ocorridos nas últimas semanas desde que um rascunho deixou claro a maioria da Suprema Corte para reverter o Roe vs. Wade, tema que deve chegar a votação entre os juízes ainda neste ano.
A Suprema Corte tem 6 juízes classificados como conservadores e 3 como liberais ou progressistas. A expectativa de grupos defensores do Roe vs. Wade é pressionar os juízes a não reverterem a jurisprudência, o que, por ora, parece improvável.
O que é o Roe vs. Wade nos EUA?
Nos anos 1970, muitos estados americanos consideravam o aborto crime na legislação penal. O caso Roe vs. Wade começou em um desses estados, o Texas, após uma ação judicial movida por uma mãe solteira, Jane Roe (pseudônimo de Norma McCorvey).
Roe estava grávida pela terceira vez em 1969, e atacou a constitucionalidade da lei do Texas. A mulher terminou abrindo um recurso contra o promotor de Dallas, Henry Wade, e o caso chegou à Suprema Corte.
A Corte votaria três anos depois, em 1973. Os juízes na ocasião votaram por 7-2 a favor do caso de Jane Roe.
Com a decisão, caiu por terra a lei antiaborto no Texas e em uma série de outros estados que, à época, tratavam aborto como crime.
O entendimento dos juízes à época foi de que a Constituição dos Estados Unidos protege o direito de uma mulher de decidir, sem intervenção excessiva do Estado, sobre levar adiante uma gravidez recém-descoberta. A exceção seria para estágios avançados da gravidez, quando o direito da mulher à privacidade não seria absoluto, segundo entendimento da Corte.

Protesto a favor de direito ao aborto nos anos 1970: decisão do Roe v. Wade embasa jurisprudência nos EUA até hoje (National Commission for the Observance of the International Women's Year/PhotoQuest/Getty Images)
Desde então, com base na jurisprudência de 1973 que classifica o direito ao aborto como constitucional, estados não podem passar leis que sejam contrárias a este entendimento.
O Roe vs. Wade veio em um momento específico, de ampliação do pensamento liberal, tanto econômico quanto político, e de oposição ao amplo controle governamental em meio à Guerra Fria.
A leitura de um Estado liberal se expandiu para os costumes, com a visão de que o direito ao respeito à vida privada, garantida pela Constituição dos EUA, se aplicava ao direito da mulher em decidir sobre ter ou não um filho — caso a decisão fosse tomada ainda no início da gravidez.
A Corte decretou, assim, que “o direito ao respeito da vida privada, presente na 14ª Emenda da Constituição (...), é suficientemente amplo para ser aplicado à decisão de uma mulher de interromper, ou não, sua gravidez".

Protesto contra a mudança do Roe vs. Wade em frente à Suprema Corte dos EUA: tema pode ser decidido neste ano no país (Al Drago/Bloomberg via Getty Images/Getty Images)
Apesar da decisão de 1973, nos últimos meses, uma série de estados tem passado leis mais restritivas sobre direito ao aborto.
Assim, a Suprema Corte terá de decidir se essas leis locais restringindo o acesso ao aborto no início da gestão são constitucionais, o que, na prática, manterá ou derrubará a jurisprudência do Roe vs. Wade.
Caso a decisão dos anos 1970 seja revertida, cada estado poderá decidir sobre restringir ou não o aborto. A tendência é que estados progressistas sigam com legislação abrangente, enquanto estados conservadores mudem as leis para proibir ou até criminalizar as mães que realizam o procedimento em mais casos.
O tema virou centro de polarização entre os políticos nos EUA, com republicanos a favor de reverter o Roe vs. Wade e a maioria dos democratas contrários.
O presidente americano, Joe Biden, também se manifestou sobre a situação. O mandatário, que é católico, disse que a "justiça básica" exige que o Roe vs. Wade seja mantido.
Do outro lado, reverter a jurisprudência é uma demanda antiga de parcelas mais conservadoras da população. Paralelamente aos protestos chamados de "pró-escolha", ativistas antiaborto também têm ido às ruas nas últimas semanas.
(Colaborou Gilson Garrett Jr.)
*A reportagem foi atualizada em 13 de maio para incluir a declaração da atriz Cassia Kis sobre aborto.