O governo de Alberto Fernández não conseguiu mudar o cenário e o agravou ainda mais com as políticas aplicadas na pandemia de coronavírus (JUAN MABROMATA, Tomas CUESTA/AFP)
Agência de notícias
Publicado em 24 de outubro de 2023 às 22h07.
O segundo turno das eleições na Argentina sera disputados entre dois candidatos com ideias opostas em quase tudo, incluindo a solução para o descontrole da inflação que assola a economia.
De um lado se encontra o peronista Sérgio Massa, atual ministro da Economia, que deseja alcançar o equilíbrio fiscal e a taxa de câmbio competitiva sem renunciar os gastos sociais do Estado. Do outro está Javier Milei, um candidato libertário que promete um pacote radical de livre mercado, com cortes de gastos em até 15% do PIB e a dolarização da economia.
Analistas apontam os projetos opostos no tema inflacionário como a diferença fundamental entre Massa e Milei. Além disso, o tema é fundamental não só para a eleição de 19 de novembro como para o futuro da Argentina.
O país tem uma inflação de 138% este ano e sofreu uma desvalorização de quase 95% da moeda local, o peso, nos últimos quatro anos. Nos próximos 30 dias, Massa e Milei irão se esforçar para convencer os eleitores de que suas ideias são capazes de solucionar a crise econômica.
O problema da inflação na Argentina, no entanto é crônico O país viveu três grandes crises econômicas (incluindo a atual) nas últimas quatro décadas e nunca conseguiu resolvê-las por completo. Apesar de ciclos econômicos melhores em determinados momentos, o déficit fiscal insistente, a alta dívida externa, a falta de credibilidade da moeda e a escassez de dólares seguem prejudicando o cenário macroecômico. Com isso, a inflação sobe e o peso se desvaloriza. O efeito é um aumento de argentinos em situação de pobreza e fome.
Mas como começou esse problema e como os candidatos pretendem resolvê-lo? Entenda abaixo.
Em resumo: o déficit público é alto (a Argentina gasta mais do que arrecada), as reservas de dólares no país são baixas (o país importa muito mais do que exporta) e os calotes no pagamento da dívida pública diminuíram a confiança dos investidores no país.
"Não é somente uma razão que faz a Argentina ter um problema fiscal tão grande, mas uma soma de razões", diz o professor de economia da ESPM, Leonardo Trevisan.
Há anos, a Argentina precisa emitir dívidas (contrair empréstimos) ou emitir notas (imprimir dinheiro) para arcar com suas despesas. Como os investimentos estão cada vez menores por causa da desconfiança de investidores, o governo recorre cada vez mais a segunda opção - e a escolha eleva a inflação por aumentar a circulação de moedas.
Os fenômenos se retroalimentam. Com uma inflação alta, a Argentina aumenta subsídios sociais e congela preços para tentar diminuir o impacto econômico na sociedade. "A Argentina subsidia 79% da energia, tem subsídios no transporte público, em outros setores. Mas isso a faz gastar mais e alonga o problema, ao mesmo tempo que não se pode cortar tudo de maneira brusca", acrescentou Trevisan. A raiz desse problema está na década de 1980.
Assim como outros países latino-americanos, incluindo o Brasil, a Argentina enfrentou na década de 1980 uma crise inflacionária que resultou dos altos endividamentos contraídos durante os governos da ditadura (1976-1983). Após o retorno da democracia, as taxas de inflação explodiram e chegaram a ultrapassar os 3.000% em 1989, que resultou na queda do governo de Raúl Afonsin o primeiro presidente pós-ditadura.
Em comparação, o Brasil, que também vivia hiperinflação no período, chegou a um recorde de 2.477% em 1993, um ano antes do Plano Real, que deu fim à hiperinflação do país.
Ciente da necessidade de controlar a hiperinflação, a Argentina tentou solucionar o problema três anos antes do Brasil. Em 1991, o país criou a lei da convertibilidade e fixou a paridade entre o peso e o dólar (ou seja, um peso valia US$ 1). A inflação despencou nos anos seguintes, com o Índice de Preço ao Consumidor (IPC) chegando ao patamar de 0,16% em 1996, mas a valorização do dólar, gerada pelo aumento da taxa de juros dos Estados Unidos naqueles anos, e a crise no mercado da Ásia encareceram os produtos argentinos e diminuíram os investimentos.
A solução encontrada para conter a crise foi se endividar. Em dezembro de 2001, isso acabou na catástrofe do corralito, que congelou os depósitos bancários e os limites semanais para saques. Milhares de pessoas foram às ruas protestar, e a crise resultou na renúncia do presidente Fernando De la Rúa. O país também aplicou o primeiro calote (default) e não pagou sua dívida externa, gerando uma desconfiança entre investidores. Outros calotes foram aplicados desde então.
Nos anos seguintes, o dólar desvalorizou e as commodities latino-americanas aumentaram de preço, deixando o peso barato. Outros países optaram por fazer ajustes na política monetária para valorizar suas moedas, mas o governo do peronista Néstor Kirchner escolheu manter o peso como estava para torná-lo mais competitivo. "Algumas reformas não foram feitas, o que causa uma diferença com o Brasil, que conseguiu resolver seu problema de hiperinflação, por exemplo", explicou o economista argentino e professor associado da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Fabio Giambiagi.
A política de Néstor Kirchner foi seguida pela sucessora, sua esposa Cristina Kirchner. O país cresceu com taxas altas e aumentou sistematicamente os gastos do Estado.
A Argentina arrecadou mais do que gastou entre 2004 e 2009, mas a continuidade da política expansionista e o fim do ciclo das commodities fizeram o país voltar para o vermelho. Para pagar as suas contas, o país precisava emitir dívidas (pegar empréstimos) ou imprimir dinheiro. Não tinha a confiança dos investidores para escolher a primeira opção; com a segunda, colocou mais moeda em circulação no país, o que elevou a inflação.
Ao assumir o governo em 2015, o direitista Mauricio Macri, eleito devido ao descontentamento popular por causa da inflação, aplicou uma série de medidas que causou uma corrida cambial em 2018. A inflação duplicou em um único ano, chegando a quase 48%. Macri também contraiu empréstimo com juros altíssimos para atrair os investidores, deixando o país com uma inflação de 53 83% no término do seu mandato, em 2019, e uma dívida pública de US$ 277,6 bilhões.
O governo de Alberto Fernández não conseguiu mudar o cenário e o agravou ainda mais com as políticas aplicadas na pandemia de coronavírus. O resultado é uma inflação que supera 130% e uma taxa de pobreza de 40,1% da população.
O peronista Sérgio Massa, que ocupa o cargo de ministro da Economia, afirma pretender alcançar o equilíbrio fiscal, o superávit primário e ter uma taxa de câmbio competitiva em sua gestão. No entanto, Massa também afirma pretender a continuidade de políticas peronistas, caracterizadas pelos gastos públicos. "O que está por vir é mais distribuição de renda, mais educação pública, mais investimento nas universidades", disse a uma emissora local durante a campanha.
As políticas que implementou como ministro da Economia, cargo que assumiu em julho de 2022, já no cenário de hiperinflação, não são vistas por analistas como políticas que buscaram mudanças estruturais. Internamente, Massa ampliou subsídios e aplicou o controle de preços, o que levou à falta de produtos na gôndolas de mercados. "As políticas foram apelidadas de 'Plan Platita', que caracteriza algo populista para aliviar momentaneamente o bolso dos eleitores e ganhar a eleição", declarou Fabio Giambiagi.
Segundo Giambiagi, não está claro como Massa irá aliar o ajuste das contas argentinas com as políticas de gastos públicos que pretende manter. Também paira sobre o candidato o histórico de mudanças políticas, caracterizada pelo pragmatismo. No passado, Massa apresentou soluções pró-mercado para a Argentina. "Ele vai ter que mexer, mas não está muito claro como isso vai ser feito" declarou.
À frente da Economia, Massa também conseguiu negociar com a China o pagamento de uma parte da dívida pública e conseguiu um desembolso imediato de US$ 7,5 milhões do FMI. As medidas também podem ser cruciais para o futuro da economia. "São medidas que podem afetar o poder do dólar na Argentina ou mesmo gerar um novo problema, se o país não conseguir cumprir compromissos com a China", disse Leonardo Trevisan, da ESPM.
O candidato libertário Javier Milei promete uma mudança radical nas políticas fiscais do país, com a dolarização da economia e corte nos gastos públicos de até 15% do PIB, uma fração vista por economistas como impossível. No limite, ele defende também a extinção do Banco Central, emissor dos títulos da dívida pública e da moeda em circulação.
As medidas podem conter a inflação, mas não se sabe quais condições políticas Milei terá para implementá-las. "Isso depende do quanto de confiança Milei chegará ao cargo. E isso é uma incógnita, porque estamos falando de pessoas que aplicariam uma mudança radical sem nunca ter estado na administração pública", afirmou Giambiagi.
O novo formato do Congresso eleito no domingo deu a Milei a terceira maior bancada tanto no Senado quanto na Câmara.
Os planos de MIlei também não estão isentos de riscos. A dolarização da economia, por exemplo, levaria ao fim da autonomia da Argentina no comando da macroeconomia, e pode deixar o país em uma situação ainda pior no futuro.
Ou seja, o país perde a capacidade de desvalorizar a moeda ou emitir dívida pública, o que em alguns casos é necessário dentro de determinadas condições econômicas
. "Quando você dolariza, você perde a autoridade sobre a macroeconomia. Você submete a sua economia a uma outra realidade que é a dos Estados Unidos", disse Trevisan.
Contra o candidato também pesa a retórica ferina contra os adversários. Milei chegou a falar em cortar parcerias com a China, o maior parceiro econômico do país - e que está disposto a arcar com uma parte da dívida pública. Analistas indicam que isso pode afastar ainda mais os investidores do país.