O triste destino do país que foi o oásis de príncipes e princesas
Moradores agora fazem estoque de velas porque acabou a energia elétrica: antiga estrela do Oriente dá seus últimos suspiros
Carla Aranha
Publicado em 31 de julho de 2020 às 19h28.
Última atualização em 19 de setembro de 2020 às 14h47.
“Não ouvi... vai faltar energia até quando? E a internet também está ruim?”, pergunta a amiga aflita no WhatsApp. Bip bip bip, cai a ligação. A internet não volta. Diálogos como esse, de parentes e amigos preocupados com os entes queridos que moram no Líbano , têm se tornado cada vez mais comuns. Agora, não há mais nem luz elétrica em muitos bairros, a internet dá problema e o lixo se amontoa nas ruas.
O Líbano passa por uma crise econômica sem precedentes. Para complicar, na tarde de terça-feira, 4 de agosto, uma explosão no que aparenta ser uma fábrica de artifícios colocou o país no noticiário internacional do pior jeito possível.
Com uma dívida que chega a 170% do PIB, o governo não tem mais recursos nem para pagar as suas próprias contas de energia, telefone e internet. Como resultado, as operadoras de celular reduziram a velocidade de conexão em vários lugares onde há repartições públicas. Também acabou o dinheiro para importar o combustível que gera a eletricidade. Resultado: boa parte das cidades está às escuras.
“O Líbano simplesmente faliu, depois de anos de uma política econômica que não fazia sentido e partidos políticos corruptos”, diz a pedagoga Layla Salash, de 40 anos, que está desempregada. Layla fez um estoque de velas para não ficar no escuro durante a noite.
Ela mora com seu marido e dois filhos em um apartamento em um bairro de classe média de Beirute. Layla também diminuiu as compras no supermercado e têm contado cada centavo do que gasta. Infelizmente, ela não é a única. Nas embaixadas, os geradores garantem o fornecimento de eletricidade , mas não se sabe por quanto tempo. As empresas estrangeiras das quais o governo compra óleo diesel, distribuído para os condomínios, hospitais e escolas, já avisaram que vão suspender o fornecimento por falta de pagamento.
Por muitas décadas, Beirute foi um oásis de calma – e diversão – no Oriente Médio , atraindo desde europeus endinheirados em busca de belas praias e festas animadas até príncipes e princesas do Golfo Pérsico que investiam em apartamentos suntuosos e iates. A vida glamourosa, no entanto, aos poucos foi se desvanecendo.
Em 1997, o governo decidiu equiparar a cotação da libra libanesa ao dólar, artificialmente, o que, para muitos especialistas, era visto como uma bomba-relógio. A dolarização da economia foi outra decisão que se revelou nefasta.
“Esse esquema dependia de investimentos pesados no mercado imobiliário, feitos por estrangeiros endinheirados, e as transferências em dólar feitas para bancos libaneses”, diz James Worral, professor de relações internacionais e estudos do Oriente Médio da Universidade de Leeds, no Reino Unido.
Os bancos cobravam taxas de juros de 10% para atrair o capital estrangeiro e emprestavam seu capital para o Banco Central a taxas ainda mais altas. O Líbano se tornou um dos países mais endividados do mundo e, em março, declarou que as reservas estavam próximas do fim. "Muitos libaneses temem que o país possa repetir o que aconteceu na Venezuela ", diz Layla.
A comparação não é infundada. Este ano, o PIB da Venezuela deve cair 15%. Nos últimos sete ano, a que foi de 60%. O Líbano não deve ficar muito atrás. As estimativas apontam que a economia deve encolher 12% este ano.
Caso as previsões se confirmem, será um dos piores resultados desde a guerra civil (1975-1990), marcada por conflitos entre libaneses de diferentes religiões e invasões territoriais de Israel. Com o fim do conflito, ficou definido que o presidente seria sempre cristão, o primeiro-ministro, um muçulmano sunita (a corrente majoritária do islã), e o porta-voz, um muçulmano xiita.
Já era um sistema que não favorecia escolhas baseadas em critérios técnicos para postos-chave no governo, e abria as portas para conversas palacianas pouco ortodoxas. Nos últimos anos, o xadrez político ficou ainda mais complexo, o que acabou exercendo um papel relevante no desastre econômico.
“O aumento do poder de grupos radicais xiitas como o Hezzbollah, que recentemente passou a ocupar vários assentos no parlamento, afugentou os investidores do Golfo e de outros países, que alimentavam uma parte da economia libanesa”, diz Simon Mabon, professor de relações internacionais da Universidade de Lancaster, no Reino Unido.
Com os depósitos em dólar minguando, a cotação da moeda disparou. Em poucos meses, a lira desvalorizou 80%, os preços triplicaram e o país não honrou o pagamento de sua dívida em eurobônus, em março.
O Fundo Monetário Internacional (FMI) ofereceu um empréstimo, mas com a condição de que o país realizasse reformas estruturantes, o que não foi feito.
A inflação chega hoje a mais de 400% ao ano. O preço dos alimentos aumentou quase 200% desde maio. Só não é uma situação pior do que a da Venezuela, em que inflação tem bateu a casa dos 2.000%, e do Zimbábue (800%).
A crise do coronavírus piorou ainda mais a situação. O país precisou fechar a economia durante dois meses, em março e abril, para evitar a propagação da doença. A medida parece ter funcionado, já que o Líbano apresenta hoje apenas cerca de 4.500 casos confirmados.
Mas a economia, que já estava bastante cambaleante, começou a descer ladeira abaixo. Começaram as demissões em massa e as remodelações dos pagamentos dos funcionários públicos, que sofreram uma redução. Hoje, quase metade da população libanesa vive abaixo da linha da pobreza.
“Agora, ninguém sabe o que vai acontecer”, diz Layla. “Acho que chegamos ao fundo do poço”.