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O que revelam as entrelinhas da carta de Trump para Kim

O presidente Donald Trump trocou os tuítes pela velha e boa carta para cancelar o encontro de Singapura

Encontro: a suspeita é que o chinês Xi Jinping e autoridades norte-coreanas tenham trabalhado contra a aproximação (Carlos Barria/Reuters)

Encontro: a suspeita é que o chinês Xi Jinping e autoridades norte-coreanas tenham trabalhado contra a aproximação (Carlos Barria/Reuters)

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Da Redação

Publicado em 26 de maio de 2018 às 09h05.

Última atualização em 26 de maio de 2018 às 11h55.

Xangai — O presidente Donald Trump trocou os tuítes pela velha e boa carta. E se saiu muito melhor. Não pelo seu trágico conteúdo, que anunciava o cancelamento da reunião de cúpula com o norte-coreano Kim Jong-un. Mas pela forma.

Na carta enviada a Kim na quinta-feira, segundo assessores ditada pelo presidente, Trump foi capaz de expressar de forma respeitosa sua frustração com o fracasso das negociações, deixar a porta aberta e ao mesmo tempo advertir para a capacidade econômica dos EUA de premiar a Coreia do Norte; e militar, de castigá-la.

Ele começa dirigindo-se a Kim como “Caro Sr. Dirigente (Chairman)”. Era assim que o líder revolucionário e ditador chinês Mao Tsé-tung era chamado. Dirigentes comunistas gostam desse tratamento, porque associa sua autoridade a uma liderança sobre o Partido.

O presidente agradeceu Kim pelo “tempo e paciência” dedicados às negociações. Depois de salientar que “queria muito estar lá” com Kim, Trump justificou: “Tristemente, diante da tremenda raiva e hostilidade aberta demonstradas em sua mais recente declaração, sinto que é impróprio, neste momento, realizar essa reunião, há tanto tempo planejada”.

Foi uma referência a uma afirmação da vice-chanceler norte-coreana Choe Son Hui, que por sua vez reagia a uma declaração de Mike Pence, o vice-presidente americano. Pence havia advertido que, se não fizesse um acordo com os EUA, Kim acabaria como o ditador líbio Muamar Kadafi.

Choe qualificou a insinuação de Pence de “ignorante e estúpida”. Não sem razão. Ela não faz sentido, é contraproducente e contraditória com a referência ao caso líbio feita uma semana antes por John Bolton, chefe do Conselho de Segurança Nacional. Segundo ele, os EUA queriam que o arsenal nuclear norte-coreano tivesse o mesmo destino que o líbio, desmantelado depois de um acordo com Kadafi em 2003.

A declaração de Bolton levou Kim a cancelar uma reunião no dia 16 entre autoridades das Coreias do Norte e do Sul e a ameaçar não ir ao encontro com Trump. O fantasma de Kadafi, linchado em 2011, assombra todo ditador. Seu destino é precisamente um incentivo para adversários dos EUA, como o Irã, perseguirem um programa nuclear.

“Você fala de sua capacidade nuclear, mas a nossa é tão grande e poderosa que eu rezo a Deus para que ela nunca seja usada”, ameaçou Trump. Foi o “momento Twitter” da carta, que lembrou quando Trump comparava o tamanho de seu “botão nuclear” com o de Kim. Mas mesmo assim a comparação veio acompanhada do desejo de encontrar uma saída pacífica, que permeou toda a carta.

Mas Choe havia dito que recomendaria a Kim suspender a cúpula marcada para o dia 12 em Singapura. Então, Trump apenas quis tomar a iniciativa, depois de andar a reboque em todo o processo, desde 7 de março, quando ambos concordaram em se reunir.

Fontes da Casa Branca disseram à rede de TV CNN que Trump e seus assessores ficaram “furiosos” com as ofensas da vice-chanceler a Pence. Mas essa seria uma situação contornável, se ambos quisessem. Se fosse por isso, Trump e Kim nem teriam cogitado de se reunir: há oito meses, Kim chamava Trump de “velho caduco que domesticarei com fogo” e era apelidado por ele de “homem-foguete numa missão suicida”.

A retórica abrasiva voltou, sobretudo do lado norte-coreano: “Não vamos suplicar aos EUA por um diálogo nem nos preocupar em convencê-los se eles não quiserem se sentar conosco”, disse Choe, antes do cancelamento. E acrescentou que caberia aos EUA decidir se “se encontrarão conosco numa sala de reunião ou num confronto nuclear”.

A ameaça é um pouco destoante das últimas medidas anunciadas pela própria Coreia do Norte. Na mesma quinta-feira do cancelamento, autoridades norte-coreanas convidaram jornalistas estrangeiros a presenciar o que segundo elas era a destruição de três túneis, torres de observação, uma usina metalúrgica e alojamentos no campo de testes nucleares de Punggye-ri, na região montanhosa a nordeste do país.

Não havia inspetores nucleares para avaliar o que de fato foi feito, e tudo indica que não haverá mais, pelo menos naquele local, já que toda a infra-estrutura para isso também foi desmantelada.

Trump não faz referência na carta a essa destruição, mas agradece o gesto de Kim do dia 8, de soltar três cidadãos americanos de origem coreana que estavam presos na Coreia do Norte. “Senti que um diálogo maravilhoso estava se construindo entre você e eu, e afinal de contas, é esse diálogo que importa”, salientou o presidente americano. “Um dia, espero muito encontrá-lo.”

Porta mais aberta, impossível. Mas, então, por que passar por ela de uma vez agora? A resposta está em outro lugar. Trump vinha repetindo nos últimos dias que os dois encontros de Kim, de março para cá, com o presidente chinês, Xi Jinping, fizeram o líder norte-coreano endurecer nos preparativos para a cúpula.

O papel de Xi 

Depois de anos de estranhamento, em que a China cedeu a pressões dos EUA e impôs sanções que vinham asfixiando a economia norte-coreana, em tudo dependente da chinesa, Xi voltou a exercer influência sobre Kim. A disposição do dirigente norte-coreano em negociar com a Coreia do Sul e os Estados Unidos e sua promessa de “desnuclearizar” a Península Coreana agradaram o presidente chinês, que não deseja um conflito envolvendo os EUA nas suas fronteiras. E criaram as condições para Xi relaxar as sanções — o objetivo de mais curto prazo de Kim.

“Eu acho que Xi disse a Kim para ir mais devagar,” suspeita o embaixador Joseph Yun, que entre outubro de 2016 e março deste ano foi representante especial do governo americano para relações com a Coreia do Norte. “Acho também que Kim estava sendo pressionado a recuar pelo seu próprio pessoal, da mesma forma que Trump estava.”

Os EUA estão tentando convencer a China a reduzir o déficit americano de 375 bilhões de dólares por ano no comércio bilateral. Os americanos pressionaram os chineses a importar pelo menos 200 bilhões de dólares a mais. A China aceita aumentar as importações, mas não nesse montante.

Há um ponto bem mais sensível. Trump acusa os chineses de violar os direitos de propriedade intelectual das empresas americanas. Para se instalar na China, uma empresa estrangeira precisa fazer uma joint-venture com uma chinesa. Muitas vezes, o know-how do “sócio” estrangeiro acaba nas mãos de uma empresa local, que se torna sua concorrente.

Xi, no entanto, descarta rever essa prática, central no seu programa de inovação industrial Made in China 2025. Na quinta-feira, enquanto Trump cancelava o encontro com Kim, Xi recebia a chanceler alemã Angela Merkel em Pequim.

“A Alemanha está convidada a aproveitar as oportunidades criadas pela nova rodada de abertura da China, e os dois países devem cooperar mais em indústrias do futuro”, declarou o presidente, segundo a imprensa oficial chinesa.

Merkel retribuiu chamando a China de “importante membro da comunidade internacional, e um parceiro comercial significativo para a Alemanha”, de acordo com o jornal China Daily. Alemanha e China são os maiores exportadores do mundo, a primeira em valor agregado, a segunda em volume.

No fim de semana anterior ao cancelamento, negociadores chineses saíram de Washington levando concessões e dando pouco em troca. O governo americano aceitou adiar a imposição de sobretaxas a produtos chineses, no valor de até 150 bilhões de dólares. Os chineses não se comprometeram nem a importar muito mais nem a adotar restrições ao uso de tecnologia tirada de empresas americanas.

Foi o próprio Trump quem estabeleceu ligações entre suas negociações comerciais e seus objetivos geopolíticos, em todas as frentes. Sua forma de negociar, da qual muito se orgulha, não parece estar dando resultados. Em um evento mais tarde na Casa Branca, ele próprio qualificou o cancelamento de “grande retrocesso”.

“Se você mudar de ideia com relação a essa importante cúpula, não hesite em me ligar ou escrever”, pede Trump na carta, como se não fosse ele quem estivesse cancelando o encontro, e demonstrando o quanto ele estava apostando nele.

Trump considerava essa negociação uma oportunidade de adquirir uma imagem de estadista, e chegou a insinuar que poderia ganhar o Prêmio Nobel da Paz se obtivesse a desnuclearização da Coreia do Norte. Parece que para ele e seus assessores nunca ficou muito claro que os norte-coreanos queriam a desnuclearização de toda a Península, o que envolveria a retirada americana. Se é que realmente queriam.

Nesse caso, ninguém quer assumir a responsabilidade pelo fracasso. Para a Coreia do Norte também rendeu frutos a disposição de negociar, com o relaxamento das sanções chinesas.

Kim Kye Gwan, primeiro-vice-ministro das Relações Exteriores (eles têm mais de um), declarou na sexta-feira: “Nosso objetivo e desejo de fazer tudo pela paz e a estabilidade da Península Coreana e da humanidade continua o mesmo, e estamos sempre dispostos a dar tempo e oportunidade ao lado americano com uma mente ampla e aberta. Temos disposição de nos sentar a qualquer momento, de qualquer forma, para resolver as questões”.

Mas “as questões” não são apenas da Península Coreana, dividida entre o norte comunista e o sul capitalista desde os anos 50, o que já seria suficientemente complexo.

Na quarta-feira, véspera do cancelamento da cúpula, os Estados Unidos retiraram o convite à China para participar dos exercícios navais mais importantes do mundo, os Rimpac, na Bacia do Pacífico, dos quais fazem parte cerca de 30 países. O motivo foi a instalação de armas chinesas nas ilhas Spratly, disputadas por China, Vietnã, Filipinas, Malásia e Brunei.

Os chineses vinham construindo nas ilhas, mas afirmavam que as instalações eram de uso civil, para assistir a segurança no mar, resgates e proteção de pescadores. A China havia participado dos Rimpac em 2014 e 2016. Sua ausência nas manobras de 27 de junho a 2 de agosto é mais uma amostra do aumento das tensões entre China e EUA.

Quando o Pentágono fez o anúncio, o chanceler chinês, Wang Yi, estava visitando em Washington o secretário americano de Estado, Mike Pompeo, que cuidou dos preparativos da reunião Trump-Kim, agora cancelada. Wang comentou que a decisão “não é construtiva”. Pompeo respondeu que ela era do Pentágono e não lhe cabia comentar.

Depois do cancelamento da cúpula, Trump disse que se mantinha aberto ao diálogo mas que havia conversado com o secretário de Defesa, Jim Mattis, e ameaçou a Coreia do Norte com uma ação militar se ela cometesse qualquer “ato impensado”.

O presidente acrescentou ter falado também com o presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, que estivera na terça em Washington para conversar sobre a cúpula, e com o primeiro-ministro do Japão, Shinzo Abe. Os dois países mantêm acordos de defesa mútua com os EUA e, segundo Trump, estão prontos para arcar com boa parte dos custos financeiros de uma ação militar “se uma situação infeliz nos for imposta”.

A abordagem, digamos, “holística” de Trump, mesclando comércio e geopolítica, tem tirado força de suas posições, pelo menos perante negociadores tão duros quanto a China e a Coreia do Norte. A falta de coesão do governo Trump também não ajuda.

No domingo 20, por exemplo, enquanto o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, dizia que a sobretaxação de produtos chineses estava congelada, o representante de Comércio dos EUA, Robert Lighthizer, ameaçava “usar todos os meios para proteger nossa tecnologia, por meio de tarifas, restrições ao investimento e regulações de exportação”.

Isso afeta a eficiência dos negociadores americanos. Em contraste, a equipe de negociadores chinesa trabalha de forma coesa, sob a coordenação do vice-primeiro-ministro Liu He, amigo de longa data do presidente Xi.

Acima de tudo, o desfecho dessas múltiplas negociações mostra as diferenças de objetivos entre EUA, China e Coreia do Norte. Neste cenário tão complexo, cartas explicam mais do que tuítes.

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