O jogo do dólar na Venezuela
Para quem vê há anos as notícias sobre as filas imensas para comprar produtos de primeira necessidade na Venezuela, e sua total desorganização econômica, a pergunta que vem à cabeça é: como ainda não houve uma explosão social nesse país? A resposta é um sofisticado — e perverso — sistema de acomodação que permite aos […]
Da Redação
Publicado em 13 de maio de 2016 às 17h55.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h10.
Para quem vê há anos as notícias sobre as filas imensas para comprar produtos de primeira necessidade na Venezuela, e sua total desorganização econômica, a pergunta que vem à cabeça é: como ainda não houve uma explosão social nesse país? A resposta é um sofisticado — e perverso — sistema de acomodação que permite aos mais ricos lucrar com as três taxas de câmbio coexistentes e aos mais pobres sobreviver passando o dia nas filas ou comprando no contrabando interno para revender a clientes com alguma renda.
O dólar tem duas cotações oficiais: a “preferencial”, a 10 bolívares, e a “regulada”, a 400 bolívares. E há o valor no mercado livre: 1.125 bolívares. O governo determina quais empresas podem importar de acordo com uma taxa ou com a outra. O ganho, nessa diferença, é brutal. E o critério é, muitas vezes, político. Empresas que apoiam o governo usam a taxa preferencial. Os militares estão envolvidos nos negócios de importação e de distribuição de alimentos, minérios e combustíveis. Assim, o governo garante apoio político com o simples manejo do câmbio.
Em 2005, 85% das importações eram realizadas por empresas privadas. Hoje, essa fatia é de 50%. “Mas mesmo as privadas também são públicas, controladas por parentes de generais e de ministros, e com acesso ao dólar preferencial”, observa Luis Vicente León, diretor do Datanálisis, o mais importante instituto de pesquisas de opinião pública da Venezuela. “Trata-se de uma drenagem de dinheiro público para mãos privadas.”
De acordo com o economista José Guerra, atualmente deputado pela oposição, as empresas importadoras de alimentos e produtos farmacêuticos, por exemplo, têm acesso ao dólar barato para importar as mercadorias, e as indústrias, para comprar matérias-primas. “Nem todos têm acesso”, diz Guerra, ex-gerente de pesquisas econômicas do Banco Central venezuelano. “Os intermediários, ou traders, entre as grandes companhias estrangeiras e o Estado têm enriquecido mais do que o resto.” Segundo ele, 85% das importações são realizadas em dólar preferencial.
“Indústria parada, indústria tomada”
Entretanto, a indústria de bebidas, alimentos e produtos de higiene Polar, maior empresa do país, tem tido de paralisar as atividades em algumas de suas fábricas por falta de acesso ao dólar para importar insumos. Seguindo o lema do presidente Nicolás Maduro, “indústria parada, indústria tomada”, o governo confiscou no início do mês duas fábricas de cerveja da empresa, que detém 70% do mercado da bebida. Maduro acusa o dono da Polar, Lorenzo Mendoza, de “esconder” sua produção para não obedecer aos tabelamentos de preços, causar desabastecimento e assim desestabilizar o governo. Deputados governistas apresentaram no ano passado a acusação de “traição da pátria” contra Mendoza no Ministério Público por supostamente ter se reunido com representantes do Fundo Monetário Internacional para pedir ao órgão interviesse no país. Dono de uma fortuna de 1,5 bilhão de dólares, segundo a revista Forbes, Mendoza, que estudou nos Estados Unidos, é considerado por Maduro um representante da “oligarquia” venezuelana.
Tirando casos como o de Mendoza, os empresários têm conseguido se aproveitar das distorções cambiais. “Muitos venezuelanos pouparam em dólares para proteger-se, num país que já está há mais de 30 anos com inflação de dois dígitos”, observa Guerra. “Não há incentivos para poupar em bolívares porque a taxa de juro está muito abaixo da inflação.” O índice atual é de 180%, considerado o mais alto do mundo. Isso porque houve uma mudança no cálculo. Pelo critério anterior, a inflação estaria em 240%. Os preços de alimentos e bebidas, que representam 40% do orçamento familiar, subiram 350%, de acordo com o Datanálisis. O FMI prevê que chegará a 2.200% no ano que vem.
A inflação está associada ao desabastecimento do mercado formal, o que vem crescendo ano a ano. Segundo León, a falta dos produtos em geral subiu de 59%, em 2014, para 66%, no ano passado, e já atinge 80% dos artigos com preços regulados. As pesquisas do Datanálisis indicam que 80% dos venezuelanos têm dificuldade para encontrar medicamentos — “que são mais difíceis de substituir do que comida”, lembra León.
As filas de cerca de 7 horas para comprar os produtos criaram uma nova categoria profissional: os bachaqueros. O nome vem das formigas que carregam suprimentos para o formigueiro e surgiu na fronteira entre a Colômbia e a Venezuela para designar o que no Brasil chamamos de “sacoleiros”. Os bachaqueros saem das filas e vão imediatamente vender seus produtos por dez a 20 vezes mais do que o preço regulado pelo qual compraram.
Funcionários públicos com acesso privilegiado aos produtos com preços regulados vendem as mercadorias com lucro para os bachaqueros, que as revendem também. Isso proporciona uma ocupação e uma fonte de renda para uma parcela importante da população, que de outro modo estaria desempregada ou entregue à criminalidade — já bastante alta na Venezuela. Segundo León, 40% dos venezuelanos se definem bachaqueros. Eles também vendem nas ruas produtos com preços não regulados, como lanches, salgadinhos e refrigerantes.
“Todos os setores aproveitam a disparidade do câmbio para obter lucro”, analisa Carlos Romero, professor de ciência política na Universidade Central da Venezuela. “Essa situação permite explicar por que não ocorreu um estampido social. O problema é prever até quando haverá recursos. Os empresários querem dólares, os bachaqueros revendem e a classe média assalariada está fora do jogo. Ainda há como manter esse jogo, apesar da escassez de dólares.”
O assalariado é quem perde
“A população não explode porque os extratos mais altos têm compensações que lhes permitem viver”, concorda León. “As pessoas suprem 20% de suas necessidades no mercado negro, que serve de estabilizador do sistema, provendo alimentos e divisas. A escassez nos lares é muito menor do que no varejo porque os consumidores pagam de dez a 20 vezes mais do que o preço do mercado formal.” O próprio León conta que comprou uma bateria para seu carro da cabeleireira de sua mulher. “Ela tem o contato.” E que sua secretária na empresa é quem lhe fornece café. Há os bachaqueros de luxo, que levam as mercadorias em SUVs. “O bachaquero vende 20 vezes mais barato do que em Miami”, diz ele, graças à desvalorização do bolívar no câmbio paralelo. No balanço entre os três tipos de câmbio, o pesquisador calcula que o consumidor pague, em média, 400 bolívares por dólar.
“Quem mais perde é o assalariado”, confirma León. “Sua capacidade de compra está deteriorada. Ele paga com cartão de crédito não só o supermercado mas até mesmo a escola dos filhos. E se endivida.” Aqui, outra válvula de escape: o juro é de 24%, para uma inflação de 180%. “Não se sabe quando explodirá o endividamento.”
Na última pesquisa do Datanálisis, em abril, 92% dos venezuelanos consideraram a situação ruim ou péssima. Nas eleições de dezembro para a Assembleia Nacional, a oposição derrotou o governo por 56% a 41% dos votos. A coalizão oposicionista ficou com 112 cadeiras; e os chavistas, com 55. Mesmo assim, o governo de Maduro está blindado. No apagar das luzes da assembleia anterior, dominada pelos chavistas, os deputados aprovaram a antecipação da aposentadoria de 16 dos 32 juízes do Tribunal Supremo de Justiça, substituídos por magistrados leais ao governo. Agora todas as leis aprovadas pela assembleia que vão contra os interesses de Maduro são anuladas pelo TSJ.
Por maiores que sejam o controle do regime e as válvulas de escape na economia, a situação continua se deteriorando. Diante da falta de energia elétrica, os apagões, que já eram comuns, foram oficializados: 4 horas por dia. O governo determinou que os funcionários públicos — um terço da força de trabalho do país — deem expediente só às segundas e terças-feiras, e as escolas estão fechando às sextas, tudo isso para economizar energia. A situação se agravou com a seca causada pelo fenômeno El Niño, que reduziu o nível dos reservatórios da Hidrelétrica de Guri, a maior do país e a quarta do mundo. A lâmina de água chegou a apenas 1,5 metro acima do nível em que as turbinas param. Além disso, de acordo com o jornal El Universal, 60% das unidades de geração da usina estão desligadas ou operando abaixo da capacidade por falta de manutenção.
Durante um blackout de 12 horas no estado de Zulia, no noroeste do país, houve uma explosão de revolta de moradores, que atacaram a sede da estatal de eletricidade Corpoelec, saquearam lojas e atearam fogo a um ônibus.
A dívida impagável
A Venezuela possui as maiores reservas de petróleo do mundo. A construção da Hidrelétrica de Guri, concluída em 1986, foi parte de uma estratégia de destinar à exportação o máximo possível do petróleo produzido no país, em vez de queimá-lo em termoelétricas para produzir energia para o consumo interno. A dependência do petróleo cresceu com o desmantelamento dos setores produtivos agrícola e industrial, castigados pelas políticas de estatização e controle de preços, e por um ambiente em geral hostil à iniciativa privada.
Hoje, o petróleo responde por 95% das exportações venezuelanas, mesmo com a queda no preço do barril. Durante boa parte de seu governo, Chávez, que assumiu em 1999 e morreu em 2013, sendo substituído por Maduro, surfou a onda do petróleo caro. Agora, a Venezuela não tem capacidade de aumentar a produção para compensar a queda no preço do petróleo. “Não foram feitos investimentos quando havia receitas suficientes”, explica Guerra. “A PDVSA é uma empresa destruída do ponto de vista produtivo.” No período de Chávez, de 1999 a 2013, a produção de petróleo caiu 25%. Depois de uma greve da PDVSA, estatal do petróleo, para exigir a saída de Chávez, entre dezembro de 2002 e fevereiro de 2003, o então presidente mandou demitir 15.000 de seus funcionários. Com o expurgo em massa, a estatal perdeu inúmeros engenheiros e gerentes experientes e qualificados. Isso resultou no sucateamento da companhia.
Com isso, as reservas venezuelanas em moeda forte estão caindo rapidamente. Em 2015, elas diminuíram 9 bilhões de dólares. O ano começou com 25 bilhões e terminou com 16 bilhões de dólares. Como o país recebeu 2 bilhões de dólares em pagamentos de dívida da República Dominicana e outros 2 bilhões do FMI, vendeu uma refinaria nos Estados Unidos por 2 bilhões de dólares e outros 2 bilhões de suas reservas em ouro, na verdade queimou 17 bilhões de dólares em moeda forte no ano passado, em números arredondados, segundo cálculos de León.
A venda das reservas em ouro é mais um dos paradoxos da economia venezuelana. Chávez mandou em 2011 repatriar o ouro que estava depositado em bancos dos Estados Unidos, Canadá e Europa, em meio a uma grande euforia nacionalista. Agora, o ouro está sendo vendido para a Suíça. A agência Reuters noticiou em fevereiro que a Venezuela estava negociando com o Deutsche Bank um swap para pagamento de suas dívidas em ouro.
“É uma medida desesperada, uma vez que já foram vendidos os ativos nacionais e as reservas do BC estão exauridas”, avalia Guerra. “É como vender as joias da coroa.” A Venezuela tem dívidas a vencer em outubro e novembro deste ano que somam 5 bilhões de dólares. “A questão não é se a Venezuela vai declarar moratória, mas quanto”, comenta Russ Dallen, da LatInvest, banco de investimento de Miami especializado na América Latina. “Eles estão ficando sem opções.”
A economia venezuelana deve encolher 5,7% neste ano e mais 8% no ano que vem, segundo projeções do FMI. O desemprego deve atingir 17% em 2016 e 21% em 2017. O governo, o mercado e os venezuelanos precisarão de muita criatividade para manter o nariz acima da água.
(Lourival Sant’Anna)