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O cerco se fecha contra Cristina Kirchner

Unidade Cidadã obteve apenas 20% dos votos nas eleições legislativas — metade do bloco liderado pelo presidente Mauricio Macri

CRISTINA DEIXA TRIBUNAL NA QUINTA-FEIRA: Cristina ganhou uma vaga no Senado, e com ela o foro privilegiado, mas isso está longe de blindar um político cravejado de investigações / Marcos Brindicci/ Reuters
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Da Redação

Publicado em 28 de outubro de 2017 às 10h59.

Última atualização em 28 de outubro de 2017 às 10h59.

Não foi uma semana muito promissora para a ex-presidente Cristina Kirchner . Sua Unidade Cidadã obteve apenas 20% dos votos nas eleições legislativas — metade do bloco liderado pelo presidente Mauricio Macri e o mesmo que a soma dos grupos peronistas “no K”, como se diz na Argentina, que não a apoiam.

Cristina ganhou uma vaga no Senado, e com ela o foro privilegiado, mas na quarta-feira ficou claro que isso está longe de blindar um político cravejado de investigações de corrupção e abuso de poder, como é o caso dela: por 175 votos a zero e uma abstenção, a Câmara dos Deputados aprovou o “desafuero”, como dizem os argentinos, de Julio de Vido, todo-poderoso ex-ministro do Planejamento, Investimentos Públicos e Serviço, a pedido de dois juízes, que o mandaram imediatamente para a cadeia.

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De Vido ocupou o ministério durante todo o governo de Néstor Kirchner e de sua sucessora e mulher Cristina, entre 2003 e 2015. Nessa função, controlou ou viu de perto a entrada e saída de propinas em troca de obras públicas e outros malfeitos do casal de populistas de esquerda na Casa Rosada.

De acordo com o Departamento de Justiça americano, só a construtora brasileira Odebrecht teria pagado 35 milhões de dólares a políticos argentinos. Mas isso é dinheiro de pinga perto do vulto de outras falcatruas investigadas. Segundo um dos processos que ocasionaram sua prisão, De Vido teria desviado 7 bilhões de dólares na importação de gás natural liquefeito. O outro processo envolve desvio de dinheiro de uma jazida de carvão na província de Santa Cruz, terra natal dos Kirchner.

Recentemente na Argentina foi aprovada uma lei de delação premiada, ainda não colocada em prática. Um eventual acordo do Ministério Público com De Vido teria o potencial de uma bomba atômica sobre Cristina e seu grupo. Não que ele seja o único “arquivo vivo” de seu governo atrás das grades: os ex-ministros dos Transportes, Ricardo Jaime, de Obras Públicas, José López, e da Energia, Roberto Baratta, já haviam sido presos.

O fato de os cristinistas não terem votado contra a retirada de imunidade de De Vido, e de muitos oposicionistas terem votado a favor, mostra o ambiente político na Argentina, contrário à corrupção e a favor do governo, grande vitorioso das eleições de domingo.

Mas a semana não terminou aí. Cristina, que afinal ainda não tomou posse como senadora, assim como o também ex-presidente Carlos Menem, ainda tiveram de depor na quinta-feira perante a Justiça federal sobre a suspeita que recai sobre ambos de terem encoberto o envolvimento de iranianos no atentado a bomba em 1994 contra a Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), que deixou 86 mortos.

Menem é filho de imigrantes sírios muçulmanos. Cristina estava alinhada com o eixo anti-americano composto por regimes como o do Irã, da Venezuela, da Bolívia e do Brasil sob Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

Além do atentado em si, o caso envolve a morte do procurador Alberto Nisman, cujo corpo foi encontrado em seu apartamento em janeiro de 2015 horas antes de ele apresentar um relatório de 288 páginas com suas conclusões sobre o encobrimento do Irã. O provável crime foi organizado de modo a simular suicídio. Não havia sinais de arrombamento, mas foi encontrada uma entrada secreta para o apartamento.

Acusada de traição da pátria por um suposto acordo secreto com o Irã, Cristina assumiu uma postura desafiadora frente ao juiz Claudio Bonadio: “O senhor paralisou essa investigação durante quase cinco anos. Foi acusado de proteger outros imputados. Do senhor não espero justiça, mas confio plenamente que, quando se restituir na Argentina o Estado de Direito, a justiça que reivindico finalmente se proverá”, disse a candidata a presidente em 2019 — se não estiver presa, claro.

Ela ainda acusou o governo: “O objetivo dessa perseguição é atemorizar os dirigentes da oposição. Querem calar a oposição no Parlamento, que se fale de outras coisas e não do ajuste”, continuou, referindo-se ao corte de gastos públicos implementado por Macri. “Comigo não vão poder. A única traição à pátria que há hoje no país é utilizar o Poder Judiciário para perseguir os opositores”.

Menem, senador reeleito, apelou contra a sentença de sete anos e meio de prisão e 14 de inelegibilidade em um outro processo, pela venda ilegal de armas ao Equador e à Croácia. Se ele perder, terá de abrir mão da cadeira no Senado e cumprir prisão domiciliar, por sua idade avançada, de 87 anos. Assim como o grupo de Cristina perdeu em Santa Cruz, o de Menem foi derrotado em sua província natal, La Rioja.

De acordo com o sociólogo Juan Carlos Tejada, diretor da consultoria Jefferson Davis, de Buenos Aires, a prisão de De Vido aumenta as probabilidades de investigação e prisão de Cristina. “Rompeu-se a barreira do imaginário nacional de que ‘aqui ninguém vai preso’”, observou Tejada a EXAME.

“De Vido é Kirchner”, sintetiza o analista. “O presidente falecido idealizou a corrupção e De Vido foi responsável e executor da arquitetura da operação de desfalque do Estado que vem desde a província de Santa Cruz, que eles também governaram.”

Mesmo na oposição, De Vido presidia a estratégica Comissão de Energia e Combustíveis da Câmara dos Deputados. Para Tejada, sua prisão é um fato simbólico muito significativo. “Era o homem que tinha o poder real. Administrava um caixa de 237 bilhões de dólares, e com práticas fraudulentas muito explícitas. A percepção de impunidade que eles tinham os fez cometer muitos erros, razão pela qual os fatos praticamente mostram por si mesmos a corrupção.”

O cientista político Sergio Berensztein, diretor da consultoria que leva seu sobrenome, em Buenos Aires, lembra que a retirada de imunidade parlamentar de De Vido já estava sendo costurada na Câmara desde antes das eleições de domingo. “Há um mês e meio, por muito poucos votos ele não foi expulso da Câmara, por causa das denúncias acumuladas na Justiça”, disse o consultor a EXAME.

“Muitos não votaram a favor porque não havia ordem de detenção da Justiça”, explicou. “Agora, tinha duas, uma delas ratificada pela Câmara Federal de Apelações. Já não havia desculpas.” Pelo menos para os padrões argentinos.

Tejada não tem dúvidas de que o triunfo no domingo da frente de partidos Cambiemos (“Vamos mudar”), que apoia o governo Macri, precipitou a evasão das fileiras kirchneristas na Câmara, facilitando a votação do “desafuero”. “O ambiente é de respaldo da população ao castigo aos corruptos e devolução do dinheiro roubado.”

A socióloga Graciela Römer, diretora da consultoria de mesmo nome, em Buenos Aires, também acredita que haja “uma mudança de atitude, que se estende aos juízes federais, a respeito do descaso que mostraram durante o kirchnerismo”. Para ela, “isso alimenta a esperança de que a Justiça comece lentamente a reconsiderar sua complacência com o poder político que ficou em evidência durante os 12 anos de governos Kirchner”.

Römer acrescentou a EXAME: “O triunfo contundente de Macri domingo passado e especialmente a possibilidade de que o governo de Cambiemos possa estender-se até 2023 (com reeleição em 2019), torna os juízes federais especialmente sensíveis, por assim dizer, ao poder de turno, e os faz levantar o freio em muitas ações que estão paradas, vinculadas a abusos de poder e subornos no governo anterior”.

Novos problemas para Cristina

Além da acusação de traição da pátria, Cristina tem outras duas “espadas de Dâmocles” sobre sua cabeça, aponta Tejada: uma operação com dólar futuro que causou prejuízo ao Tesouro e seu meteórico crescimento patrimonial na compra de hotéis, que envolveu verbas para obras públicas. Entretanto, pelo ritmo da Justiça, os julgamentos não devem acontecer antes do fim de 2018 ou início de 2019. E a imunidade parlamentar, mesmo não blindando totalmente, ajuda a tornar os processos mais morosos.

Tejada, cuja consultoria realiza pesquisas de opinião, avalia que a retórica de Cristina em sua defesa contra os processos e também em suas críticas ao governo acaba favorecendo Macri, ao “manter vivo na memória da população o passado ao qual não se quer voltar”. E também porque desvia a atenção — como apontou a própria ex-presidente — das impopulares medidas de ajuste que o governo terá de adotar para reduzir o déficit fiscal, como cortes nos subsídios para os serviços públicos. Talvez por isso houvesse um interesse de deixá-la “livre e falando”, analisa ele.

Berensztein observa que “alguns governadores peronistas (a corrente populista da qual o kirchnerismo se ramificou) querem renovar o Partido Justicialista e mostrar para a sociedade que desejam o fim da impunidade”.

Nesse contexto, o próximo a ser preso pode ser o deputado Maximo Kirchner, filho de Cristina, prevê o analista. “Há várias investigações contra ele, e se houver pedido de prisão preventiva, também lhe tirarão o foro privilegiado e ele será preso”.

A grande questão é se Cristina terá o mesmo fim. Para que isso aconteça, terá de ser alvo de ordem de prisão ratificada pela Câmara de Apelações. “O risco dela é enorme”, estima Berensztein. “Há muitos ex-funcionários do governo dela presos. Nossa lei de arrependidos não é tão boa quanto a do Brasil, mas eles podem delatá-la.”

O consultor afirma que os escândalos na Argentina foram “grosseiros, iguais ou superiores ao Petrolão” do Brasil. “Muitos estão pessimistas, creem que os processos não vão avançar, porque não temos um (juiz Sérgio) Moro aqui, com convicção e apoio da sociedade e da imprensa”, disse ele a EXAME. “Eu não sou tão pessimista. As provas são tão claras que um juiz não precisa ser tão bom para avançar.”

Com base na experiência brasileira, é inevitável a pergunta: e o presidente, não está envolvido? A ação que chegou mais perto de Macri até agora é uma que envolve a Odebrecht, de pagamento de propina para conseguir a obra de soterramento da Ferrovia Sarmiento, em Buenos Aires, orçada em 3 bilhões de dólares.

O contrato foi assinado em 2006. Na época, Macri era governador da capital. A empresa Iecsa, que pertencia a seu primo Angelo Calcaterra, foi incluída no consórcio. A construtora pertencera antes ao grupo fundado pelo pai de Macri, Francesco.

Havia especulações de que ela pertenceria na verdade ao então governador. Apenas 3% foi executado até 2016, quando a obra tomou impulso, já com Macri na presidência. Entretanto, não foi provado envolvimento dele no caso, assinala Berensztein. “Não se sabe se chegará à Justiça.”

Por enquanto, Macri assiste de camarote a sua principal adversária em apuros.

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