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Inglaterra passa a limitar mudança de gênero em menores de idade

Especialistas pedem mais estudos e testes clínicos para entender os efeitos no longo prazo

Estudo indica que poucas crianças trans se arrependem da transição após 5 anos (Vuk Valcic/SOPA Images/LightRocket/Getty Images)

Estudo indica que poucas crianças trans se arrependem da transição após 5 anos (Vuk Valcic/SOPA Images/LightRocket/Getty Images)

Agência o Globo
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Agência de notícias

Publicado em 10 de abril de 2024 às 14h09.

Última atualização em 10 de abril de 2024 às 15h47.

O Serviço Nacional de Saúde britânico (NHS, na sigla em inglês) começou a restringir, neste mês, os tratamentos de gênero para menores. A mudança deve-se ao resultado de uma análise de quatro anos divulgada na noite de terça-feira pela doutora Hilary Cass, uma pediatra. Com a medida, a Inglaterra torna-se o quinto país europeu a limitar os medicamentos devido à falta de evidências de seus benefícios e à preocupação com os danos no longo prazo.

"Para a maioria dos jovens, um caminho médico não será a melhor maneira de lidar com a angústia relacionada ao gênero" concluiu o relatório. Em um editorial relacionado, publicado em uma revista médica, Cass disse que a evidência de que os tratamentos de gênero para jovens eram benéficos foi "construída sobre bases instáveis".

O NHS não oferecerá mais medicamentos que bloqueiam a puberdade, exceto para pacientes inscritos em pesquisas clínicas. E o relatório recomendou que hormônios como a testosterona e o estrogênio, que estimulam mudanças físicas permanentes, sejam prescritos a menores com "extrema cautela". As diretrizes não se aplicam a médicos em consultório particular, que atendem a uma pequena fração da população.

Onda europeia

A medida da Inglaterra faz parte de uma mudança mais ampla no norte da Europa, onde as autoridades de saúde têm se preocupado com o aumento da demanda por tratamentos de gênero para adolescentes nos últimos anos. Muitos pacientes também têm problemas de saúde mental que dificultam a identificação da causa principal de sua angústia, conhecida como disforia.

Em 2020, a agência de saúde da Finlândia restringiu o procedimento, recomendando a psicoterapia como o principal tratamento para adolescentes com disforia de gênero. Dois anos depois, a Suécia restringiu os tratamentos com hormônios a "casos excepcionais".

Em dezembro, as autoridades regionais de saúde da Noruega designaram a medicina de gênero para jovens como um "tratamento em teste", o que significa que os hormônios serão prescritos apenas para adolescentes em testes clínicos. E na Dinamarca, as novas diretrizes que estão sendo finalizadas este ano limitarão os tratamentos com hormônios a adolescentes transgêneros que tenham experimentado disforia desde a infância.

Vários grupos de defesa de pessoas trans na Europa condenaram as mudanças, dizendo que elas infringem os direitos civis e agravam os problemas dos sistemas de saúde sobrecarregados. Na Inglaterra, cerca de 5,8 mil menores estavam na lista de espera para serviços de gênero no final de 2023, de acordo com o NHS.

"Sabe-se que a lista de espera é infernal", disse N., um rapaz transgênero de 17 anos do sul da Inglaterra que pediu para não revelar seu nome completo por questões de privacidade.

Ele está na lista de espera há cinco anos, período em que foi diagnosticado com autismo e depressão.

"Além do pânico transgênero que nosso próprio governo está promovendo, nos sentimos esquecidos e deixados para trás", desabafou.

EUA x Europa

Nos Estados Unidos, os políticos republicanos citaram o retrocesso na Europa para justificar as leis contra o tratamento de gênero para jovens. Mas as políticas europeias são notavelmente diferentes das proibições totais para adolescentes aprovadas em 22 estados americanos, algumas das quais ameaçam os médicos com pena de prisão ou investigam os pais por abuso infantil.

Os países europeus ainda permitirão tratamentos de gênero para determinados adolescentes e estão exigindo novos testes clínicos para estudar e entender melhor seus efeitos.

"Não proibimos o tratamento", disse a doutora Mette Ewers Haahr, psiquiatra que dirige a única clínica de gênero para jovens da Dinamarca, em Copenhague.

Haahr afirma que os tratamentos eficazes devem considerar os direitos humanos e a segurança do paciente:

"É preciso equilibrar ambos."

Em fevereiro, a Academia Europeia de Pediatria reconheceu as preocupações sobre a medicina de gênero para jovens. "A questão fundamental de saber se os tratamentos biomédicos (incluindo a terapia hormonal) para a disforia de gênero são eficazes permanece contestada", escreveu o grupo.

Por outro lado, a Academia Americana de Pediatria reafirmou no verão passado (Hemisfério Norte) seu endosso ao tratamento, declarando que os tratamentos hormonais são essenciais e devem ser cobertos pelas seguradoras de saúde, além de encomendar uma revisão sistemática das evidências.

Do pioneirismo ao retrocesso

Os europeus foram os pioneiros no uso de tratamentos de gênero para jovens. Na década de 1990, uma clínica em Amsterdã começou a administrar medicamentos bloqueadores de puberdade a adolescentes que se sentiam de um gênero diferente desde a infância. Os médicos argumentaram que os medicamentos poderiam dar tempo aos pacientes jovens com disforia de gênero para explorar sua identidade e decidir se deveriam continuar com os hormônios para fazer a transição.

Para os pacientes que estão enfrentando a puberdade masculina, os medicamentos evitariam as mudanças físicas — como uma voz mais grave e pelos faciais — que poderiam dificultar a vida deles como mulheres na idade adulta. A pesquisa da equipe holandesa, publicada pela primeira vez em 2011 e que acompanhou um grupo cuidadosamente selecionado de 70 adolescentes, descobriu que os bloqueadores da puberdade, em conjunto com a terapia, melhoraram o funcionamento psicológico.

Esse estudo foi extremamente influente, inspirando clínicas de todo o mundo a seguir o protocolo holandês. Os encaminhamentos para essas clínicas começaram a aumentar por volta de 2014, embora os números continuem pequenos. Na clínica da Suécia, por exemplo, os encaminhamentos aumentaram de cerca de 50 adolescentes em 2014 para 350 em 2022. Na Inglaterra, esses números aumentaram de 470 em 2014 para 3,6 mil encaminhamentos em 2022.

Clínicas de todo o mundo relataram que o aumento foi impulsionado principalmente por pacientes criados como meninas. E, diferentemente dos participantes do estudo holandês original, muitos dos novos pacientes não sentiram angústia de gênero até a puberdade e tinham outros problemas de saúde mental, inclusive depressão e autismo.

Devido às mudanças, alguns médicos estão questionando a relevância das descobertas holandesas originais para os pacientes de hoje.

"O mundo inteiro está dando o tratamento a milhares, dezenas de milhares de jovens, com base em um estudo", explicou a doutora Riittakerttu Kaltiala, psiquiatra que lidera o programa de gênero para jovens na Finlândia desde 2011 e que se tornou uma crítica veemente do tratamento.

A própria pesquisa de Kaltiala descobriu que cerca de 80% dos pacientes da clínica finlandesa nasceram do sexo feminino e começaram a sentir angústia de gênero mais tarde na adolescência. Ela descobriu que muitos pacientes também tinham problemas psicológicos e não eram ajudados por tratamentos hormonais. Em 2020, a Finlândia limitou severamente o uso dos medicamentos.

Na mesma época, o governo sueco encomendou uma rigorosa revisão de pesquisa que encontrou "insuficientes" evidências para terapias hormonais para jovens. Em 2022, a Suécia recomendou hormônios apenas para "casos excepcionais", citando em parte a incerteza sobre quantos jovens podem optar por interromper ou reverter suas transições médicas no futuro, o que é conhecido como destransição.

Atendimento inadequado

Na Inglaterra, a preocupação com o aumento de novos pacientes chegou a um ponto de ebulição em 2018, quando 10 médicos da única clínica de gênero juvenil do NHS, conhecida como Tavistock Gender Identity Development Service, reclamaram formalmente que se sentiam pressionados a aprovar rapidamente menores, inclusive aquelas com sérios problemas de saúde mental, para o uso de bloqueadores da puberdade.

Em 2021, os clínicos da Tavistock publicaram um estudo com 44 menores que tomaram bloqueadores da puberdade que mostrou um resultado diferente do holandês: os pacientes que receberam os medicamentos, em média, não tiveram impacto na função psicológica.

Embora os medicamentos não tenham reduzido os pensamentos de autoflagelação ou a gravidade da disforia, os adolescentes estavam "extremamente entusiasmados por tomar o bloqueador", disse a doutora Polly Carmichael, diretora da clínica, em uma conferência em 2016.

E 43 dos 44 participantes do estudo optaram posteriormente por iniciar o uso de testosterona ou estrogênio, levantando questões sobre se o medicamento estava servindo ao propósito pretendido de dar aos adolescentes tempo para considerar se uma transição médica era adequada para eles.

Em 2020, o NHS encarregou Cass de realizar uma análise independente dos tratamentos. Ela encomendou revisões científicas e considerou as diretrizes internacionais sobre os cuidados, além de se reunir com jovens e suas famílias, adultos trans, pessoas que fizeram a transição, grupos de defesa e médicos.

A revisão concluiu que o padrão de atendimento do NHS era inadequado, com longas listas de espera para acesso a tratamentos medicamentosos e poucas rotas para abordar as preocupações com a saúde mental que podem estar contribuindo para a angústia de gênero. O NHS fechou o centro Tavistock no mês passado e abriu duas novas clínicas de gênero para jovens, que, segundo Cass, deveriam ter uma abordagem "holística", com mais apoio para pessoas com autismo, depressão e distúrbios alimentares, além de psicoterapia para ajudar os adolescentes a explorar suas identidades.

"As crianças e os jovens têm sido muito mal atendidos", disse Cass em uma entrevista com o editor do The British Medical Journal, publicada na terça-feira, e acrescentou: "Não consigo pensar em outra área de atendimento pediátrico em que damos aos jovens tratamentos potencialmente irreversíveis e não temos ideia do que acontece com eles na idade adulta".

Para Anna Hutchinson, psicóloga clínica em Londres e um dos membros da equipe de Tavistock que levantou as preocupações, afirmou que as mudanças promulgadas pelo NHS este mês eram "um reconhecimento de que nossas preocupações eram, de fato, válidas".

"É reconfortante saber que voltaremos a um caminho mais robusto e baseado em evidências para as decisões relacionadas a essas menores", disse.

Alguns críticos disseram que a Europa, assim como os EUA, também foi influenciada por uma reação crescente contra pessoas transgênero.

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