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Holanda: o voto contra o Islã

David Cohen A Holanda costuma ser citada como o clássico exemplo de que a diversidade produz riqueza. No século 17, sua tendência liberal impulsionou o comércio, enriqueceu o país e atraiu gente para quem a vida não era fácil em países menos afeitos a diferenças religiosas e sociais. Foi lá que o francês René Descartes […]

GEERT WILDERS: o candidato de extrema-direita do Partido pela Liberdade (PVV),  comparece a um debate às vésperas da eleição – 14/03/2017 / Phil Nijhuis/Reuters

GEERT WILDERS: o candidato de extrema-direita do Partido pela Liberdade (PVV), comparece a um debate às vésperas da eleição – 14/03/2017 / Phil Nijhuis/Reuters

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Da Redação

Publicado em 15 de março de 2017 às 09h11.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h18.

David Cohen

A Holanda costuma ser citada como o clássico exemplo de que a diversidade produz riqueza. No século 17, sua tendência liberal impulsionou o comércio, enriqueceu o país e atraiu gente para quem a vida não era fácil em países menos afeitos a diferenças religiosas e sociais. Foi lá que o francês René Descartes desenvolveu boa parte da filosofia racionalista, que Rembrandt criou um novo estilo na pintura e Bento Espinosa, descendente de judeus expulsos de Portugal, lançou as bases do pensamento ocidental moderno.

Também foram os holandeses que fundaram uma cidade na América do Norte (pouco depois de terem sido expulsos do Nordeste brasileiro) que chamaram de Nova Amsterdã, tão aberta que acolheu luteranos, católicos, anglicanos, puritanos, quakers e judeus e, mesmo depois de ter sido conquistada pelos ingleses e rebatizada como Nova York, manteve um espírito de tolerância com as diferenças. Wall Street, a rua do muro, é assim chamada porque ficava ali a parede que delimitava a cidade e a influência holandesa na época.

Quatro séculos depois disso tudo, as eleições parlamentares da Holanda parecem renegar toda essa tradição. O grande debate na disputa pelos votos no país é a imigração e assimilação dos muçulmanos à sociedade.

Aparentemente, o atual primeiro-ministro, Mark Rutte, decidiu adotar uma postura mais firme na questão dos imigrantes para recuperar terreno perdido para o líder do Partido da Liberdade, Geert Wilders, cuja plataforma é abertamente contra a imigração e contra o Islã.

No início da campanha eleitoral, Rutte, do Partido Popular pela Liberdade e Democracia, de centro-direita, tentou focar a disputa na recuperação econômica que ele promoveu desde que assumiu o governo, em 2010 (o nível de desemprego vem caindo desde então, e está em 5,3%). Mas Wilders foi subindo nas pesquisas com sua retórica anti-Islã, e Rutte tratou de reagir. Foi assim que a Turquia se tornou um personagem das eleições holandesas.

O truco do turco

O imbroglio entre Holanda e Turquia começou uma semana antes da votação holandesa, quando o governo expulsou uma ministra turca de entrar no país, onde queria fazer um comício para os turcos residentes na Holanda. Dias antes, os holandeses já haviam impedido o ministro do Exterior turco de entrar no país, pelo mesmo motivo.

Ocorre que a Turquia também está às voltas com uma votação. No caso, um plebiscito que o presidente Recep Tayyip Erdogan convocou para o dia 16 de abril para lhe dar poderes mais amplos. Entre as medidas que Erdogan quer implementar estão a possibilidade de se candidatar por mais dois mandatos, até 2029, o fim do cargo de primeiro-ministro, a chance de nomear juízes do Supremo Tribunal e um aumento do número de cadeiras no Congresso.

Essas medidas foram apresentadas em janeiro, meio ano depois de o governo Erdogan ter sobrevivido a uma tentativa de golpe militar. Mas, como não obteve a maioria de dois terços do Parlamento requerida para alterar a Constituição, o presidente convocou o plebiscito.

Para vencê-lo, Erdogan precisa do apoio da comunidade turca que mora fora do país – cerca de 4,6 milhões de pessoas no oeste europeu. Daí veio a ideia de fazer comícios no país dos outros.

Quando a tática foi rechaçada pelo governo holandês, Erdogan não freou a língua. Disse que os holandeses estavam se comportando como nazistas – o mesmo insulto que dirigiu à Alemanha, uma semana antes, quando autoridades do país impediram o ministro do Exterior turco de fazer dois comícios.

A subida de tom beneficia Erdogan. As rusgas com outros países costumam inspirar sentimentos nacionalistas e uma certa nostalgia pelo passado em que o império turco-otomano dominava boa parte da Europa.

Uma tranca para a sociedade aberta?

O que não é muito claro é por que a Holanda se deixou levar pela retórica anti-Islã. Sim, existe um político que subiu nas pesquisas com um lema de “Vamos fazer a Holanda ser nossa de novo”. Mas é altamente improvável que ele consiga tomar o poder.

Há 28 partidos disputando cadeiras no Parlamento. Nenhum deles tem uma liderança pronunciada. Isso significa que o próximo primeiro-ministro será aquele que tiver habilidade para formar uma coalizão de governo. Em geral, a prerrogativa é do líder do partido que obtiver mais votos, mas a maioria dos partidos já deixou claro que não negociará com Wilders.

Na véspera da eleição, algumas pesquisas indicavam que Rutte tinha assumido a liderança e conseguiria… cerca de 20% dos votos. Os outros 30% para atingir a maioria parlamentar teriam que ser obtidos pela negociação.

Também há sinais claros de que a retórica anti-Islã não mexe tanto assim com os holandeses. Até poucos dias atrás, mais da metade dos eleitores ainda estava indecisa. Embora a questão da imigração chame a atenção mundial, a integração de refugiados é apenas o nono item na lista de preocupações dos cidadãos. O primeiro é o sistema de saúde; o segundo é o seguro social; e apenas o terceiro tem algo a ver com sentimentos xenófobos (o combate ao terrorismo).

Em boa parte, a mudança do humor holandês em relação à diversidade religiosa – especificamente o islamismo – vem do assassinato do cineasta Theo Van Gogh, bisneto do irmão de Vincent Van Gogh, em 2004.

Theo era um ativista de esquerda contra as religiões, especialmente contra o que chamava de opressão do islamismo às mulheres. Foi assassinado a tiros por um jovem de origem de marroquina, quando andava de bicicleta.

A partir dali, cresceu o sentimento de que a comunidade muçulmana representa uma ameaça à sociedade aberta que caracteriza a Holanda. Isso explica a ascensão de Wilders, cuja mensagem principal é de que “a Holanda tem sido tolerante demais com gente intolerante”.

Há uma tese razoavelmente disseminada em ciência política de que duas democracias não entram em guerra. É curioso, portanto, que o tom entre Holanda e Turquia (que pelo menos por enquanto ainda pode ser considerada uma democracia) tenha se tornado tão beligerante justamente porque seus políticos estão atrás de votos.

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